Introdução
Desde 2008, o Brasil lidera o ranking internacional como o maior consumidor de agrotóxicos no mundo. O país responde, por 86% do total de agrotóxicos consumidos na América Latina.1,2
Dados da Associação Brasileira da Indústria Química (Abiquim) mostram que, no período entre 2007 e 2013, o quantitativo de agrotóxicos comercializados no país cresceu de 643 milhões para 1,2 bilhão de quilos. No ano de 2014, houve um incremento de 13% nas vendas de agrotóxicos no Brasil. Isto representou um faturamento líquido de aproximadamente R$25 bilhões.3
Entre os estados que mais consumiram agrotóxicos, Mato Grosso aparece em primeiro lugar, com cerca de 207 milhões de litros aplicados em suas plantações; o Paraná (135 milhões de litros) e o Rio Grande do Sul (134 milhões de litros) aparecem em segundo e terceiro lugar, respectivamente.4 Segundo a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), dos 50 agrotóxicos mais utilizados no país, 22 são proibidos pela União Europeia, o que faz do Brasil o maior consumidor de agrotóxicos já banidos por outros países.5
Não obstante o uso intensivo e descontrolado de agrotóxicos, desde 2002 transita no Congresso Nacional o Projeto de Lei (PL) no 6.299/2002, que propõe modificações no sistema de regulação desses produtos, seus componentes e afins. O PL no 6.299/2002 busca instituir uma série de medidas com o objetivo de flexibilizar e reduzir custos para o setor produtivo, negligenciando os impactos dessas mesmas medidas para a saúde e o ambiente das populações.6,7
A esse contexto de propostas de flexibilização dos marcos regulatórios para o uso e comercialização de agrotóxicos, soma-se a escassez de recursos financeiros investidos no Sistema Unico de Saúde (SUS), e tem-se como resultado o aumento do risco de exposição das populações às intoxicações por agrotóxicos. De acordo com o Sistema Nacional de Informações Toxicológicas (Sinitox), o consumo indiscriminado de agrotóxicos faz dessa categoria a terceira maior causa de intoxicação no Brasil.8
Em 2013, a incidência de intoxicações exógenas por agrotóxicos no país foi de 6,23 casos por 100 mil habitantes. No período de 2007 a 2014, houve um incremento de 87% dos casos notificados, totalizando 68.873 casos.9
Enquanto se consolida a expansão do agronegócio, reduzem-se os investimentos no setor da Saúde.10 Como corolário, têm-se cada vez mais presentes evidências de como os agrotóxicos promovem impactos negativos à saúde: mortes, intoxicações agudas, efeitos crônicos, além de todo o passivo ambiental.10
Em Mato Grosso predominam os cultivos de soja, milho e algodão, com grande volume de aplicação de agrotóxicos.4,11 Entretanto, busca-se implementar no estado mato-grossense ações para o fortalecimento da Vigilância em Saúde das Populações Expostas aos Agrotóxicos (VSPEA), como maneira de ampliar os mecanismos de atuação e participação da Vigilância em Saúde em territórios impactados pelo agronegócio.12
O objetivo do presente estudo foi estimar a prevalência e os fatores associados às intoxicações agudas por agrotóxicos em região de intensa produção agrícola no estado de Mato Grosso, Brasil.
Métodos
Estudo transversal, sobre dados de um levantamento realizado em seis municípios eleitos como prioritários para a implantação do modelo de VSPEA, encarregada à Superintendência de Vigilância em Saúde da Secretaria de Estado de Saúde de Mato Grosso (SVS/SES/MT), com recursos do Fundo Nacional de Saúde do Ministério da Saúde.13
Mato Grosso é o terceiro maior estado do país em extensão territorial, com uma população estimada em 3.441.998 habitantes no ano de 2018 e densidade demográfica de 3,36 hab./km2. Segundo o Censo Demográfico de 2010,14 naquele ano, aproximadamente 82% dos habitantes do estado residiam em área urbana, e seu índice de desenvolvimento humano (IDH) era o 11º entre as 27 Unidades da Federação (UFs).15
Os municípios avaliados foram Diamantino, Nova Mutum, Pedra Preta, Campo Verde, Sorriso e Primavera do Leste, os quais, somados, respondem por cerca de 70% da produção agrícola do estado.16 O levantamento foi realizado no primeiro trimestre de 2013, sob responsabilidade das respectivas secretarias municipais de saúde. A SVS/SES/MT, após sistematização das informações, contemplou uma amostra de conveniência de 753 indivíduos a serem entrevistados, e disponibilizou para os pesquisadores uma cópia do respectivo banco de dados em formato CSV.
