Introdução
O Brasil é referência mundial em transplantes, com aproximadamente 96% dos procedimentos financiados pelo Sistema Único de Saúde (SUS) no ano de 2018, em todo o país.1,2 Há dois tipos de transplante: intervivos, menos comum, possível apenas para alguns órgãos, como o rim; e o transplante de doador falecido. Neste segundo caso, o transplante de órgãos somente é considerado quando (i) o doador recebe diagnóstico de morte encefálica, (ii) o órgão-alvo da doação mantém-se em funcionamento, (iii) o consentimento dos familiares é obtido e, ademais, (iv) conta-se com o consentimento expresso do receptor. Tal sistemática foi estabelecida com a publicação da Lei no 9.434/97, posteriormente alterada pelo Decreto no 9.175/2017, o que permitiu a implantação do sistema centralizado de captação e distribuição de órgãos no país. No âmbito do SUS, as informações sobre transplantes de órgãos e tecidos são gerenciadas pelo Sistema Nacional de Transplantes.3,4
Uma vez constatada a necessidade do transplante, o candidato é inscrito em uma fila de espera única e exclusiva para cada órgão. A principal particularidade dessas listas reside nas especificações de alocação de prioridade dos pacientes, considerando-se não apenas a ordem de ingresso como, também, critérios fundamentados relativos a condições médicas, principalmente relacionadas à compatibilidade e gravidade da doença.5 A opção pelo transplante como modalidade terapêutica constitui um tratamento em si, seguro e eficaz, dada a otimização do procedimento cirúrgico, seu acesso gratuito, o advento de medicamentos imunossupressores e a ampliação do entendimento dos mecanismos de rejeição e compatibilidade.6,7 Porém, transplante não significa cura do problema de saúde: o receptor permanecerá, por toda a vida, sob os devidos cuidados pós-transplante.
A quantidade de transplantes realizados, a despeito das estatísticas crescentes a cada ano, é substancialmente inferior à necessidade da população do país. A proporção do número de candidatos à espera de um transplante não é correspondida pelo número de doadores disponíveis, insuficientes para atender a essas necessidades,2,6,8,9 o que pode representar uma desigualdade de acesso. Este trabalho considerou as desigualdades sociais determinantes do acesso ao procedimento, decorrentes da ocupação de posições distintas na estrutura social de produção e, consequentemente, do benefício de um serviço cuja disponibilidade é escassa.10
Ademais, quando se aborda a necessidade de transplantes no Brasil, há outros fatores associados a considerar. Entre tais fatores, destacam-se as baixas taxas de notificação de potências doadores e de efetivação da doação, atribuíveis a contraindicações médicas, recusa dos familiares, desejo de não doação por parte do potencial doador em vida, demora no diagnóstico de morte encefálica, crenças religiosas ou culturais, além de falta de conhecimento e informação sobre doação de órgãos.9,11 Dados recentes do Registro Brasileiro de Transplantes mostram uma pequena redução na taxa de doadores efetivos, o que pode ser justificado pela publicação da nova resolução do Conselho Federal de Medicina, que exigiu capacitação específica para o diagnóstico médico de morte encefálica.12
A literatura brasileira sobre o tema de transplantes é limitada, carecendo de informações sobre muitas questões ligadas ao tema.2 Frente à necessidade de mais estudos sobre o transplante de órgãos no Brasil, este trabalho teve como objetivo apresentar a distribuição dos transplantes de órgãos sólidos no país, informações acerca da lista de espera (demanda) por esses órgãos e origem dos pacientes transplantados.
