Introdução
O interesse na tuberculose em indígenas vem aumentando desde 1990.1,2 No Brasil, há relatos de incidências de tuberculose ativa três vezes superiores às médias nacionais,2,3 prevalência de infecção latente ultrapassando 40% na região Norte,4-6 expressiva concentração de casos em regiões de fronteira,7,8 emergência de resistência medicamentosa8,9 e padrões de transmissão recente em 63,5% dos casos em Mato Grosso do Sul (1999-2001).10 O desempenho desses indicadores é resultante de desvantagens socioeconômicas, discriminação, preconceito e dificuldades de acesso da população indígena aos serviços de saúde.11
Sabe-se pouco sobre os problemas relacionados com o acesso aos serviços de diagnóstico, tratamento e ações de controle nas áreas indígenas. Segundo alguns autores,12-15 o acesso depende de oferta, estrutura e organização dos sistemas locais, ademais da superação de barreiras de ordem geográfica, econômica e funcional para a adequação das ações desenvolvidas pelos serviços às necessidades da população.
Este estudo objetivou investigar o acesso aos serviços de saúde para diagnóstico e tratamento da tuberculose (TB) entre indígenas atendidos no estado de Rondônia, Brasil, entre 2009 e 2011.
Métodos
Realizou-se estudo transversal com coleta de dados primários e monitoramento de indígenas em tratamento para TB nas Casas de Saúde Indígena (Casai) de Rondônia. Não houve amostragem probabilística; foram incluídos todos os indígenas atendidos entre outubro de 2009 e fevereiro de 2011.
A Saúde Indígena no Brasil organiza-se por Distritos Sanitários Especiais Indígenas (DSEI), vinculados à Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai) do Ministério da Saúde.16,17 Da estrutura dos DSEI constam: Postos de Saúde, nas aldeias; Polos-Base (unidades de saúde e/ou administrativas); e Casai (apoio aos indígenas durante atendimentos/procedimentos em outros níveis de atenção).16,17
Em Rondônia, o DSEI Porto Velho, que abrange parte do estado do Amazonas, concentra ações em cinco municípios, respondendo assistencialmente a 11 mil indígenas. O DSEI Vilhena, que abrange parte do estado de Mato Grosso, concentra ações em quatro municípios, sendo responsável pelo atendimento a 7 mil indígenas.18
A escolha de Rondônia deveu-se à expressiva ocorrência de casos na região entre 1997 e 2006,5,9,17,19 além da perspectiva de os DSEI locais expressarem a capacidade do subsistema de Saúde Indígena em detectar casos de TB na população que habita terras indígenas dentro e fora do estado.
Utilizou-se questionário semiestruturado, adaptado de Coimbra Jr. et al.20 e Scatena-Villa e Ruffino-Netto.21 Quando os indígenas não falavam português, contou-se com o auxílio de agentes indígenas de saúde (AIS) para tradução.
Foram consideradas para análise as seguintes variáveis: DSEI/Casai responsáveis pelo atendimento; sexo; e idade.
Também foram investigadas as seguintes dimensões de acesso:
a) Geográfica
- dificuldades para chegar à Casai (transporte; distância; dinheiro; ausência de profissional);
- distância média (em km) percorrida das aldeias até a Casai; e
- tempo transcorrido desde o início dos sintomas até o início do tratamento;
b) Econômica
- custos para chegar à Casai (sim; não);
c) Funcional
- forma de acesso à Casai (conta própria; encaminhado);
- responsável pelo encaminhamento (médico/enfermeiro; agente indígena de saúde [AIS]);
- tempo desde os primeiros sintomas até a chegada à Casai (em dias: <15; 16-30; >30);
- frequência de visitas à Casai (<5; >5);
- 1º tratamento utilizado (medicamentos; plantas; reza/xamanismo; terapia combinada [medicina tradicional e biomedicina]);
- tempo transcorrido desde a primeira consulta até o início do tratamento;
- exames diagnósticos (baciloscopia; cultura de escarro; radiografia de tórax);
- tratamento supervisionado (diariamente; 2 a 4 vezes/semana; nunca recebeu).