Para a realização do trabalho de campo, os municípios recrutaram e treinaram agentes comunitários de saúde (ACS) como entrevistadores. Os entrevistados foram perguntados se trabalhavam em locais com presença de agrotóxicos, se trabalhavam diretamente com agrotóxicos e se lavavam roupas utilizadas para trabalhar com agrotóxicos. A população-alvo foi selecionada considerando-se as áreas de cobertura da Estratégia Saúde da Família (ESF) sob maior exposição, direta e indireta, aos agrotóxicos. A seleção dos indivíduos a serem entrevistados atendeu aos seguintes critérios: (i) residir em região periférica do município, próxima a plantações; (ii) residir em área rural atendida pela ESF; e (iii) residir em área da ESF onde se realizem atividades de manipulação de agrotóxicos (venda, estocagem, transporte, descarte de embalagens etc.).
O banco de dados foi composto por seis blocos de perguntas, contemplando as seguintes questões: características sociodemográficas; exposição direta e/ou pregressa aos agrotóxicos; ocupação de trabalho atual; utilização de agrotóxicos no local de trabalho; manipulação de roupas contaminadas; e trabalho na zona rural ou urbana.
A variável dependente para este estudo foi ter referido algum sintoma de intoxicação aguda no último mês anterior à entrevista, diagnosticado por médico. Foram considerados os seguintes sintomas cuja ocorrência foi observada pela anamnese médica: convulsões, coma, vômito, cefaleia, desorientação, tontura, dificuldade respiratória, náusea e problemas de pele. Não era perguntado se esses sintomas eram ou não relacionados aos agrotóxicos. Como variáveis independentes, consideraram-se os aspectos socioeconômicos: sexo (masculino; feminino); faixa etária (em anos: até 17; 18-29; 30-39; 40-49; 60 ou mais); escolaridade (ensino fundamental incompleto e completo; ensino médio incompleto e completo; ensino superior incompleto e completo); e raça/cor da pele (branca; preta; parda; amarela; indígena). Também foram levados em consideração aspectos relacionados à ocupação: tempo de trabalho na agricultura e outras atividades com utilização de agrotóxicos; setor de ocupação atual; e localização do trabalho.
Para o cálculo da razão de prevalência bruta para intoxicações agudas, as variáveis foram categorizadas da seguinte forma: sexo (masculino; feminino); faixa etária (em anos: 30 e mais; até 29); escolaridade (até o ensino médio incompleto; ensino médio completo e mais); ocupação atual (agricultura e afins; outras); residência a menos de 500 metros de lavoura (sim; não); zona de trabalho (urbana; rural); residência próxima a lavoura de soja (sim; não); residência próxima a lavoura de milho (sim; não); residência próxima a lavoura de algodão (sim; não); e residência próxima a lavoura de feijão (sim; não).
Também foram questionados o tipo de cultivo e o tipo de agrotóxico nele utilizado.
Foram realizadas análises descritivas para a distribuição das frequências simples. Na análise bivariada, foram realizados os testes de Mantel-Haenszelem e todas as comparações. As variáveis que apresentaram significância estatística com p-valor <0,20 foram levadas para o modelo de análise multivariável, pela regressão de Poisson. Foi utilizado o modelo backward, em que as variáveis iam sendo retiradas do modelo final após ajuste. Permaneceram no modelo final apenas as variáveis que apresentaram significância estatística (p<0,05).
O presente levantamento foi realizado pelo Ministério da Saúde, com base nas Diretrizes Nacionais de Vigilância em Saúde de Populações Expostas a Agrotóxicos, em parceria com a instituição responsável (SVS/SES/MT), que autorizou sua utilização.(11) Por se tratar de banco de dados secundários, já alimentados, de domínio público e acesso irrestrito, não se fez necessária sua apreciação por parte do sistema de Comitês de Ética em Pesquisa e da Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (CEP-CONEP), conforme prevê a Resolução do Conselho Nacional de Saúde (CNS) nº 510, de 7 de abril de 2016.