Métodos
Trata-se de estudo descritivo, com dados de transplantes de órgãos sólidos realizados no Brasil. As fontes dos dados foram as Centrais Estaduais de Transplantes e o Sistema de Informações Hospitalares do Sistema Único de Saúde (SIH/SUS),13 mediante acesso ao sítio eletrônico do Departamento de Informática do SUS (Datasus),14 além do Registro Brasileiro de Transplantes, com base nas estatísticas disponibilizadas pela Associação Brasileira de Transplantes de Órgãos (ABTO).15
Os dados levantados dessas fontes, por cada Unidade da Federação (UF), referem-se ao recorte temporal de 2001 a 2017 e foram extraídos por um mesmo pesquisador, de forma padronizada. A posteriori, os mesmos dados foram checados por mais um membro componente da equipe envolvida. A pesquisa foi estruturada pela busca da variável, seguida da estratificação por ano e UF, correlacionada aos órgãos sólidos a serem analisados. Tais dados foram obtidos durante os meses de outubro e novembro de 2018, extraídos de cada uma das fontes no mesmo dia, para evitar o viés decorrente das prováveis atualizações dos sistemas.
As variáveis relacionadas aos transplantes de órgãos sólidos, considerando-se a estratificação por ano, tipo de órgão e UF, foram a frequência absoluta de procedimentos realizados, a demanda existente (fila de espera) e a frequência absoluta de Autorizações para Internação Hospitalar (AIH-SUS) registradas. Por órgãos sólidos, compreende-se coração, pulmão, rim, pâncreas e fígado. Cumpre destacar que a fila de pacientes não é definida pela UF de residência do paciente e sim pela UF do centro de transplante onde o paciente é inscrito na lista de espera.
Os dados foram organizados utilizando-se o programa Excel, analisados de forma descritiva, neste mesmo programa, e georreferenciados pelo aplicativo QGIS versão 2.18.24, gerando mapas de distribuição ponderada, por UF, para cada análise apresentada. Na definição dos pontos de corte das legendas, utilizou-se o critério de intervalos iguais nas figuras em que se comparam mapas com a mesma informação de anos distintos, assim como o critério de quebras naturais nas figuras que comparam mapas com informações distintas ou com apenas uma informação.
Foram descritos os centros de transplante do país, por região e UF, a partir dos dados disponíveis no Registro Brasileiro de Transplantes da ABTO,16 logo organizados de acordo com o credenciamento de cada instituição por tipo de órgão sólido.
Foram incluídos na análise os dados referentes aos transplantes de órgãos sólidos, ou seja, coração, pulmão, rim, pâncreas e fígado, além do transplante de pâncreas associado a rim (passível de ocorrer simultaneamente), para cada UF do país. A apresentação dessas informações permitiu a obtenção do acumulado de transplantes no período, sendo selecionados os anos de 2001, 2009 e 2017 para se observar a evolução temporal dos transplantes.
A seguir, os dados obtidos das Centrais Estaduais de Transplantes foram compilados e organizados por tipo de órgão, de forma a se identificarem as UFs que realizaram os procedimentos de transplante e sua frequência absoluta no período. Destaca-se que, por haver números bastante distintos de transplante segundo o tipo de órgão sólido, houve a necessidade do uso de escalas diferentes para a apresentação dos achados. Portanto, para fins comparativos, foram extraídos dados da população residente no país no último ano censitário (Censo Demográfico 2010).17 Além disso, os dados populacionais permitiram estimar a taxa de transplante por milhão de habitantes no Brasil, no primeiro e último ano de observação.
Os dados relativos à lista de espera por órgãos sólidos, por UF, foram extraídos do Registro Brasileiro de Transplantes disponibilizado no sítio eletrônico da ABTO14 referente ao mês de dezembro de 2017. Neste caso, providenciou-se a somatória de todos os pacientes listados, independentemente do órgão.
Utilizou-se o SIH/SUS15 em razão da característica cirúrgica e hospitalar do procedimento de transplante, para a identificação da origem dos pacientes; aqui, os dados foram descritos e analisados com base na AIH-SUS, para se identificarem os locais de residência dos pacientes transplantados.
Por se tratar de dados públicos e não nominais, não houve necessidade de o projeto do estudo ser submetido a análise de um Comitê de Ética em Pesquisa (CEP).
