SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.28 número1Cobertura radiográfica odontológica pelo Sistema Único de Saúde na região Sul do Brasil em 2016: estudo ecológicoAnálise da oferta de serviços na atenção especializada em saúde bucal no Sistema Único de Saúde, Brasil, 2014 índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Serviços Personalizados

Journal

Artigo

Indicadores

  • Não possue artigos citadosCitado por SciELO

Links relacionados

  • Não possue artigos similaresSimilares em SciELO

Compartilhar


Epidemiologia e Serviços de Saúde

versão impressa ISSN 1679-4974versão On-line ISSN 2237-9622

Epidemiol. Serv. Saúde vol.28 no.1 Brasília mar. 2019  Epub 08-Abr-2019

http://dx.doi.org/10.5123/s1679-49742019000100022 

NOTA DE PESQUISA

Craving em usuários de crack segundo características individuais e comportamentais*

El análisis del craving en usuarios de crack según la determinación social de salud

Karine Langmantel Silveira (orcid: 0000-0002-2598-5278)1  , Michele Mandagará de Oliveira (orcid: 0000-0002-7914-9339)1  , Bruno Pereira Nunes (orcid: 0000-0002-4496-4122)1  , Poliana Farias Alves (orcid: 0000-0001-6800-9536)1  , Gabriela Botelho Pereira (orcid: 0000-0002-9964-6586)1 

1Universidade Federal de Pelotas, Faculdade de Enfermagem, Pelotas, RS, Brasil

Resumo

Objetivo:

analisar a variação dos níveis de craving segundo características individuais e comportamentais dos usuários de crack de dois serviços públicos de tratamento especializado em Pelotas, Rio Grande do Sul, Brasil.

Métodos:

estudo transversal, com amostra de 133 participantes; utilizou-se a escala do Cocaine Craving Questionnaire para verificar o nível de craving.

Resultados:

86% dos entrevistados apresentaram níveis de craving moderado a grave; quanto aos fatores individuais, observou-se maior nível de craving grave entre mulheres (45%), pardos/mestiços (60%), baixa escolaridade (46%) e transtornos psiquiátricos menores (59%); sobre os fatores comportamentais, o nível de craving grave foi maior entre usuários que se divorciaram no último ano (44%), tiveram problemas com a Justiça (61%), praticaram atos de violência (57%), utilizavam mais de quatro substâncias psicoativas (67%) e apresentavam consumo pesado do crack (57%).

Conclusão:

a quase totalidade dos usuários de crack apresentaram níveis de craving elevados, proporcionalmente maiores em algumas variáveis individuais e comportamentais.

Palavras-chave: Cocaína Crack; Fissura; Vulnerabilidade em Saúde; Usuários de Drogas; Estudos Transversais

Resumen

Objetivo:

analizar la variación de los niveles de craving de acuerdo con las características individuales y comportamentales de usuarios de crack de dos servicios públicos de tratamiento especializado en Pelotas, Rio Grande do Sul, Brasil.

Métodos:

estudio transversal, con muestra de 133 personas; se empleó la escala del Cocaine Craving Questionnaire para verificar los niveles de craving.

Resultados:

86% de los entrevistados presentaran altos niveles de craving; entre los factores individuales, se observó mayor nivel de craving entre las mujeres (45%), mulatos/mestizos (60%), con baja escolaridad (46%) y con trastornos psiquiátricos menores (59%); entre los factores comportamentales, el nivel de craving fue mayor entre quienes se divorciaron el último año (44%), tuvieron problemas con la Justicia (61%), practicaron actos de violencia (57%), hacían uso de más que cuatro sustancias psicoactivas (67%) y presentaban alto consumo de crack (57%).

Conclusión:

se observó que los usuarios presentaron niveles altos de craving, proporcionalmente mayor en algunas variables individuales y conductuales.