Resultados
No total, foram entrevistadas 753 pessoas provenientes dos seis municípios eleitos como prioritários para a implementação das ações do VSPEA. Mais da metade dos participantes pertencia ao sexo masculino (59,2%), com predominância da faixa etária dos 30 aos 49 anos (50,4%). Quanto à escolaridade, pouco mais de 40% (40,2%) não haviam completado o ensino fundamental. Com relação à ocupação atual, mais de um terço dos participantes trabalhava no setor de agricultura e em ocupações afins (38,9%), sendo o comércio o segundo setor de ocupação mais referido (18,8%). Entre os trabalhadores da agricultura e afins, 50,3% residiam na zona rural (Tabela 1).
Variáveis | n0 | % |
---|---|---|
Municípios | ||
Campo Verde | 49 | 6,5 |
Nova Mutum | 262 | 34,8 |
Pedra Preta | 35 | 4,6 |
Primavera do Leste | 230 | 30,5 |
Sorriso | 121 | 16,1 |
Diamantino | 56 | 7,4 |
Sexo (751)a | ||
Masculino | 445 | 59,2 |
Feminino | 306 | 40,8 |
Raça/cor da pele (720)b | ||
Branca | 342 | 47,5 |
Preta | 47 | 6,5 |
Parda | 327 | 45,4 |
Amarela | 3 | 0,4 |
Indígena | 1 | 0,1 |
Faixa etária (em anos) (753) | ||
<17 | 6 | 0,8 |
18-29 | 145 | 19,3 |
30-39 | 197 | 26,2 |
40-49 | 182 | 24,2 |
50-59 | 126 | 16,7 |
≥60 | 97 | 12,9 |
Escolaridade (750)c | ||
Ensino fundamental incompleto | 303 | 40,2 |
Ensino fundamental completo | 113 | 15,0 |
Ensino médio incompleto | 83 | 11,0 |
Ensino médio completo | 182 | 24,2 |
Ensino superior incompleto | 23 | 3,1 |
Ensino superior completo | 49 | 6,5 |
Setor de ocupação atual (753) | ||
Comércio | 137 | 18,8 |
Saúde | 38 | 5,1 |
Agricultura e afins | 293 | 38,9 |
Não trabalha/aposentado | 27 | 3,6 |
Serviço público/serviços urbanosd | 151 | 20,4 |
Serviços domésticos | 107 | 14,2 |
Ocupação atual (753) | ||
Agricultura e afins | 293 | 38,9 |
Outros | 460 | 61,1 |
Localização do trabalho (753) | ||
Zona urbana - zonal central | 285 | 37,8 |
Zona urbana - periferia | 94 | 12,5 |
Zona rural - vila | 124 | 16,5 |
Zona rural - fazenda | 250 | 33,2 |
Zona de trabalho (753) | ||
Urbana | 379 | 49,7 |
Rural | 374 | 50,3 |
Residência a menos de 500 metros de lavoura (703)c | ||
Não | 286 | 40,1 |
Sim | 421 | 59,9 |
Já sofreu intoxicação aguda no último mês (diagnosticada por médico) (753) | ||
Não | 620 | 82,3 |
Sim | 133 | 17,7 |
Tempo de trabalho em atividades relacionadas ao uso de agrotóxicos (283)ef | ||
Menos de 1 ano | 52 | 18,4 |
De 1 a 5 anos | 92 | 32,5 |
De 6 a 10 anos | 53 | 18,7 |
11 anos ou mais | 86 | 30,4 |
Residência próxima a lavoura de soja | ||
Não | 338 | 44,9 |
Sim | 415 | 55,1 |
Residência próxima a lavoura de milho | ||
Não | 404 | 53,6 |
Sim | 349 | 46,4 |
Residência próxima a lavoura de algodão | ||
Não | 651 | 86,4 |
Sim | 102 | 13,6 |
Residência próxima a lavoura de feijão | ||
Não | 708 | 94,0 |
Sim | 45 | 6,0 |
Uso de equipamento de proteção individual ao se manusear agrotóxicos (335) | ||
Não | 189 | 56,4 |
Sim | 146 | 43,6 |
Lavagem de roupas contaminadas por agrotóxicos (335) | ||
Não | 191 | 57,0 |
Sim | 144 | 43,0 |
Sintomas da intoxicação aguda autorreferidos (329)g | ||
Convulsões | 6 | 1,8 |
Cefaleia | 73 | 22,2 |
Tontura | 76 | 23,1 |
Náusea | 52 | 15,8 |
Desorientação | 14 | 4,3 |
Dificuldade respiratória | 35 | 10,6 |
Problemas de pele | 25 | 7,6 |
Vômito | 48 | 14,6 |
a), b), c), e) Não havia informações para algumas variáveis.