Resultados
A distribuição dos centros de transplantes nas UFs é apresentada na Tabela 1, juntamente com a população estimada pelo Censo Demográfico de 2010. Apesar de presentes em todas as grandes regiões do território brasileiro, percebeu-se maior concentração de centros de transplantes nas regiões Sudeste e Sul, as únicas a dispor de centros aptos ao transplante todos os tipos de órgãos sólidos. Primeiramente o Norte, logo seguido pelo Centro-Oeste, apresentaram menor disponibilidade de centros de transplantes no período analisado; inclusive, não havia nessas regiões um único centro que realizasse transplantes de pulmão e pâncreas. Roraima, Amapá e Tocantins, na região Norte, não possuíam centro habilitado. O órgão sólido com o maior número de centros de transplantes ativos foi o rim, com 129 unidades.
Região (proporção populacional em %) | População residente/ Censo 2010/IBGEa | Frequência absoluta e relativa (%) de centros de transplantes | Unidade da Federação | Centros de transplantes disponibilizados na ABTOb por tipo de órgão sólido (n) | Centros de transplantes (n)c | |||||
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Coração | Fígado | Pâncreas | Pâncreas + rim | Pulmão | Rim | |||||
Centro-Oeste (7,3) | 14.058.094 | 11 (7,2) | 3 | 3 | - | - | - | 9 | 11 | |
2.570.160 | Distrito Federal | 1 | 2 | - | - | - | 4 | 5 | ||
6.003.788 | Goiás | 2 | 1 | - | - | - | 4 | 5 | ||
3.035.122 | Mato Grosso | - | - | - | - | - | - | - | ||
2.449.024 | Mato Grosso do Sul | - | - | - | - | - | 1 | 1 | ||
Nordeste (27,8) | 53.081.950 | 33 (21,6) | 6 | 12 | - | 3 | 2 | 26 | 33 | |
3.120.494 | Alagoas | 1 | - | - | - | - | 4 | 4 | ||
14.016.906 | Bahia | 1 | 3 | - | - | 1 | 7 | 7 | ||
8.452.381 | Ceará | 1 | 3 | - | 2 | 1 | 6 | 7 | ||
6.574.789 | Maranhão | - | 1 | - | - | - | 1 | 1 | ||
3.766.528 | Paraíba | - | 1 | - | - | - | 2 | 3 | ||
8.796.448 | Pernambuco | 2 | 4 | - | 1 | - | 3 | 6 | ||
3.118.360 | Piauí | - | - | - | - | - | 2 | 2 | ||
3.168.027 | Rio Grande do Norte | - | - | - | - | - | 2 | 2 | ||
2.068.017 | Sergipe | 1 | - | - | - | - | 1 | 1 | ||
Norte (8,3) | 15.864.454 | 7 (4,6) | - | 1 | - | - | - | 7 | 7 | |
733.559 | Acre | - | 1 | - | - | - | 1 | 1 | ||
669.526 | Amapá | - | - | - | - | - | - | - | ||
3.483.985 | Amazonas | - | - | - | - | - | 1 | 1 | ||
7.581.051 | Pará | - | - | - | - | - | 4 | 4 | ||
1.562.409 | Rondônia | - | - | - | - | - | 1 | 1 | ||
450.479 | Roraima | - | - | - | - | - | - | - | ||
1.383.445 | Tocantins | - | - | - | - | - | - | - | ||
Sudeste (42,1) | 80.364.410 | 66 (43,1) | 18 | 26 | 4 | 8 | 3 | 55 | 66 | |
3.514.952 | Espírito Santo | 2 | 1 | - | - | - | 2 | 2 | ||
19.597.330 | Minas Gerais | 3 | 7 | - | 2 | - | 19 | 20 | ||
41.262.199 | São Paulo | 10 | 12 | 4 | 6 | 3 | 23 | 30 | ||
15.989.929 | Rio de Janeiro | 3 | 6 | - | - | - | 11 | 14 | ||
Sul (14,5) | 17.762.891 | 36 (23,5) | 9 | 13 | 3 | 3 | 2 | 30 | 36 | |
10.444.526 | Paraná | 5 | 6 | 3 | - | - | 14 | 16 | ||
10.693.929 | Rio Grande do Sul | 3 | 3 | - | 2 | 2 | 10 | 12 | ||
6.248.436 | Santa Catarina | 1 | 4 | - | 1 | - | 6 | 8 | ||
TOTAL | 36 | 55 | 7 | 14 | 7 | 129 | 153 |
a) IBGE: Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística.
