Introdução
O agrupamento de municípios conforme suas semelhanças é uma etapa importante para a definição e avaliação de políticas públicas. O porte populacional é frequentemente utilizado para estratificação de municípios brasileiros em estudos da área da Saúde.1-4 A situação socioeconômica e sanitária da população, a conformação espacial e a estruturação dos serviços de saúde também influenciam as condições de gestão da atenção à saúde. Assim, avaliar o desempenho dessa atenção exige a estratificação dos municípios em grupos homogêneos, em que se considere, além do porte populacional, tais condições e sua influência. Com tal preocupação, foi desenvolvido, sobre dados do período censitário de 2010, um modelo de estratificação de municípios brasileiros para avaliação de desempenho da gestão em saúde, aqui considerado estudo-base.5
Entre 2010 e 2015, o Brasil vivenciou duas eleições nacionais e uma série de denúncias de corrupção, e iniciou um processo de recessão econômica que afetou os municípios de forma não linear. Portanto, admite-se que os dados utilizados para tal estratificação podem apresentar variações no período de cinco anos, em virtude dessas mudanças políticas, econômicas e sociais, influenciando as condições de gestão em saúde nos municípios. A presunção de tais alterações motiva a recontagem populacional e a realização de outras pesquisas de base populacional nesse intervalo de tempo, uma vez que os estimadores podem não representar a realidade durante o período de dez anos.6-10
O objetivo do presente estudo foi descrever a atualização da estratificação dos municípios brasileiros para avaliação do desempenho em saúde com dados do período intercensitário (2015), apresentando as variações de classificação, mediante comparação com o período censitário (2010).
Métodos
Estudo descritivo, metodológico, com estratificação de municípios brasileiros segundo porte populacional e condições influentes da gestão em saúde, utilizando-se de dados secundários de acesso público.
A estratificação do estudo-base5 utilizou dados de 2010, considerando-se as medidas elencadas a seguir:
(i) revisão de propostas de classificação de municípios e definição de categorias de indicadores;11-13
(ii) pré-seleção dos indicadores, considerando-se a consistência e estabilidade dos valores segundo porte populacional, validade conceitual na literatura, disponibilidade em base de dados e desagregação para o nível municipal; e identificação de indicadores-síntese (r>0,7 com a maioria dos demais) e de indicadores complementares (r<0,7 com os indicadores-síntese), por meio do teste de correlação;
(iii) análise fatorial para identificação dos indicadores com maior peso, composta de três eixos, ‘características demográficas’ (densidade demográfica e taxa de urbanização), ‘capacidade de financiamento’ (PIB per capita) e ‘poder aquisitivo da população’ (cobertura de planos de saúde e percentual de extrema pobreza); e relativização dos indicadores, utilizando-se de escala monotônica (0-1), onde 1 corresponde ao maior e 0 ao menor valor obtido;
(iv) soma dos indicadores convertidos;
(v) redução dos valores dos eixos aos escores 0, 1 e 2, a partir da amplitude de quartil; e
(vi) soma dos escores nos três eixos, para definição da condição que influencia a gestão,
- influente desfavorável (até 2 pontos);
- influente regular (3 a 4 pontos); ou
- influente favorável (5 a 6 pontos); e
- associação dos influentes com o porte populacional, considerada um fator específico, dividindo-se os municípios entre pequeno porte (com menos de 25 mil habitantes), médio porte (municípios com 25 a 100 mil hab.) e grande porte (municípios com mais de 100 mil hab.) (Figura 1).
A aplicação intercensitária assumiu os indicadores apontados como de maior peso na análise fatorial e atualizou-os para o ano-base de 2015, período coincidente com variações políticas influentes nos contextos municipais brasileiros,6 com ajustes quanto à origem dos dados em alguns indicadores. A densidade demográfica assumiu as projeções populacionais para o ano de 2015,14 enquanto a taxa de urbanização manteve os dados de 2010 por não haver atualização intercensitária, tampouco identificação de informação similar adequada ao objetivo do estudo. O PIB per capita8 e a cobertura de planos de saúde15 foram atualizados com dados de 2015. O percentual de extrema pobreza não possui atualização na Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) para o ano de 2015, e foi substituído pelo percentual de extrema pobreza do Cadastro Único para Programas Sociais (CadÚnico),16 com dados do Programa Bolsa Família,17 programa de transferência direta de renda mediante condicionalidades, com atualização constante de dados. Assume-se que o número de pessoas cadastradas nesse sistema represente as pessoas em situação de pobreza e extrema pobreza, por município do país, sendo adotadas tais informações para o ano de 2015.