Palabras clave: Cocaína Crack; Ansia; Vulnerabilidad en Salud; Consumidores de Drogas; Determinantes Sociales de la Salud; Estudios Transversales

Introdução

Entre os transtornos relacionados ao uso do crack, o mais destacado é o craving. Caracterizado como o intenso desejo de consumir a substância, o craving é apresentado como um dos fatores relacionados ao padrão de consumo da droga,1-3 um critério para diagnóstico de dependência da substância, tanto na Décima Revisão da Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde (CID-10) como no Manual de Diagnóstico e Estatística de transtornos mentais.4 A urgência pelo uso do crack e a intensidade do craving colocam o risco associado ao consumo abusivo como problema de Saúde Pública.2

Aspectos relacionados à vulnerabilidade social, como a desigualdade, a violência, a escassez de investimento do Estado na educação, na cultura e na saúde,5 entre outros, podem estar associados ao consumo do crack. A influência do craving no organismo está principalmente relacionada com as alterações observadas no humor, no comportamento e no pensamento do usuário,6,7 sendo fundamental compreender a relação dos determinantes sociais de saúde com o craving na população adicta ao crack.

Esses determinantes estão relacionados às condições em que uma pessoa vive e se caracterizam pelos fatores sociais, econômicos, culturais, étnicos/raciais, psicológicos e comportamentais a que o indivíduo está submetido. Os determinantes sociais influenciam todas as dimensões do processo de saúde-doença das populações, tanto do ponto de vista individual quanto coletivo.8

Este estudo teve como objetivo analisar a variação do nível de craving de acordo com as características individuais e comportamentais de usuários de crack de dois serviços de tratamento público.

Métodos

Trata-se de estudo descritivo, realizado com usuários de drogas cadastrados no Centro de Atenção Psicossocial, Álcool e outras Drogas e no Serviço de Redução de Danos, ambos do município de Pelotas, estado do Rio Grande do Sul, Brasil, no ano de 2012. A escolha desses dois serviços especializados justificou-se pela intenção de incluir o maior número de usuários de drogas atendidos pela rede pública de saúde do município.9

Foram elegíveis para estudo usuários de drogas maiores de 18 anos de idade, moradores de Pelotas e cadastrados e ativos nos serviços de tratamento públicos da cidade.

Para o cálculo da amostra, adotou-se a prevalência de 50% de usuários de crack, por não se dispor de uma estimativa prévia, admitindo-se um erro amostral de 4% sob o nível de confiança de 95%. No denominador, foi utilizado o total de indivíduos cadastrados nos dois serviços (N=5.900). Visando atender aos objetivos do estudo, estabeleceu-se que seriam entrevistados 680 usuários.

As variáveis selecionadas para a análise foram:

  • a) Sociodemográficas

  • - sexo (masculino; feminino);

  • - faixa etária (em anos: menos de 20; 20-24; 25-29; 30-39; 40-49; 50 e mais);

  • - raça/cor da pele (branca; preta; parda/mestiça);

  • - situação conjugal (solteiro; casado/unido; divorciado/viúvo);

  • - escolaridade (sem instrução; ensino fundamental; ensino médio e técnico; ensino superior);

  • - renda familiar (em salários mínimos: sem renda/menos de 1; 1-2; 2 ou mais); e

  • - ocupação (não trabalha; trabalho formal; trabalho informal; trabalhador autônomo).

  • b) Problemas de saúde

  • - presença de problema de saúde (sim; não); e

  • - transtornos psiquiátricos menores (negativo; positivo).

  • c) Ter filhos (sim; não)

  • d) Eventos ocorridos no último ano

  • - divórcio/separação;

  • - prisão ou problemas com a Justiça;

  • - mudança na condição financeira;

  • - praticou ato de violência;

  • - sofreu ato de violência; e

  • - sofreu violência sexual.

  • e) Uso do crack

  • - tempo de uso de crack (em anos: menos que 1; 1-5; 6-10; 10 ou mais);

  • - padrão de uso (leve; moderado; pesado);

  • - uso associado com outra droga (sim; não); e

  • - quantas substâncias psicoativas utiliza no mesmo dia (1; 2-3; 3 ou mais).

  • f) Nível de craving (mínimo; leve; moderado; grave)

A presença de transtornos psiquiátricos menores foi mensurada utilizando-se a escala do Self-Reporting Questionnarie-20 (SRQ-20).10 Esta escala é constituída de um questionário com 20 perguntas, utilizando-se como ponto de corte 8 ou mais respostas afirmativas para a suspensão da presença de transtornos.