b) ABTO: Associação Brasileira de Transplante de Órgãos.
c) O número de centros de transplantes não consiste, necessariamente, da soma dos locais que transplantam órgãos sólidos, pois um mesmo centro pode realizar diferentes transplantes.
O crescimento do número de transplantes é apresentado na Figura 1. Na comparação da frequência absoluta nacional entre 2001 e 2017, verificou-se aumento de cerca de 150%, crescendo de 3.520 transplantes em 2001 para 8.669 transplantes em 2017. Considerando-se a população residente, por milhão de habitantes, essa taxa representou aumento de 108%, crescendo de 20,0 transplantes por 1 milhão de habitantes em 2001 para 41,7 em 2017. Quando se observa todo o período sob análise, foram registrados 99.805 transplantes de órgãos sólidos.
Pela distribuição espacial, o crescimento do procedimento, por UF, acusou maior concentração no eixo Sul-Sudeste, onde se encontravam 66,6% dos centros de transplantes. São Paulo foi a UF com o maior número de centros de transplantes e o maior número de transplantes realizados.
Os dados de transplantes de órgãos sólidos efetivados entre 2001 e 2017 apontaram o transplante de rim como o mais frequente, com 70.032 (70,2%), seguido de fígado (22.078; 22,1%), coração (3.793; 3,8%), pâncreas associado a rim (2.119; 2,1%), pulmão (1.014; 1,0%) e pâncreas isolado (878; 0,8%).
Ainda sobre à realização do procedimento discriminado por órgão (Figura 2), as regiões Sul e Sudeste referiram as maiores frequências de transplantes para todos os órgãos analisados, sendo o transplante renal o de maior ocorrência em todo o território nacional. Na região Centro-Oeste, a UF de maior expressão foi o Distrito Federal, onde, além do transplante renal, destacaram-se os transplantes hepático e cardíaco. Na região Nordeste, os dados do Ceará e de Pernambuco privilegiaram os transplantes de rim, fígado, coração, e pâncreas associado a rim; a Bahia se destacou na realização de transplantes hepáticos. No Norte, o Pará apresentou o melhor indicador de transplante renal da região, embora considerado baixo se comparado ao mesmo indicador para as UFs citadas anteriormente. Também merece citação o Acre, como o estado mais ativo da região Norte quando se trata de transplante hepático, desde que o centro de transplantes da região iniciou suas atividades em 2004.
A distribuição de pacientes adultos e pediátricos ativos em lista de espera para transplante de órgãos sólidos, no ano de 2017, é apresentada na Figura 3. Novamente, o eixo Sul-Sudeste foi responsável pela maior fila de espera para transplantes. Cinco UFs - Mato Grosso, Amazonas, Roraima, Amapá e Tocantins - não apresentaram nenhum paciente em lista de espera. A maior fila de espera encontrada foi para transplante renal, com 21.477 (90,2%) pacientes, considerando-se a situação de inscritos na lista em dezembro de 2017, para todos os órgãos sólidos.
A partir da análise das AIHs de procedimentos de transplante, pôde-se verificar a frequência absoluta de transplantes por UF de residência do paciente (Figura 4). Nesta análise, mais uma vez, o eixo Sul-Sudeste apresentou a maior concentração de pacientes transplantados, a que se juntaram Ceará e Pernambuco no Nordeste. As UFs com menor frequência desses procedimentos foram Roraima, Amapá e Tocantins, respectivamente com apenas 46, 47 e 96 transplantes realizados em residentes desses estados, entre 2001 e 2017.