d) Exceto trabalhador da Saúde.
f) Apenas entre os que trabalham com agrotóxicos.
g) O indivíduo pode ter referido mais de um sintoma de intoxicação.
Na população estudada, 17,0% (IC95% 8,5;25,5) dos entrevistados afirmaram ter recebido diagnóstico de intoxicação aguda por agrotóxicos emitido por profissionais médicos no mês anterior a sua entrevista. Os principais sintomas referidos por eles foram tontura (23,1%), cefaleia (22,2%) e náusea (15,8%) (Tabela 1).
A Tabela 2 apresenta a razão de prevalência bruta para intoxicações agudas por agrotóxicos associada às características sociodemográficas dos entrevistados. Indivíduos do sexo masculino apresentaram 3,47 (IC95% 2,24;5,35) vezes maior ocorrência de intoxicações agudas quando comparados com o sexo feminino, sendo a faixa etária mais exposta a de 30 anos ou mais (RP=1,60 - IC95% 1,01;2,54). Entre os participantes com baixa escolaridade, houve maior prevalência de intoxicações agudas entre os participantes com ensino médio incompleto (RP=2,19 - IC95% 1,46;3,30) quando comparados àqueles com ensino médio completo ou ensino superior.
Quanto à ocupação atual, os trabalhadores do setor da Agricultura e de ocupações afins apresentaram 2,52 (IC95% 1,83;3,46) vezes maior ocorrência de intoxicações agudas quando comparados aos trabalhadores de outras ocupações. No mesmo sentido, morar nas proximidades (a menos de 500 metros) de lavouras (RP=2,39 - IC95% 1,61;3,53) e trabalhar na zona rural (RP=2,35 - IC95% 1,67;3,31) também foram situações associadas a maiores prevalências de intoxicação aguda (Tabela 2).
Variáveis | % | RPa bruta (IC95%b) | Valor de pc |
---|---|---|---|
Sexo | |||
Masculino | 24,9 | 3,47 (2,24;5,35) | <0,001 |
Feminino | 7,2 | 1,00 | |
Faixa etária (em anos) | |||
≥30 | 19,1 | 1,60 (1,01;2,54) | 0,022 |
<30 | 11,9 | 1,00 | |
Escolaridade | |||
Até o ensino médio incompleto | 21,6 | 2,19 (1,46;3,30) | <0,001 |
Ensino médio completo e mais | 9,8 | 1,00 | |
Ocupação atual | |||
Agricultura e afins | 28,0 | 2,52 (1,83;3,46) | <0,001 |
Outros | 11,1 | 1,00 | |
Residência a menos de 500 metros de lavoura | |||
Sim | 23,7 | 2,39 (1,61;3,53) | <0,001 |
Não | 9,9 | 1,00 | |
Zona de trabalho | |||
Rural | 24,9 | 2,35 (1,67;3,31) | <0,001 |
Urbano | 10,6 | 1,00 | |
Residência próxima a lavoura de soja | |||
Sim | 24,1 | 2,46 (1,71;3,56) | <0,001 |
Não | 9,3 | 1,00 | |
Residência próxima a lavoura de milho | |||
Sim | 25,2 | 2,26 (1,62;3,14) | <0,001 |
Não | 11,1 | 1,00 | |
Residência próxima a lavoura de algodão | |||
Sim | 30,4 | 1,93 (1,37;2,73) | <0,001 |
Não | 15,3 | 1,00 | |
Residência próxima a lavoura de feijão | |||
Sim | 51,1 | 3,28 (2,35;4,59) | <0,001 |
Não | 15,5 | 1,00 |
b) IC95%: intervalo de confiança de 95%.
c) p<0,05 considerado como estatisticamente significante.
