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Epidemiologia e Serviços de Saúde

versão impressa ISSN 1679-4974versão On-line ISSN 2237-9622

Epidemiol. Serv. Saúde vol.28 no.1 Brasília mar. 2019  Epub 08-Abr-2019

http://dx.doi.org/10.5123/s1679-49742019000100020 

ARTIGO DE OPINIÃO

Desastres em barragens de mineração: lições do passado para reduzir riscos atuais e futuros

Desastres en represas de minería: lecciones del pasado que reducir los riesgos actuales y futuros

Carlos Machado de Freitas (orcid: 0000-0001-6626-9908)1  , Christovam Barcellos (orcid: 0000-0002-1161-2753)2  , Léo Heller (orcid: 0000-0003-0175-0180)3  , Zélia Maria Profeta da Luz (orcid: 0000-0002-0819-3025)3 

1Fundação Oswaldo Cruz, Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Rio de Janeiro, RJ, Brasil

2Fundação Oswaldo Cruz, Instituto de Comunicação e Informação Científica e Tecnológica em Saúde, Rio de Janeiro, RJ, Brasil

3Fundação Oswaldo Cruz, Instituto René Rachou, Minas Gerais, MG, Brasil

No dia 25 de janeiro de 2019, o rompimento na Barragem 1 da mina Córrego do Feijão, da Companhia Vale S.A, no município de Brumadinho, MG, região metropolitana de Belo Horizonte, provocou um dos mais graves desastres em barragens de mineração no mundo desde 1960. Foram lançados aproximadamente 13 milhões de m³ de lama com rejeitos de mineração, causando grandes impactos ambientais, principalmente sobre o rio Paraopeba, e danos humanos superiores a 300 óbitos, se considerarmos que após um mês, além dos 179 óbitos identificados, havia ainda 129 pessoas não localizadas.

Para se compreender esse desastre e seu significado no âmbito da Saúde Pública, há de se considerar três consequências, combinadas ou não entre si: (i) interrupção do funcionamento normal do cotidiano local ou regional, envolvendo perdas e prejuízos (materiais e culturais, econômicos e ambientais), bem como ampliação dos riscos, doenças e óbitos; (ii) sobrecarga das capacidades institucionais locais ou estaduais, superior a sua capacidade de atuação com uso de seus próprios recursos; e (iii) alteração dos contextos de produção de riscos e doenças, entre características preexistentes e novas, criados após o evento, resultando em uma sobreposição de condições de risco e danos ambientais e humanos nos territórios e populações afetados, possíveis de se prolongar por meses e anos.1

Para a comunidade de pesquisadores e profissionais que tem os desastres como tema de trabalho, é consenso que dele devem-se extrair lições, de modo a evitar que falhas e erros, riscos e doenças, perdas e danos se repitam.

A Vale perdeu a oportunidade de aprender com o desastre causado pela Samarco Mineração S. A., mineradora da qual é uma das controladoras. Em pouco mais de três anos, a Vale foi responsável pelos dois mais graves desastres em barragens de mineração no Brasil, reconhecidos entre os maiores já ocorridos no mundo: o de Mariana, no mesmo estado de Minas Gerais, em 2015; e o de Brumadinho, neste 2019. Ao mesmo tempo, como empresa de atuação global, cometeu abusos e promoveu retrocessos nos direitos humanos das populações atingidas,2 dada a ausência de medidas preventivas e negligência quanto à segurança de suas barragens, violando os direitos à vida, saúde, água, moradia e emprego. Além dos direitos econômicos e sociais, direitos políticos e civis foram violados, tais como a reparação justa, informação transparente e participação dos atingidos nas tomadas de decisão posteriores a ambos os eventos.

Para a comunidade de profissionais da Saúde Pública, também é fundamental, no médio prazo, aprender com esses eventos e desenvolver formas de prevenção, respostas imediatas, reabilitação e recuperação da saúde; e, no longo prazo, apoiar a reconstrução das condições de vida desses territórios, tendo como marco e referência o direito à saúde e sua relação com os direitos sociais e ambientais.