O Cocaine Craving Questionnaire-Brief (CCQ-B), por sua vez, foi utilizado para mensuração do nível de ‘fissura’ (craving) em usuários de crack; constitui-se de dez questões do tipo da escala de Likert, cujo escore é aferido pela soma simples. Os níveis de craving são classificados em quatro grupos: mínimo (0 a 11 pontos); leve (12 a 16 pontos); moderado (17 a 22 pontos); e grave (23 pontos e mais).3

Todos os dados foram coletados mediante aplicação de questionário estruturado junto à população usuária de crack.

O controle de qualidade foi realizado em três etapas: supervisão de campo; supervisão da codificação dos dados; e reaplicação do instrumento, via sorteio de 5% dos questionários e checagem de questões-chave.

Os dados foram digitados com uso do aplicativo Microsoft Access e exportados para o Stata versão 12, para realização das análises, cuja fase inicial constituiu-se de análises descritivas e exploratórias utilizando-se de distribuições de frequências, medidas descritivas e de dispersão das variáveis. Na segunda fase, análises bivariadas visaram identificar diferenças proporcionais entre as variáveis independentes e o nível de craving dos usuários de crack, mediante aplicação do teste do qui-quadrado de tendência linear, adotando-se o nível de significância estatística de 5%.

O projeto da pesquisa obedeceu aos princípios éticos recomendados pela instituição responsável, o Conselho Nacional de Saúde (CNS)/Ministério da Saúde, e foi aprovado pelo Comitê de Ética e Pesquisa da Faculdade de Enfermagem da Universidade Federal de Pelotas: Parecer nº 301/2011.

Resultados

Dos 681 usuários sorteados para o estudo, 505 foram entrevistados. As perdas e recusas totalizaram 26% (n=176), principalmente dada a negativa em assinar o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. Entre os entrevistados, 133 usuários relataram fazer uso de crack, amostra utilizada para o estudo.

A maioria dos entrevistados foi do sexo masculino (84%), com média de idade de 32 anos (desvio-padrão=9,4). A raça/cor da pele autorreferida branca apresentou prevalência de 56%. Observou-se percentual de 71% de solteiros, e 80% apresentaram ensino fundamental completo ou incompleto. Quanto à situação ocupacional, 32% estavam desempregados, 15% possuíam emprego formal, 29% informal e 24% eram trabalhadores autônomos.

Em relação ao nível de craving, 6 usuários apresentaram nível mínimo, 12 nível leve, 58 nível moderado e 57 se encontravam no nível grave. O escore médio obtido da escala CCQ-Brief foi de 28 (desvio-padrão=12,4).

Como se observa na Tabela 1, a distribuição dos níveis de craving dos usuários que se autodeclararam de raça/cor da pele parda ou mestiça apresentou maior prevalência de nível grave (60%), quando comparada à prevalência dos demais (p=0,045).

Tabela 1 - Distribuição dos níveis de craving segundo características individuais dos usuários de crack (n=133) atendidos nos serviços públicos de tratamento especializado de Pelotas, Rio Grande do Sul, 2012 

