Introdução
A organização do sistema nacional de saúde brasileiro está alicerçada no Sistema Único de Saúde (SUS), cuja missão é promover, de forma gratuita e universal, acesso aos serviços e programas de saúde a qualquer brasileiro que dele necessite. O sistema público convive com o sistema privado, denominado de Saúde Suplementar, cujo acesso é condicionado à capacidade de pagamento do cliente. A Saúde Suplementar se define por todo atendimento privado de saúde, realizado ou não por meio de convênio com um plano de saúde.1,2
A implementação do SUS implicou muitos avanços. Entretanto, a mudança na estrutura do sistema de saúde e a ampliação do número de locais e equipes de atendimento não garantem que esses serviços alcancem, adequadamente, a totalidade da população e suas demandas. Pesquisas indicam que fatores associados ao uso de serviços disponibilizados pela Saúde Pública são mais afetados por desigualdades sociais do que aqueles associados ao uso do sistema de saúde suplementar a ela.1,3-5
Entende-se como utilização dos serviços de saúde todo contato direto, mediante consultas médicas e hospitalizações, ou indireto, no acesso a exames preventivos e diagnósticos.6 O procedimento de entrada do usuário no SUS é uma expressão positiva do acesso à Saúde Pública, cuja utilização é influenciada por fatores relativos ao indivíduo que procura esses serviços, a exemplo do perfil de necessidades de saúde, valores e preferências.7
Entre os fatores indicados para não realização de consulta por adultos e idosos, estão: ser do sexo masculino, menor escolaridade e renda familiar.8,9
Metanálise realizada no ano de 2017 apontou que a frequência de utilização de consulta médica no ano anterior à entrevista foi de 71%.10 Noutros estudos nacionais com adultos, a taxa de consulta médica no ano anterior foi semelhante, com percentuais entre 64,8 e 74,2%.2,11,12
A compreensão dos fatores influentes na utilização ou não dos serviços de saúde, utilizando-se de pesquisas de base populacional, auxilia na percepção da demanda pelos serviços de saúde, no reconhecimento da realidade da população e na capacitação da gestão.13 Conhecer o perfil da população que não utiliza os serviços pode contribuir para a proposição de políticas de promoção do acesso dessas pessoas ao sistema de saúde e, como decorrência, para melhorar sua saúde e da população geral. Portanto, é necessário conhecer os grupos de risco para não realização de consultas médicas, no sentido de se saber quem são os indivíduos-alvo prioritários de políticas e ações da Saúde Pública.
O presente estudo teve como objetivo analisar a prevalência e os fatores associados a não realização de consulta médica nos 12 meses anteriores à entrevista realizada com indivíduos residentes na área urbana do município de Rio Grande, estado do Rio Grande do Sul (RS), Brasil, no ano de 2016.
Métodos
Estudo transversal, integrante do projeto ‘Saúde da População Riograndina’. Este projeto foi desenvolvido em 2016, com o objetivo de avaliar aspectos de saúde da população residente da cidade de Rio Grande, RS, distante cerca de 320km da capital Porto Alegre, extremo sul do Brasil. O município conta com uma população estimada em 209.378 habitantes (2017), produto interno bruto (PIB) per capita de R$ 34.997,50 (2015) e índice de desenvolvimento humano municipal (IDH-M) de 0,744.
Como critério de inclusão dos riograndinos no estudo, definiu-se (i) a idade maior ou igual a 18 anos e (ii) a residência na zona urbana do município de Rio Grande. Foram excluídos os institucionalizados em asilos, hospitais e presídios, além daqueles com incapacidade física e/ou mental para responder ao questionário apresentado pelos entrevistadores. O cálculo de tamanho amostral considerou uma frequência esperada de 10%, margem de erro de 2 pontos percentuais e nível de confiança de 95%, resultando em um n de 860 indivíduos. Após acréscimo de 10% sobre esse quantitativo, para possíveis perdas e recusas, mais 15% para o efeito do delineamento amostral, o n necessário à realização da pesquisa seria de 1.075 indivíduos. Para estudar os fatores associados, utilizou-se o nível de confiança de 95%, poder de 80%, prevalência do desfecho de 10%, frequência de expostos entre 20 e 60% e razão de prevalência de 2,0. A conclusão desse cálculo levou à obtenção de um n de 784 indivíduos. Mais uma vez, foram acrescidos a este valor 10% para compensação de possíveis perdas e recusas, 15% para efeito do delineamento amostral e 20% para controle de fatores de confusão, com um n resultante de 1.137 indivíduos.