Discussão
Os resultados apontam para uma desigualdade de distribuição de centros de transplantes entre as grandes regiões geográficas do Brasil, concentrados principalmente no eixo Sul-Sudeste, onde, consequentemente, verificou-se maior número de transplantes. Houve ainda aumento - em torno de três vezes - no número de procedimentos realizados no Brasil, no período investigado, com destaque para São Paulo enquanto UF de maior crescimento de transplantes. O rim foi o órgão transplantado com maior frequência; praticamente todo o país dispõe de centros credenciados para essa modalidade terapêutica, possivelmente por ser o órgão que apresenta a maior fila de espera. Em segundo lugar está o fígado, também com alta frequência de procedimentos, embora com menor distribuição pelo país de centros habilitados no transplante desse órgão.
O número de transplantes realizados no Brasil cresceu no período de 2001 a 2017. Em parte, esse crescimento se deve ao aumento no número de centros de transplante habilitados. Ainda assim, é possível perceber que os centros de transplantes estão concentrados, em sua maioria, nas regiões Sul e Sudeste, o que demonstra distribuição desigual do serviço no território brasileiro.18,19 Ainda, comparando-se as UFs, as desigualdades são notáveis: São Paulo responde por cerca de dez mil transplantes, quantitativo equivalente à soma de transplantes realizados nas 17 UFs de menores índices.
O tratamento de insuficiência renal por meio de hemodiálise e diálise peritoneal mantém-se com destaque no cenário brasileiro. Entretanto, do ponto de vista dos custos, o transplante de rim ainda se mostra benéfico em relação às demais formas, a despeito de significar apenas 6% dos gastos com tratamento da doença renal crônica. Nos últimos anos, as regiões Norte e Nordeste apresentaram maior taxa de incidência acumulada de pacientes em diálise pelo SUS, em números absolutos, reforçando a relação social e econômica da doença renal crônica. Estima-se que atualmente, em média, esse número seja de 610 pessoas por milhão de habitantes no país, variando de 473 no Norte a 710 no Centro-Oeste. Segundo o Inquérito Brasileiro de Diálise Crônica/2017, a taxa anual de mortalidade atribuída a diálise é de 19,9%.20,21
Essa distribuição desigual acarreta alguns problemas, relacionados ao acesso a esse tratamento por parte de pacientes de algumas regiões. É o caso, por exemplo, dos residentes na região Norte, que enfrentam dificuldade no diagnóstico e tratamento para as doenças de base ou mesmo para hemodiálise, favorecendo o agravamento de sua situação de saúde. Além disso, Mato Grosso, Amazonas, Roraima, Amapá e Tocantins se encontravam com lista de espera zerada, quando da conclusão deste manuscrito, provavelmente, não por ausência de demanda (pacientes necessitados de tratamento via transplante) e sim pelo fato de não haver serviços de transplante credenciados, e, consequentemente, ausência de candidatos a transplante, gerando subnotificação das necessidades de saúde. Nessas UFs, é necessário que o paciente se desloque a outra UF para ser listado e, consequentemente, ter acesso a transplante.
A situação de transplantado exige que o paciente resida próximo ao centro de transplante ou tenha disponibilidade de transporte rápido até ele. A presença de cuidador também é fundamental para o tratamento. Sendo assim, poucos pacientes de outras UFs dispõem de condições financeiras de morar e manter um cuidador a sua disposição durante o processo de inclusão na lista de espera, o tempo de espera até o transplante e o tempo transcorrido entre o pós-transplante imediato e a alta. Por vezes, todo esse período somado pode levar meses, e facilmente ultrapassar mais de um ano.
Ou seja, para o transplante ser considerado prioritário, além dos aspectos clínicos6,7 já abordados, a condição financeira pode permitir maior acesso ao procedimento pelas pessoas de maior renda, conforme identificado na concentração dos centros de transplante em grandes cidades e, especialmente, maior acesso a moradores de UFs do Sul e Sudeste. Eis uma hipótese sugestiva de maior investigação.