Variáveis Total Nível de craving p-valora
Mínimo 0-11 Leve 12-16 Moderado 17-22 Grave ≥23
n % n % n % n % n %
Sexo
Feminino 22 16,5 2 9,1 1 4,6 9 40,9 10 45,4 0,248
Masculino 111 83,5 4 3,6 11 9,9 49 44,1 47 42,3
Grupo etário (em anos)
<20 6 4,5 0 0,0 1 16,7 2 33,3 3 50,0 0,983
20-24 25 18,8 0 0,0 1 4,0 16 64,0 8 32,0
25-29 31 23,3 1 3,2 1 3,2 12 38,7 17 54,9
30-39 50 37,6 5 10,0 8 16,0 18 36,0 19 38,0
40-49 16 12,0 0 0,0 1 6,2 8 50,0 7 43,8
≥50 5 3,8 0 0,0 0 0,0 2 40,0 3 60,0
Raça/cor da pele
Branca 74 55,6 2 2,7 9 12,2 34 45,9 29 39,2 0,045
Preta 34 25,6 3 8,8 2 5,9 16 47,1 13 38,2
Parda/mestiça 25 18,8 1 4,0 1 4,0 8 32,0 15 60,0
Situação conjugal
Solteiro 94 70,7 4 4,3 11 11,7 40 42,5 39 41,5 0,942
Casado/unido 26 19,5 2 7,7 1 3,8 13 50,0 10 38,5
Divorciado/viúvo 13 9,8 0 0,0 0 0,0 5 38,5 8 61,5
Escolaridade
Sem instrução 1 0,8 0 0,0 0 0,0 0 0,0 1 0,8 0,083
Fundamental 107 80,4 6 5,6 7 6,5 45 42,1 49 45,8
Ensino médio e técnico 21 15,8 0 0,0 4 19,1 11 52,4 6 28,6
Superior 4 3,0 0 0,0 1 25,0 2 50,0 1 25,0
Renda familiar (em salários mínimos)
Sem renda/<1 SMb 43 32,3 3 7,0 0 0,0 17 39,5 23 53,5 0,304
1-2 SMb 46 34,6 3 6,5 5 10,9 21 45,6 17 37,0
>2 SMb 44 33,1 0 0,0 7 15,9 20 45,5 17 38,6
Situação ocupacional
Não trabalha 43 32,3 3 7,0 5 11,6 15 34,9 20 46,5 0,863
Formal 20 15,0 1 5,0 1 5,0 11 55,0 7 35,0
Informal 38 28,6 0 0,0 3 7,9 18 47,4 17 44,7
Autônomo 32 24,1 2 6,2 3 9,4 14 43,8 13 40,6
Problemas de saúde
Não 80 60,2 4 5,0 7 8,8 34 42,5 35 43,7 0,674
Sim 53 39,8 2 3,8 5 9,4 24 45,3 22 41,5
Transtorno psiquiátrico menor (estimado pelo SRQ-20c)
Negativo 75 56,4 4 5,3 9 12,0 39 52,0 23 30,7 0,014
Positivo 58 43,6 2 3,4 3 5,2 19 32,8 34 58,6

a) Qui-quadrado de tendência linear.

b) SM: salário mínimo ao valor de R$ 622,00 no ano de 2012.

c) SQR-20: Self-Reporting Questionaire-20, questionário de autorresposta com 20 perguntas.

Quanto aos usuários que referiram SRQ positivo, 34 (59%) apresentaram nível grave de craving, e 19 (33%) nível moderado (p=0,014).

Conforme observado na Tabela 2, dos usuários com filhos, 48% apresentaram nível grave de craving, e entre os usuários sem filhos, 61% apresentaram nível moderado (p=0,045).

Tabela 2 - Distribuição dos níveis de craving segundo características comportamentais dos usuários de crack (n=133) atendidos nos serviços públicos de tratamento especializado de Pelotas, Rio Grande do Sul, 2012 

Variáveis Total Nível de craving p-valora
Mínimo 0-11 Leve 12-16 Moderado 17-22 Grave ≥23
n % n % n % n % n %
Tem filhos
Não 41 31,1 0 0,0 3 7,3 25 61,0 13 31,7 0,045
Sim 91 68,9 6 6,6 9 9,9 32 35,2 44 48,3
Eventos ocorridos no último ano
Divórcio/separação 34 25,6 4 11,8 1 2,9 14 41,2 15 44,1 0,040
Prisão ou problemas com a Justiça 51 38,4 0 0,0 5 9,8 15 29,4 31 60,8 0,305
Mudança na condição financeira 58 43,6 1 1,7 6 10,3 27 46,6 24 41,4 0,239
Praticou ato de violência 37 27,8 2 5,4 1 2,7 13 35,1 21 56,8 0,029
Sofreu ato de violência 45 33,8 2 4,4 3 6,7 18 40,0 22 48,9 0,345
Sofreu violência sexual 4 3,0 0 0,0 0 0,0 2 50,0 2 50,0 0,840
Tempo de uso (em anos)
<1 2 1,5 0 0,0 0 0,0 2 100 0 0,0 0,262
1-5 50 37,9 1 2,0 4 8,0 24 48,0 21 42,0
6-10 61 46,2 3 4,9 6 9,8 25 41,0 27 44,3
≥11 19 14,4 2 10,5 2 10,5 6 31,6 9 47,4
Padrão de uso
Leve 45 37,5 4 8,9 4 8,9 21 46,7 16 35,5 0,565
Moderado 10 8,3 0 0,0 2 20,0 6 60,0 2 20,0
Pesado 65 54,2 1 1,5 4 6,2 23 35,4 37 56,9
Uso associado com outra droga
Não 47 35,3 4 8,5 6 12,8 20 42,6 17 36,2 0,774
Sim 86 64,7 2 2,3 6 7,0 38 44,2 40 46,5
Quantas substâncias psicoativas utiliza no mesmo dia (n=86)
1 26 30,2 1 3,8 2 7,7 16 61,5 7 26,9 0,042
2-3 39 45,4 1 2,6 4 10,3 15 38,5 19 48,7
≥4 21 24,4 0 0,0 0 0,0 7 33,3 14 66,7