As dimensões do acesso às Casais foram comparadas pelo teste qui-quadrado (χ²) de Pearson. Foram calculadas médias das distâncias (em km) entre aldeias e Casais, tendo como referência as coordenadas geográficas. Analisou-se a correlação do tempo (em dias) desde o início dos sintomas até o início do tratamento, por meio do coeficiente de correlação de postos de Spearman. Utilizou-se o programa SPSS v.9.0.
As entrevistas aconteceram após a aprovação do projeto do estudo pelo Comitê de Ética em Pesquisa e pela Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (CEP/CONEP): Pareceres nº 176/07 e nº 327/2008.
Resultados
Ao todo foram entrevistados 52 indígenas, sendo 16 em Porto Velho, 10 em Guajará-Mirim, 3 em Ji-Paraná e 23 em Cacoal. Dois indígenas residiam no Amazonas, três em Mato Grosso e os demais em Rondônia. Houve detecção de, em média, três casos novos de TB por mês nas localidades estudadas. A maioria dos casos ocorreu em maiores de 10 anos de idade, 47 de 52 indígenas (idade média, 40,4; mediana, 34,5; variação de 1-90 anos), e 28 eram homens. Foram identificados 46 casos de TB pulmonar.
Na dimensão geográfica, falta de transporte e de dinheiro foram as principais queixas em Cacoal e Guajará-Mirim. A distância entre a aldeia e a Casai foi a principal queixa dos indígenas em Porto Velho, e a ausência de profissionais para atendimento foi a barreira mais relevante para os atendidos em Ji-Paraná (Tabela 1).
Casai Dimensões do acesso | Cacoal | Guajará-Mirim | Porto Velho | Ji-Paraná | Rondônia | p-valora |
---|---|---|---|---|---|---|
n | n | n | n | n | ||
Geográfica | ||||||
Barreirasb | ||||||
Transporte | 18 | 4 | 4 | - | 26 | 0,002 |
Distância | 7 | 3 | 6 | 1 | 17 | 0,610 |
Dinheiro | 15 | 3 | 1 | - | 19 | 0,001 |
Ausência de profissionais | 7 | 1 | 4 | 2 | 14 | 0,257 |
Econômica | ||||||
Custo | ||||||
Sim | 12 | 1 | 2 | - | 15 | 0,011 |
Não | 11 | 9 | 14 | 3 | 37 | |
Funcional | ||||||
Como chegou à Casai | ||||||
Por conta própria | 16 | 2 | 2 | 1 | 21 | 0,002 |
Encaminhado | 7 | 8 | 14 | 2 | 31 | |
Encaminhamento | ||||||
Médico/enfermeiro | 3 | 3 | 9 | - | 15 | 0,289 |
Agente indígena de saúde (AIS) | 4 | 5 | 5 | 2 | 16 | |
Tempo desde os primeiros sintomas até a chegada à Casai | ||||||
Até 15 dias | 7 | 5 | 8 | 2 | 22 | 0,155 |
16 a 30 dias | 6 | - | - | - | 6 | |
Mais de 30 dias | 10 | 5 | 8 | 1 | 24 | |
Frequência de visitas à Casai | ||||||
Até 5 | 15 | 4 | 11 | 2 | 32 | 0,480 |
Mais de 5 | 8 | 6 | 5 | 1 | 20 | |
1º tratamento utilizado pelo doente | ||||||
Medicamentos/quimioterápicos | 11 | - | 7 | 2 | 20 | 0,137 |
Plantas medicinais/raízes | 7 | 3 | 3 | - | 13 | |
Reza/xamanismo | 2 | - | 2 | - | 4 | |
Terapia combinada (medicina tradicional e biomedicina) | 2 | 4 | 3 | 1 | 10 | |
Sem informação | 1 | 3 | 1 | - | 5 | |
Exames diagnósticos | ||||||
Baciloscopia | 18 | 7 | 13 | 3 | 41 | 0,721 |
Cultura de escarro | 7 | 5 | 9 | 1 | 22 | 0,400 |
Radiografia de tórax | 21 | 9 | 13 | 2 | 45 | 0,582 |
Tratamento supervisionado | ||||||
Diariamente | 6 | 4 | 10 | 2 | 22 | 0,002 |
2 a 4 vezes na semana | 3 | - | 3 | 1 | 7 | |
Nunca recebeu | 14 | 2 | 2 | - | 18 | |
Sem informação | - | 4 | 1 | - | 5 |
a) Teste do qui-quadrado de Pearson.