Os participantes que trabalhavam próximos aos cultivos de feijão (RP=3,28 - IC95% 2,35;4,59), soja (RP=2,46 - IC95% 1,71;3,56) e milho (RP=2,26 - IC95% 1,62;3,14) apresentaram maiores prevalências de intoxicação aguda quando comparados aos demais participantes (Tabela 2).
No modelo final, após ajustes, permaneceram estatiscamente associadas às intoxicações agudas por agrotóxicos as seguintes variáveis: possuir até o ensino médio incompleto (RP=1,80 - IC95% 1,22;2,71); residir próximo a qualquer tipo de lavoura (RP=2,81 - IC95% 1,79;4,41); e residir a menos de 500 metros de lavouras de milho (RP=1,57 - IC95% 1,05;2,35) e de lavouras de algodão (RP=1,43 - IC95% 1,02;2,02) (Tabela 3).
Variáveis | RP ajustada a | IC 95% b | Valor de p |
---|---|---|---|
Residência próxima a lavoura de milho | 1,57 | (1,05;2,35) | 0,026 |
Residência próxima a lavoura de algodão | 1,43 | (1,02;2,02) | 0,037 |
Residência próxima a qualquer tipo de lavoura | 2,81 | (1,79;4,41) | <0,001 |
Escolaridade até o ensino médio incompleto | 1,80 | (1,22;2,71) | 0,003 |
a) RP: razão de prevalência, ajustada por sexo e residência na zona rural/urbana.
b) IC95%: intervalo de confiança de 95%.
Discussão
O presente estudo encontrou uma prevalência de 17,0% de intoxicações agudas autorreferidas. Residir próximo a qualquer lavoura, em especial às lavouras de milho e algodão, e ter baixa escolaridade foram variáveis associadas à maior ocorrência de intoxicações agudas.
De acordo com o presente estudo, aproximadamente um a cada seis participantes relatou ter recebido diagnóstico médico de intoxicação aguda por agrotóxicos no mês anterior à realização das entrevistas. Estudo de Gonzaga16 sobre o perfil das intoxicações por agrotóxicos em Mato Grosso, no período de 2001 a 2004, já demonstrava uma prevalência considerável de notificações (63,1%), apesar de utilizar bancos de dados disponibilizados pelo Ministério da Saúde via Sistema de Informação de Agravos de Notificação (Sinan). Hoje, passados mais de dez anos do estudo de Gonzaga, percebe-se que as intoxicações agudas por agrotóxicos ainda se configuram como um problema de Saúde Pública a ser enfrentado na região.17
Na presente pesquisa, os principais sintomas advindos das intoxicações agudas relatados pelos participantes foram tontura, cefaleia e náusea. Estes achados estão em concordância com Taveira e Albuquerque,18 que, em análise de bancos de dados de consumo de agrotóxicos, apontaram os sintomas de tontura e náusea, entre outros, como os mais notificados no estado do Paraná.18
Os achados deste estudo revelaram maior ocorrência de intoxicações agudas em homens do que em mulheres. Silva19 também observou que homens apresentaram maiores taxas de incidência de intoxicação no âmbito ocupacional da agricultura, sendo considerado um grupo de maior risco. Esta predominância de casos do sexo masculino, a uma razão da ordem de quase 3 homens para 1 mulher, tampouco difere da encontrada por Gonzaga.16 Os resultados reforçam a hipótese de o potencial de intoxicação masculina ser maior que o das mulheres. Esta situação pode ser explicada pela divisão do trabalho no âmbito rural, onde, geralmente, os homens realizam atividades de maior contato direto com os agrotóxicos, tais como almoxarifado químico para mistura dos agrotóxicos, aplicação com bombas costais, em tratores e colheitadeiras, mecânica e lavagem de equipamentos. As mulheres, por sua vez, costumam desempenhar atividades com menor grau de exposição direta aos agrotóxicos: setores administrativos, controle de qualidade da produção, embalagens, e outros.
A faixa etária com maior prevalência de intoxicações agudas foi a dos 30 aos 39 anos. Silva20 e Araújo et al.21 também encontraram maior proporção de intoxicações nessa faixa etária. O dado é preocupante; demonstra que, em diferentes territórios, parcela significativa dos trabalhadores rurais adultos jovens adoece em decorrência do contato direto ou indireto com agrotóxicos.