O processo de amostragem ocorreu em dois estágios, sendo o primeiro a seleção dos setores censitários, e o segundo, a seleção dos domicílios. Para a seleção dos setores censitários, elaborou-se uma lista, em ordem decrescente, da renda mensal dos chefes da família de todos os domicílios (77.835). Realizou-se o sorteio do primeiro domicílio a ser visitado e foi estabelecido o intervalo de seleção (1.080) para identificar o setor do qual o domicílio fazia parte, totalizando 72 setores. Nesses setores censitários selecionados, obteve-se 23.439 domicílios, logo selecionados de forma sistemática e proporcional ao tamanho do setor. Foram entrevistados todos os adultos com idade a partir de 18 anos, residentes nos domicílios selecionados. Foram amostrados 711 domicílios para se contemplar o cálculo de tamanho amostral de 1.423 indivíduos, uma vez que se esperava encontrar, em média, dois moradores por domicílio com idade igual ou superior a 18 anos.
Os dados foram colhidos mediante questionário, proposto em entrevistas realizadas nos domicílios dos indivíduos selecionados, no período de abril a julho de 2016. O questionário foi aplicado por entrevistadoras previamente treinadas (recrutadas e selecionadas em fevereiro e março de 2016), com duração média de 30 minutos. Concomitantemente à coleta de dados, houve controle de qualidade em 10% da amostra, mediante reentrevista por telefone, contendo questões-chave para identificação de possíveis fraudes na aplicação do instrumento. Averiguou-se alto coeficiente de concordância (Kappa=80%). Os dados coletados foram duplamente digitados utilizando-se o software EpiData versão 3.1. Mais detalhes metodológicos acerca da pesquisa encontram-se publicados.14
A variável dependente foi a prevalência de não consultas médicas nos 12 meses anteriores à entrevista, obtida por relato do entrevistado. Foram coletadas variáveis demográficas e socioeconômicas:
- sexo (masculino; feminino);
- faixa etária (em anos: 18 a 39, 40 a 59, 60 ou mais);
- estado civil (solteiro; casado/separado/divorciado/viúvo);
- raça/cor da pele (branca; parda; preta), sendo identificados seis indivíduos autodeclarados amarelos e quatro indígenas, excluídos da análise;
- mora sozinho (não; sim);
- escolaridade (em anos de estudo: 0 a 8, 9 a 11, ≥12); e
- renda familiar (em tercis: menor; intermediário; maior).
As variáveis comportamentais analisadas foram:
- tabagismo (ser fumante no momento da coleta de dados: não; sim); e
- consumo abusivo de álcool (cinco doses ou mais para homens e quatro doses ou mais para mulheres nos últimos 30 dias: não; sim).15
Também foram coletadas variáveis relacionadas a condições de saúde:
- morbidades (número de problemas de saúde autorreferidos [definidos por diagnóstico médico]: hipertensão; diabetes; dislipidemia; doença do coração; acidente vascular cerebral [AVC]; artrite ou reumatismo; câncer; insuficiência renal crônica; doença respiratória crônica); e
- autopercepção de saúde (excelente ou muito boa; boa; regular ou ruim).