a) Qui-quadrado de tendência linear.

Observam-se diferenças proporcionais estatisticamente significantes entre os seguintes eventos e níveis de craving: ter se divorciado ou se separado (p=0,040) e ter praticado atos de violência (p=0,029) no último ano.

A distribuição dos níveis de craving segundo o número de drogas utilizadas evidenciou que 67% dos que utilizam quatro ou mais substâncias psicoativas apresentavam nível grave de craving (p=0,042).

Discussão

A maioria dos entrevistados apresentou nível de craving moderado ou grave. Os usuários que se autodeclararam de raça/cor da pele parda, com presença de transtornos psiquiátricos menores, com filhos, que utilizavam quatro ou mais substâncias psicoativas concomitantes com o crack e que haviam se divorciado e/ou praticado algum ato de violência no último ano apresentaram níveis de craving graves.

No perfil dos participantes, predominou o sexo masculino, idade em torno de 30 anos, situação conjugal como solteiro, baixa escolaridade e baixa renda. Trata-se de um perfil similar ao dos participantes da pesquisa realizada nos Centros de Atenção Psicossocial de Minas Gerais em 2011,11 e da pesquisa nacional sobre o uso de crack nas capitais do Brasil, esta realizada em 2013.12

Embora o abuso do crack não se restrinja às classes menos favorecidas social e economicamente, entre seu contingente predominam características de exclusão social, comparativamente à população geral.12,13 Sobre essas características, o presente estudo destaca o sexo feminino: a despeito de se apresentar em menor número na amostra, usuárias tiveram maiores níveis de craving quando comparadas a seus pares do sexo masculino. Outros fatores encontrados foram a raça/cor da pele parda ou preta autorreferida, a baixa escolaridade e o desemprego ou trabalho precário, sugerindo que a trajetória de marginalização social pode preceder o uso da substância.

O comportamento impulsivo, decorrente dos níveis de craving mais elevados,2 pode explicar alguns eventos do último ano da vida dos entrevistados. Entre eles, destacaram-se as mudanças nas condições financeiras, ser levado a prisão ou ter tido problemas com a Justiça, ter sofrido e/ou praticado atos de violência.

Quanto maior o tempo de uso de crack e a quantidade da substância, maiores serão os níveis de craving,11,14 padrão também observado no presente estudo: os maiores níveis de craving foram encontrados nos usuários que utilizavam a substância por mais tempo.

Um mecanismo a que costumam recorrer os usuários de crack para enfrentar o craving é a utilização concomitante ou intercalada de outras substâncias psicoativas.15 Porém, o presente estudo revelou que quanto mais substâncias eram utilizadas, mais severos os níveis de craving, chegando a 67% de nível grave para quem utilizava quatro ou mais substâncias no mesmo dia.

Observou-se relação estatisticamente significante entre a presença de transtornos psiquiátricos menores e níveis de craving. A correta identificação da comorbidade psiquiátrica é necessária, visto que funciona como um fator agravante, indutor e perpetuador da condição de dependência ou abuso da substância. Essa comorbidade é, muitas vezes, subestimada e subdiagnosticada, sendo os sintomas referentes ao transtorno mental atribuídos ao uso agudo do crack ou à síndrome de abstinência.14,16,17

Populações mais vulneráveis podem ser mais suscetíveis a apresentar nível de craving grave. Espera-se que os resultados desta pesquisa contribuam para as reflexões acerca das iniquidades em saúde entre usuários de crack, subsidiando a criação de novas propostas de atenção a essas pessoas com foco na integralidade do cuidado.