b) Os entrevistados relataram livremente as barreiras enfrentadas. O somatório das respostas pode ultrapassar o número de entrevistados (n=52).
O tempo transcorrido entre a primeira consulta na Casai e o início do tratamento foi superior a 30 dias em 25 casos. Não se observou associação entre a distância média percorrida até a Casai e o tempo despendido até o início do tratamento. Houve indígenas que percorreram distâncias entre 24 e 62km e demoraram mais de 30 dias para iniciar tratamento. Entretanto, identificou-se correlação (coeficiente de Spearman = 0,654; p-valor <0,05) entre distância das aldeias e tempo do início do tratamento dos que buscaram atendimento na capital, Porto Velho (Tabela 2).
Tempo entre a primeira consulta e o início do tratamento | Cacoal | Guajará-Mirim | Ji-Paraná | Porto Velho | Rondônia | |
---|---|---|---|---|---|---|
1 dia | n χ | - | - | - | 1 61,420 | 1 |
3 a 6 dias | n χ | 5 45,823 | 2 49,247 | - | 1 120,579 | 8 |
7 a 14 dias | n χ | 1 35,241 | - | - | 1 189,566 | 2 |
15 a 29 dias | n χ | 6 34,368 | 1 132,335 | - | 1 395,509 | 8 |
Mais de 30 dias | n χ | 11 36,282 | 6 61,990 | 3 24,083 | 7 343,381 | 27 |
Sem informação | n χ | - | - | - | 6 61,420 | 6 |
Total | n | 23 | 9 | 3 | 17 | 52 |
Na dimensão econômica, 15 indígenas relataram custos/despesas para chegar à Casai.
Na dimensão funcional, 21 chegaram à Casai por conta própria. Dos 31 referenciados, 16 foram encaminhados por AIS. Vinte indígenas precisaram ir à Casai mais de cinco vezes (Tabela 1).
Vinte indígenas referiram uso exclusivo de medicamentos/quimioterápicos; 13, uso exclusivo de plantas medicinais/raízes como 1º tratamento; dez usaram ambos, medicina tradicional e biomedicina; quatro fizeram uso exclusivo de reza e um utilizou exclusivamente ritual xamânico/pajelança.
Cultura de escarro foi utilizada para diagnóstico em apenas 22 indígenas, sendo mais frequente em Porto Velho. Vinte e dois tiveram seu tratamento supervisionado diariamente (Tabela 1).
Discussão
Como noutros contextos,7,19,22 a maioria dos indígenas consultados neste estudo constituiu-se de homens e adultos jovens. Embora casos em tratamento tenham sido, majoritariamente, de Rondônia, dois provinham do Amazonas e três de Mato Grosso.
Como relatado entre os Munduruku do Pará,23 aproximadamente metade dos indígenas chegaram às Casais por conta própria, sugerindo que a Atenção Básica tem sido ineficiente em detectar sintomáticos respiratórios nas aldeias.