Entre as variáveis de serviços de saúde, analisou-se:
- dispõe de plano de saúde (não; sim);
- recebeu visita de agente comunitário de saúde (ACS) nos 12 meses anteriores à entrevista (não; sim);
- realizou a última consulta médica pelo SUS (não; sim);
- domicílio coberto por Unidade Básica de Saúde da Família (UBSF), referido pelo indivíduo (referido pelo entrevistado: não [ou não sabe]; sim); e
- bairro do domicílio coberto por UBSF (informação disponibilizada pela prefeitura municipal: não; sim).
Com exceção desta última, todas as variáveis foram obtidas do relato dos participantes durante a entrevista no domicílio.
A análise univariada serviu para descrever a amostra (frequência absoluta e frequência relativa). Para a análise bruta e ajustada, utilizou-se regressão de Poisson, levando-se em consideração o efeito de delineamento amostral. As medidas apresentadas foram a razão de prevalência (RP) e o intervalo de confiança de 95% (IC95%), juntamente com o valor p do teste de Wald.
A análise multivariável seguiu um modelo hierárquico, elaborado para fins de controle de possíveis fatores de confusão, considerando-se como possíveis fatores associados aqueles indicados na literatura. No modelo adotado, foram colocadas no primeiro nível as variáveis demográficas e socioeconômicas (sexo, faixa etária, raça/cor da pele, estado civil, escolaridade e renda familiar). No segundo nível, foram dispostas as variáveis comportamentais (tabagismo e consumo abusivo de álcool). No terceiro nível, coube verificar as condições de saúde (número de problemas de saúde e autopercepção da saúde). E no quarto nível, foram analisadas as variáveis relativas ao uso do serviço de saúde (dispõe de plano de saúde; recebeu visita de ACS; realizou a última consulta médica pelo SUS; domicílio coberto por UBSF [segundo o entrevistado]; bairro do domicílio coberto por UBSF [segundo a prefeitura municipal]).
Cada variável foi controlada para as demais classificadas no mesmo nível ou nos níveis acima. O nível de significância para manutenção das variáveis no modelo ajustado foi de 20%; e o nível de significância estatística, de 5% para testes bicaudais. A análise das variáveis ordinais utilizou o valor p do teste de tendência linear. As análises estatísticas foram realizadas utilizando-se o aplicativo Stata versão 11.2.
O projeto da pesquisa foi submetido ao Comitê de Ética em Pesquisa na Área da Saúde (CEPAS) da Universidade Federal do Rio Grande (FURG) e por este aprovado em março de 2016: Processo no 20/2016. Todos os participantes assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE).
Resultados
Dos 1.429 indivíduos elegíveis identificados, foram entrevistados 1.297, com 90,2% de índice de resposta. Pouco mais da metade da amostra (56,6%) era do sexo feminino, aproximadamente um quarto (24,1%) constituída de idosos, 83,6% de raça/cor da pele branca, 46,3% solteiros, 9,6% moravam sozinhos e 41,8% tinham até oito anos de estudo (Tabela 1). A mediana de renda familiar foi de R$ 2.780 (intervalo interquartílico: R$ 1.760 a R$ 4.920).