Referências

1. Silveira KL, Oliveira MM, Alves PF. Factors associated with craving in crack users: systematic review. SMAD, Rev Eletrônica Saúde Mental Alcool Drog [Internet]. 2017 Apr-Jun [cited 2019 Feb 5];13(2):109-14. Available from: Available from: https://www.redalyc.org/jatsRepo/803/80356236008/index.html . Doi: 10.11606/issn.1806-6976.v13i2p109-114 [ Links ]

2. Chaves TV, Sanchez ZM, Ribeiro LA, Nappo SA. Fissura por crack: comportamentos e estratégias de controle de usuários e ex-usuários. Rev Saúde Pública [Internet]. 2011 dez [citado 2019 fev 5];45(6):1168-75. Disponível em: Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/rsp/v45n6/2774.pdf . Doi: 10.1590/S0034-89102011005000066 [ Links ]

3. Araújo RB, Castro MGT, Pedroso RS, Santos PL, Leite L, Rocha MR, Marques ACPR. Validação psicométrica do Cocaine Craving Questionnaire-Brief - versão brasileira adaptada para o Crack para dependentes hospitalizados. J Bras Psiquiatr [Internet]. 2011 [citado 2019 fev 5];60(4):233-9. Disponível em: Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/jbpsiq/v60n4/a01v60n4.pdf . Doi: 10.1590/S0047-20852011000400001 [ Links ]

4. Ferri CP, Galduróz JCF. Critérios diagnósticos: CID-10 e DSM. Senad: Brasília; 2016. [ Links ]

5. Amarante PDC, Souza LE. Crack: cuidar e não reprimir. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2013. [ Links ]

6. Ramiro FS, Padovani RC, Tucci AM. Consumo de crack a partir das perspectivas de gênero e vulnerabilidade: uma revisão sobre o fenômeno. Saúde Debate [Internet]. 2014 jun [citado 2019 fev 5];38(101):379-92. Disponível em: Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/sdeb/v38n101/0103-1104-sdeb-38-101-0379.pdf . Doi: 10.5935/0103-1104.20140035 [ Links ]

7. Ventura CAA. Determinantes Sociales de la Salud y el uso de drogas psicoactivas. SMAD, Rev Eletrônica Saude Mental Alcool Drog [Internet]. 2014 set-dez [citado 2019 fev 5];10(3):110-1. Disponível em: Disponível em: http://pepsic.bvsalud.org/pdf/smad/v10n3/pt_01.pdf . Doi: 10.11606/issn.1806-6976.v10i3p110 [ Links ]

8. Buss PM, Pellegrini Filho A. A saúde e seus determinantes sociais. PHYSIS: Rev Saúde Coletiva [Internet]. 2007 abr [citado 2019 fev 5];17(1):77-93. Disponível em: Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/physis/v17n1/v17n1a06.pdf . Doi: 10.1590/S0103-73312007000100006 [ Links ]

9. Ministério da Saúde (BR). Cadastro nacional de estabelecimentos de saúde. Estabelecimentos por localização geográfica [Internet]. Brasília: Ministério da Saúde; 2018 [citado 2019 fev 5]. Disponível em: Disponível em: http://cnes.datasus.gov.brLinks ]

10. Mari JJ, Williams P. The validity study of a psychiatric screening questionnaire (SRQ-20) in primary care in the city of São Paulo. Br J Psychiatry [Internet]. 1986 Jan [cited 2019 Feb 5];148(1):23-6. Available from: Available from: https://www.cambridge.org/core/journals/the-british-journal-of-psychiatry/article/validity-study-of-a-psychiatric-screening-questionnaire-srq20-in-primary-care-in-the-city-of-sao-paulo/94BFEFAF754ADABF52A244AEA28BC436 . Doi: 10.1192/bjp.148.1.23 [ Links ]

11. Lappann NC, Machado JSA, Tameirão FV, Benjamim MLN. Craving pelo crack nos usuários em tratamento no centro de atenção psicossocial. SMAD, Rev Eletrônica Saúde Mental Álcool Drog [Internet]. 2015 Jan-Mar [cited 2019 Feb 5];11(1):19-24. Available from: Available from: http://pepsic.bvsalud.org/pdf/smad/v11n1/04.pdf . Doi: 10.11606/issn.1806-6976.v11i1p19-24 [ Links ]