Os entrevistados que afirmaram residir nas proximidades de lavouras apresentaram maior ocorrência de intoxicações agudas, quando comparados aos que não moram tão perto desses cultivos. Este dado é importante, sobretudo por dois aspectos. Em primeiro lugar, é sabido que a utilização de agrotóxicos nas proximidades de escolas, residências, vilas e fontes de água ainda é uma realidade no estado de Mato Grosso. Tal fato se agrava, ademais, com as pulverizações aéreas, por trator ou manuais, repercutindo na contaminação do leite materno, sangue e urina da população do ambiente do entorno, além da contaminação das águas, do ar e dos alimentos que essas populações consomem.11 Em segundo lugar, embora o objetivo do PL seja o de flexibilizar o marco regulatório para o uso de agrotóxicos nas lavouras de todo o Brasil,6 no âmbito do estado de Mato Grosso, identifica-se uma situação ainda mais grave. De acordo com Instrução Normativa e Decreto do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa), está proibida a aplicação de agrotóxicos em áreas situadas a uma distância mínima de 500 metros de povoados, cidades, vilas, bairros e mananciais de captação de água para abastecimento de populações.22 Contrariamente a essa determinação, um quantitativo importante de leis e decretos estaduais reduziu de 500 para 90 metros a distância mínima para aplicação de agrotóxicos.20 Tal medida, por si só, representa um grave retrocesso, ao negligenciar os impactos para a saúde humana e ambiental que ela deve provocar.
Todo o contexto descrito configura um cenário de exposições crônicas a produtos agrotóxicos, repercutindo em problemas de saúde, inclusive transgeracionais e, particularmente, cânceres. Estudo conduzido em oito municípios de Mato Grosso, durante os anos de 2000 a 2009, identificou 100% a mais de ocorrência de malformação congênita entre crianças de mães expostas aos agrotóxicos durante o período periconcepcional, em relação às demais gestantes.23 Outro estudo, este realizado no Semiárido Cearense, revelou uma taxa de mortalidade por câncer 38,0% maior em três municípios circunvizinhos a grandes áreas de plantio do agronegócio, quando comparada a taxa correspondente de outros 11 municípios-controle; de acordo com o mesmo estudo, as taxas de internação hospitalar por neoplasias nos primeiros três municípios foram 1,76 vez superiores às dos 11 demais municípios estudados que não contavam com a presença do agronegócio em seus territórios.17
Ao se tomar como exemplo as medidas de vigilância em saúde relacionadas ao controle de qualidade da água para consumo humano, percebe-se com maior clareza as fragilidades institucionais de monitoramento do uso de agrotóxicos no Brasil. Dos 5.570 municípios, somente 25,1% realizam ações de análise e monitoramento de resíduos de agrotóxicos na água para consumo humano; e destes, apenas 2,3% realizam-nas em conjunto, pelo órgão de abastecimento e pela Vigilância em Saúde.24
Outra variável associada à ocorrência de intoxicações agudas refere-se à baixa escolaridade. No âmbito desta pesquisa, os entrevistados com nível de escolaridade até o ensino médio incompleto apresentaram maior ocorrência de intoxicações agudas quando comparados aos participantes com ensino superior completo. Dados obtidos das notificações de intoxicações exógenas por agrotóxicos agrícolas na Bahia, durante o período 2007-2011, demonstraram que aproximadamente 40% dos casos registrados eram de indivíduos apenas com o ensino fundamental. Além disso, a baixa escolaridade dos trabalhadores dificulta sua compreensão das informações de segurança contidas nos rótulos das embalagens de agrotóxicos.25 Nesse sentido, a implementação de políticas públicas, especialmente voltadas para o acesso do trabalhador rural à educação, configura-se como uma medida de promoção da saúde e prevenção de doenças.