Pesquisas sobre desastres, comparando-se os padrões de morbidade e mortalidade antes e após os eventos, aportam alguns aprendizados. No período de seis meses depois das enchentes e deslizamentos de novembro de 2008 em Santa Catarina, foi observado crescimento nas internações hospitalares por acidente vascular cerebral (AVC), fraturas, e doenças infecciosas, como leptospirose.3 Em 2011, a sequência de desastres provocados pelo tsunami em Fukushima, Japão, levou a um excessivo e excepcional aumento da mortalidade em toda a região, principalmente por doenças cardiovasculares, e em idosos, mesmo entre os hospitalizados em decorrência do desastre. Esses achados apontam para um efeito sinérgico entre o estresse causado pelas perdas humanas e materiais e o colapso do sistema de saúde pós-desastre.4 O furacão Maria atingiu Porto Rico em setembro de 2017, e, além dos 64 óbitos imediatos, provocou um exorbitante crescimento da mortalidade no período até cinco meses passados do ocorrido, considerando-se os cenários de deslocamento da população: foram 2.975 mortes atribuídas ao furacão - 46 vezes mais do que as 64 diretamente causadas por sua passagem -, e houve um incremento significativo da mortalidade nos municípios daquele país, em torno de 40%.5

Para os desastres que envolvem materiais de origem química (como os metais pesados presentes ou mobilizados tanto no desastre da Samarco em 2015, como da Vale em 2019) ou de origem radioativa, os efeitos podem se estender por anos, exigindo longos períodos de pesquisas, vigilância e cuidados em saúde.6 Após os desastres da Samarco, pesquisas evidenciaram dois conjuntos de indivíduos expostos ao evento: (i) os que viviam no município de Mariana e tiveram suas casas destruídas, e algum contato com a lama de rejeitos, como residentes dos distritos de Bento Rodrigues, Paracatu de Baixo e Gesteira; e (ii) os que viviam no município de Barra Longa, afetados pela onda de lama que invadiu parte da cidade e que também tiveram contato com água contaminada ou com a poeira resultante da lama seca. Como se não bastasse, o desastre de Mariana comprometeu o abastecimento de água, a pesca, a agricultura e práticas de lazer de cidades e comunidades situadas ao longo de 650km do rio Doce.7

No município de Barra Longa, uma análise dos dados de atendimentos nas unidades de saúde revelou crescimento de vários problemas de saúde, doenças e agravos com diagnóstico ou manifestações clínicas registradas. No período de 5 de novembro (data do desastre) até o primeiro semestre de 2016 (quase oito meses depois), alguns problemas de saúde tiveram aumento de 8 a 48 vezes, como por exemplo: dermatites; parasitoses, diarreias e gastroenterites; ansiedade; hipertensão arterial sistêmica; diabete mellitus; infecções das vias aéreas superiores e dengue.7

Outro estudo, este sobre dados primários, com o objetivo de caracterizar o perfil epidemiológico da população do mesmo município de Barra Longa, revelou uma prevalência 60 a 80% maior para problemas de saúde como insônia, dor muscular e irritabilidade nos indivíduos diretamente afetados - pessoas cujas residências foram atingidas pela lama de rejeitos, ou moradores de áreas próximas -, em relação aos não diretamente afetados.7

Tais resultados são bastante similares aos encontrados em outras duas pesquisas. A primeira, realizada em Barra Longa, MG,8 objetivou avaliar a situação de saúde dos residentes mediante aplicação de questionários durante cinco dias, imediatamente antes de o desastre completar um ano em 2016. A segunda, sobre saúde mental, realizada nos distritos de Mariana e envolvendo moradores ou proprietários locais,9 revelou efeitos na saúde mental e discriminação que os afetados e expostos passaram a sofrer - tratados como culpados pelos prejuízos causados com o fechamento temporário da Samarco - e, como consequência, seu impacto na economia, empregos e renda do município.

Em suma, desastres como o da Vale em Brumadinho, além dos danos ambientais e humanos imediatos, alteram completamente a vida das comunidades, o funcionamento normal dos municípios e da região afetados, representando uma sobrecarga para as instituições e sistemas de saúde locais e criando ao mesmo tempo novos cenários de riscos, danos e doenças, a conviver com os já existentes, produzindo uma interação complexa de doenças infecciosas e outros agravos com a potencialização de doenças crônicas. Os efeitos indiretos e no longo prazo, complexos, de difícil identificação e quantificação, serão sentidos pela população ao longo de anos, em uma extensão territorial maior do que a do vale soterrado pela lama.

O Sistema Único de Saúde (SUS), em todas as suas instâncias e organizações, permanece na região de Brumadinho, não obstante ter sido suspensa a situação de emergência, e arcará com a maior parte dos esforços e dispêndios implicados no desastre.