Desta forma, na atualização intercensitária da classificação dos municípios, foram incluídos 5.562 municípios do total de 5.570 existentes no país. Cinco foram excluídos por terem sido criados no ano de 2013, o que inviabilizaria a comparação com a classificação obtida com dados de 2010, e três por não constarem no banco de dados da Agência Nacional de Saúde (ANS),15 com consequente ausência dos dados de cobertura de plano de saúde.
Destaca-se que, na etapa de transformação dos indicadores em escala monotônica, os valores considerados outliers foram convertidos para 1, valor máximo da escala, desconsiderando-se o valor discrepante para a relativização. As análises foram realizadas em planilhas eletrônicas e com uso do software Epi Info 7TM.
Resultados
Os indicadores propostos apontam para uma grande variabilidade, demarcando as características de cada estrato. Em 2015, a variabilidade é semelhante à observada em 2010 (Tabela 1). Para o período intercensitário, a grande maioria dos municípios (75,0%) são de pequeno porte, poucos deles com gestão favorável (10,4%). Os municípios de médio porte (19,5%) dividem-se homogeneamente entre as categorias de influência na gestão. Quanto à distribuição regional, 63,7% dos municípios nordestinos são de pequeno porte com influentes desfavoráveis; 47% dos de grande porte estão na região Sudeste; e as regiões Centro-Oeste, Sudeste e Sul apresentam concentração de seus municípios no estrato de pequeno porte com condições regulares de gestão, respectivamente 61,2%, 40,6% e 47,0% (Tabela 2).
Estrato | Número de municípios | População (hab.) | Densidade demográfica (hab./km²) | Domicílios urbanos (%) | PIBa per capita (por R$1 mil) | População em extrema pobreza (%) | População sem plano de saúde (%) | |||||||
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2010 | 2015 | 2010 | 2015 | 2010 | 2015 | 2010 | 2015b | 2010 | 2015 | 2010 | 2015 | 2010 | 2015 | |
Grande | 283 | 304 | 369.034 | 377.001 | 1.278,72 | 1.289,60 | 94,15 | 93,41 | 21,80 | 31,29 | 4,71 | 12,72 | 72,45 | 72,24 |
(830.645) | (852.018) | (2.194,51) | (2.258,26) | (8,72) | (10,17) | (16,58) | (19,61) | (4,92) | (11,13) | (16,10) | (14,55) | |||
Médio favorável | 364 | 370 | 50.335 | 50.464 | 160,52 | 164,97 | 91,18 | 90,05 | 24,27 | 36,54 | 2,58 | 7,88 | 76,98 | 76,31 |
(20.168) | (20.826) | (246,17) | (263,90) | (6,20) | (7,49) | (25,51) | (31,07) | (2,23) | (6,28) | (12,23) | (11,52) | |||
Médio regular | 341 | 378 | 46.239 | 46.193 | 96,06 | 101,66 | 75,26 | 74,79 | 10,46 | 17,51 | 11,49 | 27,13 | 93,56 | 92,79 |
(19.794) | (19.478) | (214,14) | (228,76) | (13,13) | (13,62) | (7,43) | (15,20) | (6,50) | (13,35) | (5,11) | (5,35) | |||
Médio desfavorável | 298 | 332 | 28.278 | 39.000 | 38,08 | 39,17 | 49,83 | 49,93 | 4,85 | 8,15 | 30,29 | 53,37 | 98,71 | 98,51 |
(12.573) | (14.076) | (47,08) | (47,54) | (14,61) | (15,08) | (2,34) | (3,20) | (8,88) | (11,40) | (1,31) | (1,24) | |||
Pequeno favorável | 618 | 528 | 11.005 | 11.309 | 52,32 | 57,25 | 83,27 | 81,87 | 23,88 | 35,11 | 2,16 | 8,23 | 82,13 | 79,55 |
(6.583) | (6.603) | (63,90) | (119,27) | (11,59) | (12,50) | (23,09) | (26,21) | (1,95) | (6,15) | (11,04) | (11,52) | |||
Pequeno regular | 1.911 | 1.832 | 8.471 | 8.574 | 28,05 | 28,28 | 65,50 | 65,53 | 13,49 | 21,23 | 7,32 | 19,09 | 94,71 | 93,18 |
(6.009) | (6.007) | (60,68) | (39,68) | (16,17) | (16,50) | (9,90) | (18,10) | (5,95) | (12,94) | (6,21) | (6,78) | |||
Pequeno desfavorável | 1.750 | 1.810 | 10.191 | 10.237 | 29,57 | 30,81 | 44,70 | 45,67 | 6,06 | 9,36 | 25,38 | 48,02 | 98,66 | 98,30 |
(5.976) | (5.983) | (33,44) | (35,13) | (16,01) | (16,75) | (3,11) | (4,73) | (11,46) | (18,38) | (2,42) | (3,27) |
a) PIB: produto interno bruto.