Como já foi dito, nas UFs onde não há oferta de serviços de transplante ou essa oferta é pequena, muitos pacientes se veem obrigados a migrar para outras regiões. É sabido que o paciente transplantado necessita de acompanhamento ambulatorial, no mínimo, pelos três primeiros meses após a cirurgia, normalmente realizada pela equipe do centro transplantador em questão.22-24 Devido a essas lacunas no serviço, existe dificuldade no acompanhamento frequente dos pacientes transplantados em outra cidade que não a de sua residência, mesmo depois de passado esse período inicial, uma vez que muitos voltam para sua UF de origem, onde encontrarão profissionais da saúde despreparados para dar continuidade a seu cuidado. A dificuldade no acesso ao tratamento e a serviços de saúde capacitados nesse sentido, no caso de intercorrências, também deve ser levada em consideração, haja vista o prejuízo que pode causar à recuperação e tratamento de longo prazo.
Destaca-se que a falta de acesso do receptor ao centro de transplantes ou a equipes especializadas nesse atendimento pode causar aos pacientes redução da qualidade de vida, diminuição na sobrevida dos transplantados, dificuldades no tratamento imunossupressor, e até mesmo a morte decorrente da perda do enxerto.23
Outro ponto digno de menção neste estudo é a quantidade de transplantes de rim realizados, comparada à de outros órgãos. Uma possível justificativa para esse achado estaria no fato de as doenças de base mais comuns na sociedade moderna, como hipertensão arterial e diabetes, tenderem a desencadear problemas renais nos indivíduos, levando a maior chance de falência desse órgão e maior necessidade de transplante, por conseguinte.25-26 Segundo Ribeiro e Schramm,27 atuar na prevenção e promoção da saúde é uma estratégia importante para minimizar casos necessitados de transplante. Cabe ainda observar que doadores de rins falecidos podem beneficiar até dois candidatos, além da possibilidade de doação intervivos, o que também contribui para que o transplante desse órgão tenha altos índices de procedimentos.
Listas de espera maiores no Sul e no Sudeste podem contribuir para o maior número de AIHs nas UFs dessas regiões. Além disso, há maior chance de um procedimento ocorrer no eixo Sul-Sudeste do que no Norte-Nordeste.3
No presente estudo, não foi possível acessar dados sobre os doadores e, portanto, não se identificou associação entre oferta e demanda de órgãos. Outrossim, as informações de residência dos receptores não possibilitaram uma análise do percurso realizado para o atendimento. Dessa maneira, não se pôde estimar, com precisão, as taxas por milhão de habitantes por UF, devido à migração dos pacientes. Por exemplo: o Distrito Federal realiza altas taxas de transplantes, se nos atemos a sua população, isto porque muitos pacientes têm origem em UFs diferentes. No que diz respeito aos números de centros de transplante, mais uma limitação encontrada pela pesquisa foi a indisponibilidade de informação sobre os centros efetivamente ativos.
A partir do estudo realizado, foi possível identificar como a realização de transplantes de órgãos sólidos se distribui no Brasil, a situação das listas de espera por esses órgãos e o avanço histórico do procedimento no SUS. Os achados apontam desigualdades regionais, principalmente quando se comparam as principais capitais do país com as UFs menos desenvolvidas, possivelmente decorrentes de múltiplas causas. Espera-se que este trabalho contribua para maior compreensão do cenário brasileiro de doação e transplante de órgãos, no sentido de se mapear e identificar as principais lacunas na distribuição e incentivar a realização de mais procedimentos, principalmente nas UFs da região Norte.
Conclusivamente, os resultados e análises apresentados abrem perspectivas para futuros estudos, desde sobre os custos dos procedimentos implicados nesse tipo de tratamento até, especialmente, seus determinantes sociais e de saúde, de modo a se esclarecerem as disparidades presentes na realidade brasileira de transplantes de órgãos sólidos.