12. Bastos FIPM, Bertoni N (organizadores). Pesquisa nacional sobre o uso de crack: quem são os usuários de crack e/ou similares do Brasil? Quantos são nas capitais brasileiras? [Internet]. Rio de Janeiro: ICICT/Fiocruz; 2014 [citado 2019 fev 5]. 224 p. Disponível em: Disponível em: https://www.arca.fiocruz.br/handle/icict/10019Links ]

13. Messa G, Vitucci L, Garcia L, Dutra R, Souza J. Por uma psicopatossociologia das experiências dos usuários de drogas nas cracolândias/cenas de uso no Brasil. In: Souza J. (org). Crack e exclusão social [Internet]. Brasília: Ministério da Justiça e Cidadania; 2016. p. 163-190. Disponível em: https://obid.senad.gov.br/livro-crack-e-exclusao-social_digital_web.pdfLinks ]

14. Ismael F, Baltieri DA. Role of personality traits in cocaine craving throughout an outpatient psychosocial treatment program. Rev Bras Psiquiatr [Internet]. 2014 Jan-Mar [cited 2019 Feb 5];36(1):24-31. Available from: Available from: http://www.scielo.br/pdf/rbp/v36n1/1516-4446-rbp-2014-36-1-024.pdf . Doi: 10.1590/1516-4446-2013-1206 [ Links ]

15. Gonçalves JR, Nappo SA. Factores thet lead to the ude of crack cocaine in combination with marijuana in Brazil: a qualitative study. BMC Public Health [Internet]. 2015 Jul [cited 2019 Feb 5];15(1):706. Available from: Available from: https://bmcpublichealth.biomedcentral.com/articles/10.1186/s12889-015-2063-0 . Doi: 10.1186/s12889-015-2063-0 [ Links ]

16. Kluwe-Schiavon B, Tractenberg SG, Sanvicente-Vieira B, Rosa CSO, Arteche AX, Pezzi JC, et al. Propriedades psicométricas da Cocaine Selective Severity Assessment (CSSA) em mulheres usuárias de crack. J Bras Psiquiatr [Internet]. 2015 abr-jun [citado 2019 fev 5];64(2):115-21. Disponível em: Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/jbpsiq/v64n2/0047-2085-jbpsiq-64-2-0115.pdf . Doi: 10.1590/0047-2085000000066 [ Links ]

17. Grossi FT, Oliveira RM. Manejo clínico do usuário de crack. In: Fundação Hospitalar do Estado de Minas Gerais (organizador). Diretrizes clínicas, protocolos clínicos [Internet]. Belo Horizonte: Fundação Hospitalar do Estado de Minas Gerais; 2013 [citado 2019 fev 5]. p. 368-84. Disponível em: Disponível em: http://www.fhemig.mg.gov.br/index.php/docman/Protocolos_Clinicos-1/181-041-manejo-clinico-do-usuario-de-crack-07082014/fileLinks ]

*Artigo derivado da dissertação de mestrado intitulada ‘A influência dos determinantes sociais de saúde na variação do nível de fissura em usuários de crack’, defendida por Karine Langmantel Silveira junto ao Programa de Pós-Graduação em Enfermagem da Universidade Federal de Pelotas (UFPel) em 2017. Pesquisa financiada pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq)/Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações (MCTIC): Processo nº 402777/2010-7.

Recebido: 19 de Setembro de 2018; Aceito: 30 de Janeiro de 2019

Endereço para correspondência: Karine Langmantel Silveira - Rua Gomes Carneiro, no 1, Porto, Pelotas, Rio Grande do Sul, Brasil. CEP: 96010-610. E-mail: kaa_langmantel@hotmail.com

Contribuição dos autores

Silveira KL, Alves PF e Pereira GB participaram de todas as etapas do trabalho de campo do estudo, revisaram a bibliografia, conduziram as análises, interpretaram os resultados e redigiram o manuscrito. Oliveira MM e Nunes BP participaram da supervisão e orientação do trabalho, auxiliaram nas análises e revisaram a versão final do manuscrito. Todos os autores aprovaram a versão final do manuscrito e declaram-se responsáveis por sua precisão e integridade.

Creative Commons License Este é um artigo publicado em acesso aberto sob uma licença Creative Commons