Os cuidados imediato e permanente, dirigidos aos grupos populacionais mais vulneráveis - a exemplo dos que perderam suas habitações e o fornecimento dos serviços de água e de saneamento, idosos, crianças, gestantes, portadores de doenças crônicas, pessoas com dificuldades de locomoção, entre outros - podem ajudar a reduzir esse impacto sobre sua saúde e o meio ambiente. No médio e longo prazos, o planejamento prospectivo, tendo em conta cenários de risco e ações preventivas, é fundamental. No médio prazo, exige-se grande articulação entre vigilâncias (epidemiológica, sanitária, ambiental e da saúde do trabalho) e cuidados em saúde, para reduzir os riscos de surtos de doenças infecciosas e parasitárias, a ocorrência de doenças dos olhos e de pele, respiratórias e endócrinas, circulatórias, transtornos mentais, lesões e causas externas. No longo prazo, há ainda risco de combinação e sobreposição dessas doenças a outras, como neoplasias e doenças do sistema nervoso, associadas com a exposição aos metais pesados.

Mais do que nunca, é necessária uma ação articulada e de longo prazo, envolvendo gestores e trabalhadores do SUS, instituições de ciência, tecnologia e inovação, movimentos sociais e outros setores da população, para prevenir e reduzir os riscos desse desastre, bem como os presentes nas centenas de barragens de mineração do país.

Referências

1. Organização Pan-Americana da Saúde. Ministério da Saúde. Desastres naturais e saúde no Brasil [Internet]. Brasília: Ministério da Saúde; 2014 [citado 2019 fev 20]. 49 p. Disponível em: Disponível em: http://iris.paho.org/xmlui/bitstream/handle/123456789/7678/9788581100210_por.pdf?sequence=1Links ]

2. United Nations. Office of the High Commisioner of the Human Rights. Guiding principles on business and human rights: implementing the United Nations ‘Protect, Respect and Remedy’ framework [Internet]. Genebra: United Nations; 2011 [cited 2019 Feb 20]. 35 p. Available from: Available from: https://www.ohchr.org/documents/publications/GuidingprinciplesBusinesshr_eN.pdfLinks ]

3. Xavier DR, Barcellos C, Freitas CM. Eventos climáticos extremos e consequências sobre a saúde: o desastre de 2008 em Santa Catarina segundo diferentes fontes de informação. Ambient Soc [Internet]. 2014 [citado 2019 fev 20];17(4):273-94. Disponível em: Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/asoc/v17n4/a12v17n4.pdf . Doi: 10.1590/1809-4422ASOC1119V1742014 [ Links ]

4. Morita T, Nomura S, Tsubokura M, Leppold C, Gilmour S, Ochi S, et al. Excess mortality due to indirect health effects of the 2011 triple disaster in Fukushima, Japan: a retrospective observational study. J Epidemiol Community Health [Internet]. 2017 Oct [cited 2019 Feb 20];71(10):974-80. Available from: Available from: https://jech.bmj.com/content/71/10/974.long . Doi: 10.1136/jech-2016-208652 [ Links ]

5. Milken Institute School of Public Health. Ascertainment of the estimated excess mortality from hurricane María in Puerto Rico [Internet]. Washington: George Washington University; 2018 [cited 2019 Feb 20]. Available from: Available from: https://www.preventionweb.net/publications/view/60237Links ]

6. Lucchini RG, Hashim D, Acquilla S, Basanets A, Bertazzi PA, Bushmanov A, et al. A comparative assessment of major international disasters: the need for exposure assessment, systematic emergency preparedness, and lifetime health care. BMC Public Health [Internet]. 2017 Jan [cited 2019 Feb 20];17:46. Available from: Available from: https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC5219808/pdf/12889_2016_Article_3939.pdf . Doi: 10.1186/s12889-016-3939-3 [ Links ]

7. Ministério da Saúde (BR). Secretaria de Vigilância em Saúde. Relatório final - estudo sobre o perfil epidemiológico da população de Barra Longa-MG, pós-desastre, 2016. Brasília: Ministério da Saúde; 2017. [ Links ]

8. Instituto Saúde e Sustentabilidade & Greenpeace. Avaliação dos riscos em saúde da população afetada pelo desastre de Mariana [Internet]. São Paulo: Instituto Saúde e Sustentabilidade; 2018 [citado 2019 fev 20]. Disponível em: Disponível em: https://www.saudeesustentabilidade.org.br/wp-content/uploads/2017/04/Resumo.18.04.2017.pdfLinks ]

9. Roque MAV, Freitas AA, Garcia FD. PRISMMA: pesquisa sobre a saúde mental das famílias atingidas pelo rompimento da barragem de Fundão em Mariana. Belo Horizonte: Corpus; 2018. [ Links ]

Endereço para correspondência: Carlos Machado de Freitas - Centro de Estudos e Pesquisas em Emergências e Desastres em Saúde; Fundação Oswaldo Cruz - Endereço: Avenida Brasil, 4036 - Prédio Expansão - Sala 916, CEP 21040-361 - Rio de Janeiro - RJ E-mail: carlosmf@ensp.fiocruz.br

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