Um quarto dos entrevistados mencionou ser necessário retornar à Casai cinco vezes, e esperar mais de 30 dias para receber diagnóstico conclusivo, similarmente ao reportado em áreas rurais na Índia e no interior do Brasil.24-27
A medicina tradicional indígena figurou entre as opções de tratamento, não sendo excludente à biomedicina. Tanto o uso de plantas medicinais como a prática de reza e/ou xamanismo, isoladamente ou em associação com o uso de medicamentos ocidentais, foram considerados no tratamento. As opções terapêuticas empregadas para tratamento da TB parecem interconectadas, sem limites claramente definidos. Achados semelhantes foram relatados entre indígenas do Alto Rio Negro,6,28 e das etnias Munduruku23 e Xavante.
Contrariamente às recomendações presentes nas diretrizes nacionais e internacionais, de observação da ingestão dos medicamentos,29 menos da metade dos indígenas realizaram tratamento supervisionado. O tratamento supervisionado incompleto ou inexistente, conforme observado, diminui as chances de cura e amplia as possibilidades de desfechos desfavoráveis.17,22
Parte expressiva dos casos iniciou tratamento após 30 dias do diagnóstico. Em Porto Velho, observou-se associação direta e positiva entre distância percorrida e tempo transcorrido até o início do tratamento, possivelmente resultado de encaminhamentos para serviços de referência na capital, indisponíveis em outras cidades, revelando baixa resolutividade da Atenção Básica nos municípios, além do fato de Porto Velho situar-se em posição estratégica, entre Acre, Amazonas e Mato Grosso.
Busca de sintomáticos respiratórios, diagnóstico e tratamento de TB, além de vigilância de contatos, deveriam ser realizados pelas equipes multidisciplinares nas aldeias. Entretanto, face à infraestrutura precária para diagnóstico, falta de pessoal treinado e isolamento geográfico, essas ações acabam acontecendo nas áreas urbanas dos municípios.6
O retardo no início do tratamento mostrou-se associado à distância entre a residência dos pacientes e os serviços de saúde, na Índia.26 Souza et al.30 consideram que percorrer mais de 800 metros da residência ao serviço de saúde configura acesso dificultado. Aplicando-se esse parâmetro em Rondônia, todos os indígenas entrevistados teriam seu acesso à Casai dificultado.
Entre as limitações do estudo, cabe lembrar que parte do questionário foi adaptada de instrumento validado apenas para pacientes atendidos em serviços de saúde não indígena. Em alguns casos, as entrevistas foram realizadas com auxílio de intérpretes, havendo, portanto, a possibilidade de interpretações equivocadas. Visando minimizar esses problemas, os entrevistadores receberam treinamento para padronização da coleta de dados, incluindo testagem do questionário previamente às entrevistas. Estas, ressalta-se, foram realizadas sob supervisão dos autores desta pesquisa. O tamanho reduzido da amostra também pode limitar inferências robustas sobre as barreiras de acesso aos serviços. Trata-se de uma limitação a considerar, especialmente porque essas barreiras podem contribuir para a manutenção da cadeia de transmissão nas comunidades e, consequentemente, a alta carga da doença reportada na região.9,17,19
Não obstante, a investigação revelou as dificuldades enfrentadas por 52 indígenas para obter um correto diagnóstico e tratamento.
Apesar da escassez de estudos com esta abordagem no Brasil, é admissível pensar que situações semelhantes possam ocorrer em outras localidades e com outros grupos indígenas. Não há dados para consulta pública sobre equipamentos de saúde disponíveis em territórios indígenas, o que esta experiência em campo indica: nos municípios de Rondônia, não há infraestrutura laboratorial adequada para um correto diagnóstico dos casos suspeitos de TB entre populações indígenas. Este fato, por si, reduz o espectro das ações desenvolvidas pelas equipes da Atenção Básica no território.
Recomenda-se às autoridades equipar os serviços de saúde, oferecer capacitação às equipes, no manejo correto dos indígenas com suspeita de TB, e desenvolver estratégias culturalmente adaptadas à realidade local, para garantir o acesso ao diagnóstico e tratamento da TB de forma efetiva e equânime.