Tabela 1 - Descrição das características demográficas e socioeconômicas dos indivíduos da área urbana de Rio Grande (n=1.297), Rio Grande do Sul, 2016
Variável | n | % | |
---|---|---|---|
Sexo | |||
Masculino | 563 | 43,4 | |
Feminino | 734 | 56,6 | |
Faixa etária (em anos) | |||
18-39 | 508 | 39,1 | |
40-59 | 477 | 36,8 | |
≥60 | 312 | 24,1 | |
Raça/cor da pele (n=1.285) | |||
Branca | 1.074 | 83,6 | |
Parda | 103 | 8,0 | |
Preta | 108 | 8,4 | |
Estado civil | |||
Solteiro | 600 | 46,3 | |
Casado/separado/divorciado/viúvo | 697 | 53,7 | |
Morar sozinho (n=1.296) | |||
Não | 1.172 | 90,4 | |
Sim | 124 | 9,6 | |
Escolaridade (em anos) (n=1.295) | |||
0-8 | 541 | 41,8 | |
9-11 | 399 | 30,8 | |
≥12 | 355 | 27,4 | |
Renda familiar (em tercis) (n=1.169) | |||
Menor | 426 | 36,4 | |
Intermediário | 366 | 31,1 | |
Maior | 377 | 32,3 | |
Tabagismo | |||
Não | 1.064 | 82,0 | |
Sim | 233 | 18,0 | |
Consumo abusivo de álcool (n=1.294) | |||
Não | 1.142 | 88,2 | |
Sim | 152 | 11,8 |
A maioria dos indivíduos (55,9%) apresentava algum problema de saúde e um terço (33,7%) percebia sua saúde como regular ou ruim. Em torno da metade dos indivíduos (52,6%) dispunha de plano de saúde, cerca de um quarto (23,9%) recebeu visita de ACS, 41,4% fizeram sua última consulta médica pelo SUS, 35,0% afirmaram que seu domicílio era cadastrado em uma UBSF e 37,7% residiam em áreas cobertas por UBSF (Tabela 2).
Tabela 2 - Descrição dos dados relacionados à saúde dos indivíduos da área urbana de Rio Grande (n=1.297), Rio Grande do Sul, 2016
Variável | n | % | |
---|---|---|---|
Morbidades (número de problemas de saúde) (1.274) | |||
0 | 561 | 44,1 | |
1 | 326 | 25,6 | |
2 | 212 | 16,6 | |
3 ou mais | 175 | 13,7 | |
Autopercepção da saúde | |||
Excelente ou muito boa | 278 | 21,4 | |
Boa | 582 | 44,9 | |
Regular ou ruim | 437 | 33,7 | |
Dispõe de plano de saúde | |||
Não | 615 | 47,4 | |
Sim | 682 | 52,6 | |
Recebeu visita de ACSa | |||
Não | 987 | 76,1 | |
Sim | 310 | 23,9 | |
Realizou a última consulta médica pelo SUSb (n=1.279) | |||
Não | 749 | 58,6 | |
Sim | 530 | 41,4 | |
Domicílio coberto por UBSF,c referido pelo entrevistado (n=1.296) | |||
Não | 842 | 65,0 | |
Sim | 454 | 35,0 | |
Bairro do domicílio coberto por UBSF,c mapeada pela prefeitura municipal | |||
Não | 808 | 62,3 | |
Sim | 489 | 37,7 | |
TOTAL | 1.297 | 100,0 |
a) ACS: agente comunitário de saúde.
b) SUS: Sistema Único de Saúde.
c) UBSF: Unidade Básica de Saúde da Família.
A prevalência de não consulta ao médico nos últimos 12 meses foi de 20,0% (IC95% 17,5 a 22,6). Essa prevalência variou de 6,3% para quem tinha três ou mais problemas de saúde a 30,9% para aqueles que consumiam álcool em excesso.
A análise bruta (Tabelas 3 e 4) demonstra que estiveram associados a não realização de consulta médica nos 12 meses anteriores à entrevista: ser do sexo masculino, possuir entre zero e oito anos de escolaridade, consumir álcool ou tabaco, apresentar de zero a dois problemas de saúde, perceber sua saúde como excelente ou muito boa e boa, não dispor de plano de saúde e ter realizado a última consulta médica pelo SUS.
À exceção das variáveis ‘autopercepção da saúde’ e ‘última consulta médica pelo SUS’, as demais associações permaneceram estatisticamente significativas após a realização da análise ajustada (Tabelas 3 e 4). Além disso, a variável ‘estado civil’, que não se mostrou associada ao desfecho na primeira análise, nesse segundo momento, revelou que solteiros apresentaram uma probabilidade 36% maior de não ter consultado com médico nos últimos 12 meses.