b) Dados não coletados em período intercensitário. Foram reaplicados dados de 2010.
Região | Classificação intercensitária | |||||||||||||
---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|
Grande | Médio favorável | Médio regular | Médio desfavorável | Pequeno favorável | Pequeno regular | Pequeno desfavorável | ||||||||
n | % | n | % | n | % | n | % | n | % | n | % | n | % | |
Norte | 26 | 5,8 | 4 | 0,9 | 47 | 10,5 | 78 | 17,4 | 4 | 0,9 | 127 | 28,4 | 162 | 36,2 |
Nordeste | 62 | 3,5 | 10 | 0,6 | 168 | 9,4 | 232 | 13,2 | 3 | 0,2 | 168 | 9,5 | 1142 | 63,7 |
Centro-Oeste | 21 | 4,5 | 37 | 8,0 | 28 | 6 | 1 | 0,2 | 49 | 10,5 | 285 | 61,2 | 44 | 9,4 |
Sudeste | 143 | 8,6 | 212 | 12,7 | 92 | 5,5 | 11 | 0,7 | 297 | 17,8 | 677 | 40,6 | 236 | 14,2 |
Sul | 52 | 4,4 | 127 | 10,7 | 31 | 2,6 | 2 | 0,2 | 227 | 19,1 | 558 | 47,0 | 191 | 16,1 |
Brasil | 304 | 5,5 | 390 | 7,0 | 366 | 6,6 | 324 | 5,9 | 580 | 10,4 | 1.815 | 32,7 | 1.775 | 31,9 |
A comparação das estratificações com dados censitários e intercensitários indicou mudanças na classificação dos municípios. Ocorreram alterações devidas, exclusivamente, à mudança no porte populacional em 108 municípios (1,9%); e em 21 (0,4%), houve mudança de porte e de condições que influenciam a gestão. Os influentes de gestão, sem alteração de porte populacional, foram responsáveis pela alteração da classificação de 713 municípios (12,8%). No total, 842 municípios brasileiros (15,1%) foram reclassificados no período de análise, com variações regionais, destacando-se a região Norte (20,5%) (Tabela 3).