Trabalhadores e pessoas em geral, cuja residência se encontrava próxima às lavouras de milho e algodão, apresentaram quase duas vezes mais intoxicações agudas, quando comparadas aos demais participantes. Para além da questão da proximidade do local de residência, esses dados também devem ser analisados sob a ótica do volume e potencial de toxicidade dos ingredientes ativos aplicados em ambos os cultivos: os agrotóxicos utilizados no tratamento de sementes e na própria lavoura de milho, tais como os triazóis e estrobilurina, estão entre os produtos muito perigosos (Classe Toxicológica II) e perigosos (Classe Toxicológica III) para a saúde humana.26 Somente no ano de 2017, o consumo de insumos agrícolas na cultura de milho foi o segundo maior do país, sendo que a região Centro-Oeste é a maior produtora dessa cultura.27,28
Em relação às culturas de algodão, Mato Grosso detém as maiores plantações do país.29 Este monocultivo demanda um elevado uso de agrotóxicos, de intenso potencial poluidor. São usados diversos produtos químicos no tratamento de suas sementes, sobretudo fungicidas e inseticidas, aumentando ainda mais o risco de ocorrência de intoxicações entre os trabalhadores envolvidos diretamente, bem como nos habitantes de regiões adjacentes a esse tipo de lavoura.4 Soma-se a isso a utilização de herbicidas e inseticidas nas culturas de algodão: os organofosforados são das principais classes de agrotóxicos utilizadas nessa cultura, além de estarem entre os maiores causadores de intoxicações agudas, segundo a literatura.26
O presente estudo apresenta limitações. A primeira delas é inerente às pesquisas que utilizam dados secundários. A qualidade dos registros, bem como de sua obtenção, pode levar a uma perda na qualidade e tratamento estatístico. Além disso, o estudo não é representativo do estado de Mato Grosso: foram selecionados seis municípios com maior consumo de agrotóxicos no estado, razão pela qual essa seleção pode representar um viés, sobretudo no que tange à generalização dos resultados para a população total de Mato Grosso. Cabe ainda destacar a possibilidade de outro viés de seleção, relacionado à escolha intencional dos participantes. Contudo, entende-se que o estudo apresenta boa validade interna para as populações de cidades com alto consumo de agrotóxicos.
Seu desenho de corte transversal, ao avaliar fatores de exposição e desfechos simultaneamente, pode resultar em causalidade reversa, que ocorre quando a exposição muda de causa para desfecho, após o indivíduo conhecer seu status de doença. Como exemplo, o conhecimento sobre a intoxicação aguda, por parte do entrevistado, poderia alterar condições de variáveis classificadas como de exposição, tais como mudança de residência para locais mais afastados de cultivos sob ação de agrotóxicos. Outra limitação a considerar são as informações autorreferidas, mesmo que confirmadas por diagnóstico médico, dada a possibilidade de subestimarem a verdadeira prevalência de intoxicações possivelmente subdiagnosticadas.30
Com o aumento do consumo nacional de agrotóxico na última década, juntamente com a aplicação exagerada e, até certo ponto, pouco controlada por órgãos governamentais, tanto no agronegócio quanto na agricultura familiar, crescem as evidências de que a utilização dos agrotóxicos deixa de ser uma questão específica relacionada à produção agrícola para se afirmar como um problema de Saúde Pública.
Os resultados apresentados neste artigo indicam que os agrotóxicos utilizados intensivamente na produção agrícola da região estudada levam a maiores ocorrências de intoxicações agudas nos trabalhadores e na populações mais próximas. Alguns elementos podem contribuir para o entendimento desse fenômeno. As ações de saúde e segurança dos trabalhadores rurais, muitas vezes, limitam-se à fiscalização do uso dos equipamentos de proteção individual (EPIs). A carência de conhecimento dos riscos do contato com agrotóxicos, devida à baixa escolaridade, e a residência nas proximidades de lavouras de milho e algodão não devem ser negligenciadas, porque também estão entre os principais problemas associados ao crescente número de intoxicações agudas por agrotóxicos e, consequentemente, ao aumento na ocorrência de desfechos adversos na saúde da população rural, especialmente de trabalhadores agrícolas na idade dos 18 aos 59 anos.
Por fim, recomenda-se a realização de novos estudos para melhor se avaliar a exposição da população investigada, e de outras populações rurais brasileiras, utilizando-se de um delineamento longitudinal, com marcadores biológicos capazes de medir e compreender, com maior amplitude e acurácia, a complexidade da exposição aguda aos agrotóxicos e seus efeitos sobre a saúde. É importante que sejam realizadas intervenções no curto, médio e longo prazos, para reduzir ou minimizar os prejuízos à saúde das populações sob esse risco.