Tabela 3 - Análise bruta e ajustada das variáveis demográficas, socioeconômicas e comportamentais dos indivíduos da área urbana de Rio Grande (n=1.297), Rio Grande do Sul, 2016
Nível | Variável | % de não consulta | Análise bruta | Análise ajustada | |||
---|---|---|---|---|---|---|---|
RP a (IC95% b) | Valor p c | RP a (IC95% b) | Valor p c | ||||
1 | Sexo | <0,01 | 0,01 | ||||
Masculino | 24,3 | 1,45 (1,14;1,85) | 1,41 (1,09;1,81) | ||||
Feminino | 16,8 | 1,00 | 1,00 | ||||
1 | Faixa etária (em anos) | 0,23 | 0,15 | ||||
18-39 | 18,5 | 1,00 | 1,00 | ||||
40-59 | 22,6 | 1,22 (0,92;1,63) | 1,31 (0,96;1,80) | ||||
≥60 | 18,6 | 1,01 (0,72;1,41) | 1,09 (0,74;1,62) | ||||
1 | Raça/cor da pele | 0,17 | 0,51 | ||||
Branca | 19,3 | 1,00 | 1,00 | ||||
Parda | 27,2 | 1,41 (0,97;2,05) | 1,23 (0,85;1,80) | ||||
Preta | 19,4 | 1,01 (0,67;1,51) | 1,00 (0,67;1,51) | ||||
1 | Estado civil | 0,09 | 0,02 | ||||
Solteiro | 22,2 | 1,22 (0,97;1,53) | 1,36 (1,06;1,76) | ||||
Casado/separado/ sivorciado/viúvo | 18,2 | 1,00 | 1,00 | ||||
1 | Mora sozinho | 0,18 | 0,78 | ||||
Não | 19,5 | 1,00 | 1,00 | ||||
Sim | 25,0 | 1,28 (0,89;1,84) | 1,06 (0,71;1,57) | ||||
1 | Escolaridade (em anos de estudo) | 0,01 | 0,02 | ||||
0-8 | 23,5 | 1,57 (1,19;2,08) | 1,56 (1,14;2,13) | ||||
9-11 | 19,8 | 1,33 (1,00;1,76) | 1,34 (1,01;1,78) | ||||
≥12 | 14,9 | 1,00 | 1,00 | ||||
1 | Renda familiar (em tercis) | 0,09 | 0,34 | ||||
Menor | 24,7 | 1,39 (1,00;1,93) | 1,18 (0,80;1,76) | ||||
Intermediário | 18,9 | 1,06 (0,74;1,51) | 0,94 (0,64;1,39) | ||||
Maior | 17,8 | 1,00 | 1,00 | ||||
2 | Tabagismo | <0,01 | 0,01 | ||||
Não | 18,0 | 1,00 | 1,00 | ||||
Sim | 29,6 | 1,65 (1,33;2,05) | 1,38 (1,09;1,73) | ||||
2 | Consumo excessivo de álcool | <0,01 | 0,01 | ||||
Não | 18,6 | 1,00 | 1,00 | ||||
Sim | 30,9 | 1,67 (1,24;2,24) | 1,50 (1,10;2,04) |
a) RP: razão de prevalências.
b) IC95%: intervalo de confiança de 95%.
c) Valor p de heterogeneidade.