Região | Porte populacional e condições de gestão | |||||||||
---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|
Mesmo porte populacional | Mudou de porte populacional | Total | ||||||||
Mesma condição de gestão | Diferente condição de gestão | Mesma condição de gestão | Diferente condição de gestão | |||||||
n | % | n | % | n | % | n | % | n | % | |
Norte | 356 | 79,5 | 71 | 15,8 | 20 | 4,5 | 1 | 0,2 | 448 | 100,0 |
Nordeste | 1.553 | 86,7 | 189 | 10,5 | 41 | 2,3 | 9 | 0,5 | 1.792 | 100,0 |
Centro-Oeste | 400 | 85,8 | 57 | 12,2 | 5 | 1,1 | 4 | 0,9 | 466 | 100,0 |
Sudeste | 1.415 | 84,8 | 223 | 13,4 | 27 | 1,6 | 3 | 0,2 | 1.668 | 100,0 |
Sul | 996 | 83,8 | 173 | 14,6 | 15 | 1,3 | 4 | 0,3 | 1.188 | 100,0 |
Brasil | 4.720 | 84,9 | 713 | 12,8 | 108 | 1,9 | 21 | 0,4 | 5.562 | 100,0 |
Discussão
Organizar os municípios brasileiros em grupos homogêneos é uma importante ferramenta para desenvolver estudos de desempenho da gestão em saúde. Os resultados das estratificações demonstram que o porte populacional é insuficiente para essa classificação, haja vista a variação dos influentes de gestão em cada estrato de porte populacional. Aspectos demográficos, de financiamento e econômicos são importantes na caracterização dos municípios18-22 e sofrem, juntamente com o porte populacional, modificações ao longo dos anos.6,23,24
A maioria dos municípios brasileiros são de pequeno porte e classificados com influentes de gestão regular ou desfavorável, com tendência a (i) menor capacidade técnica e administrativa para garantir uma gestão adequada25 e (ii) alto percentual de ineficiência nas ações e resultados em saúde.26 Estes fatos reforçam a necessidade de atuação em redes regionais de atenção à saúde, como uma alternativa para economia de escala e qualificação das ações em saúde, assegurando melhor acesso e qualidade na prestação desses serviços à população.21
A comparação das classificações com dados intercensitários (atual) e dados censitários (estudo-base) identifica mais de 15% dos municípios mudando de estrato, tendo as condições de gestão como principais fatores de mudança. As variáveis utilizadas sintetizam a condição de gestão municipal, sendo propostas pelo estudo-base a partir de análise fatorial de 28 variáveis identificadas na literatura como importantes para a gestão em saúde. Taxa de urbanização e densidade demográfica diferenciam municípios mais urbanizados daqueles com população mais dispersa, com maiores dificuldades para alocação de recursos e acesso; PIB per capita indica as diferenças na capacidade de investimento próprio em saúde; e dependência da população dos serviços públicos de saúde pode ser aferida pela cobertura de plano privado de saúde e pelo percentual da população em extrema pobreza.
A mudança de porte foi a responsável exclusiva por apenas 108 (1,9%) dos municípios reclassificados. De acordo com o presente estudo, se 842 (15,5%) dos municípios mudaram de estrato, conclui-se que as características associadas às condições de gestão modificam-se no intervalo de cinco anos e provocam a maior parte das mudanças entre estratos.
No período de 2010 a 2015, o país registrou um incremento do PIB, com ligeiro aumento nas despesas empenhadas em ações e serviços públicos de saúde.27 Municípios com maior crescimento do PIB e da renda per capita tendem a possuir mais recursos para programas sociais de transferência de renda, gerando maior redução da desigualdade de renda e da pobreza.28 Além disso, no que se refere ao Programa Bolsa Família, desde sua implementação foram constatados avanços expressivos em termos de diminuição do número de pessoas em situação de extrema pobreza,29 o que reforça a mobilidade do indicador e a necessidade de reconsideração frequente.
Destaca-se que, no eixo das características demográficas, um dos indicadores componentes da condição de gestão, a taxa de urbanização, repetiu os dados de 2010. Não há coleta intercensitária dessa informação. Outro dado de urbanização identificado, calculado pela Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa),30 trata de concentração espacial de domicílios e não de sua identificação como zona urbana ou rural. Desta forma, se considerados dados mais atuais de taxa de urbanização, poder-se-ia identificar mais municípios com mudança de estratos do que os encontrados por este trabalho.
Após cinco anos, ainda é identificada grande variabilidade dos indicadores entre os estratos. A reaplicação do método proposto confirma sua validade interna e coerência com o referencial teórico do estudo-base. A atualização da estratificação visa fornecer aos pesquisadores subsídios para avaliação de desempenho da atenção à saúde de municípios em condições semelhantes de território, nível de desenvolvimento econômico e papel regional. Ela busca ampliar as alternativas utilizadas com frequência por pesquisadores e serviços, pautadas apenas no porte populacional2-4 ou que utilizam, separadamente, um ou outro fator, como o índice de desenvolvimento humano municipal (IDH-M) ou a cobertura da Estratégia Saúde da Família (ESF).20-22 Tais opções pareceram insuficientes para identificar estratos homogêneos de municípios, a partir da análise apresentada.