Tabela 4 - Análise bruta e ajustada das variáveis de condições de saúde e serviços de saúde para os indivíduos da área urbana de Rio Grande (n=1.297), Rio Grande do Sul, 2016
Nível | Variável | % de não consulta médica | Análise bruta | Análise ajustada | |||
---|---|---|---|---|---|---|---|
RPa (IC95% b) | Valor p c | RPa (IC95% b) | Valor p c | ||||
3 | Morbidades (número de problemas de saúde) | <0,01 | <0,01 | ||||
0 | 26,0 | 4,14 (2,09;8,21) | 4,91 (2,52;9,54) | ||||
1 | 20,6 | 3,27 (1,67;6,39) | 3,79 (1,95;7,38) | ||||
2 | 14,6 | 2,33 (1,21;4,46) | 2,46 (1,27;4,76) | ||||
3 | 6,3 | 1,00 | 1,00 | ||||
3 | Autopercepção da saúde | <0,01 | 0,25 | ||||
Excelente ou muito boa | 20,5 | 1,45 (1,07;1,95) | 1,24 (0,89;1,72) | ||||
Boa | 24,2 | 1,71 (1,32;2,21) | 1,28 (0,95;1,72) | ||||
Regular ou ruim | 14,2 | 1,00 | 1,00 | ||||
4 | Dispor de plano de saúde | <0,01 | 0,01 | ||||
Não | 27,2 | 1,99 (1,58;2,51) | 1,55 (1,10;2,17) | ||||
Sim | 13,3 | 1,00 | 1,00 | ||||
4 | Recebeu visita de ACSd | 0,89 | 0,23 | ||||
Não | 20,0 | 0,98 (0,77;1,26) | 1,18 (0,90;1,56) | ||||
Sim | 20,3 | 1,00 | 1,00 | ||||
4 | Realizou a última consulta médica pelo SUSe | <0,01 | 0,06 | ||||
Não | 14,6 | 1,00 | 1,00 | ||||
Sim | 25,3 | 1,74 (1,38;2,19) | 1,34 (0,99;1,81) | ||||
4 | Domicílio coberto por UBSF,c referido pelo entrevistado | 0,77 | 0,30 | ||||
Não | 19,8 | 0,97 (0,78;1,21) | 1,16 (0,88;1,52) | ||||
Sim | 20,5 | 1,00 | 1,00 | ||||
4 | Bairro do domicílio coberto por UBSFc mapeada pela prefeitura municipal | 0,10 | 0,40 | ||||
Não | 18,4 | 0,81 (0,63;1,08) | 0,96 (0,68;1,37) | ||||
Sim | 22,7 | 1,00 | 1,00 |
a) RP: razão de prevalências.
b) IC95%: intervalo de confiança de 95%.
c) Valor p de heterogeneidade.
d) ACS: agente comunitário de saúde.
e) SUS: Sistema Único de Saúde.
f) UBSF: Unidade Básica de Saúde da Família.
As variáveis ‘faixa etária’, ‘raça/cor da pele’, ‘mora sozinho’, ‘renda familiar’ e ‘recebeu visita de ACS’, ‘domicílio coberto por UBSF’ (também referida pelo entrevistado) e ‘bairro do domicílio coberto por UBSF’ (identificada pela prefeitura municipal) não mostraram associação com o desfecho, seja na análise bruta, seja na ajustada.
Discussão
Os resultados desta pesquisa indicaram que um quinto (20%) da amostra não consultou médico nos últimos 12 meses. Os grupos mais propensos a apresentar tal característica foram do sexo masculino, solteiros, com menor escolaridade, com menos problemas de saúde, que consumiam álcool em excesso e fumantes.
Em estudo de base populacional realizado no município de São Leopoldo, RS, no ano de 2011, os resultados indicaram que, entre as 1.098 pessoas respondentes, 56,7% (IC95% 53,8 a 59,7) não haviam se consultado com médico nos últimos 30 dias.8 Outra pesquisa, do mesmo autor e sobre o mesmo local de coleta de dados, apontou que 15,4% (IC95% 13,2 a 17,5) não se consultaram com médico no ano anterior à entrevista,13 demonstrando que a prevalência de não consulta no município de Rio Grande foi significativamente mais elevada. Todavia, considerando-se o contexto nacional, a realidade do município investigado reflete os avanços da maior acessibilidade ao profissional médico: o percentual de brasileiros que não utilizaram serviços médicos nos 12 meses anteriores à pesquisa caiu de 44,8% em 1998 para 28,7% em 2013.16
Conforme os resultados de diversos estudos,5,11,12,17-20 quando perguntados se consultaram um médico nos últimos 12 meses, homens referiram a utilização desse serviço significativamente menos, quando comparados às mulheres. Culturalmente, indivíduos do sexo masculino buscam, principalmente, atendimento especializado em função de agravo ou complicação de um quadro clínico já estabelecido,11,17,21 enquanto as mulheres (principalmente aquelas em idade fértil) se permitem o acompanhamento de sua saúde de forma longitudinal e preventiva.11,12,20,22-24 A maior procura dos serviços de saúde por parte das mulheres também pode ser um reflexo da organização do sistema de saúde brasileiro, que tem o cuidado materno-infantil como uma de suas prioridades.21,24
Considerando-se as demais características sociodemográficas, constatou-se que indivíduos solteiros se consultaram com um médico. Estudo realizado no município de Montes Claros, MG, em 2011, encontrou resultados similares, ao identificar maior prevalência de não atendimento nos últimos 15 dias entre indivíduos sem união estável/não casados.6 Uma possível explicação para esse achado, identificada na literatura, é o fato de indivíduos casados estarem mais propensos a consultar um médico em função da influência do(a) companheiro(a).17
Outro aspecto constatado aqui foi o fato de indivíduos com baixa escolaridade consultarem menos durante os 12 meses anteriores à pesquisa, corroborando outros estudos brasileiros.5,6,12,20-22,24 Maior escolaridade pode estar relacionada ao maior conhecimento e comportamentos positivos em saúde; entre esses comportamentos, encontra-se maior e mais adequada utilização dos serviços de saúde.6,20,22,23
Complementarmente, a literatura revela que indivíduos de menores renda e escolaridade tendem a utilizar mais o sistema público para realização de atendimentos médicos,5,6,25 enquanto os de maiores renda e escolaridade utilizam-se do sistema privado.12 Merece igual destaque o fato de a renda familiar não ter apresentado associação significativa com o desfecho de interesse deste trabalho, o que mostra que as dificuldades em obter atendimento, possivelmente, estariam mais associadas a questões de informação e comunicação6 do que aos aspectos financeiros.
Outrossim, o número de problemas crônicos de saúde revelou-se um fator determinante para a realização de consultas: quanto maior o número de problemas de saúde, menor a probabilidade de o indivíduo não ter se consultado com o médico nos últimos 12 meses, refletindo, como esperado, maiores demandas por essas consultas. Como amplamente descrito na literatura,5,6,11,19-23 a presença de alguma enfermidade a requerer acompanhamento médico aumenta a probabilidade de o indivíduo utilizar esse tipo de serviço. De acordo com os dados levantados pela Pesquisa Nacional de Saúde (PNS) realizada em 2013, a presença de doenças foi o maior motivador para o uso de serviços de saúde. Tal motivação é intensificada conforme aumenta o número de comorbidades.24 Ademais, o fato de a idade não se mostrar associada com a maior utilização de atendimentos médicos aponta o quadro clínico em si como o que, efetivamente, pode levar a uma maior procura por acompanhamento, não necessariamente a idade avançada.21,22
Características comportamentais, como consumo abusivo de álcool ou tabagismo, mostraram-se associadas a maior prevalência de não realização de consulta médica nos últimos 12 meses. A presença de hábitos não saudáveis (possível aglomeração de fatores associados - ser homem, referir menor escolaridade, ser tabagista e abusar de álcool) pode estar relacionada a uma menor preocupação com a situação de saúde por parte do indivíduo, desta forma mais propenso a utilizar menos os serviços de saúde.26 Esses comportamentos, no longo prazo, podem levar ao surgimento de doenças e estas, por sua vez, a uma maior procura por atendimento médico.5,18,19
Quanto às questões referentes ao sistema de saúde, não dispor de plano de saúde aumentou a probabilidade de não consulta ao médico, corroborando os resultados encontrados pela PNS 201324 e demais inquéritos domiciliares nacionais.23 Entretanto, indivíduos que realizaram a última consulta pelo SUS também apresentaram maior prevalência de não consulta. Uma análise secundária, por sua vez, destaca a maior prevalência de não consulta entre os que realizaram a última consulta médica pelo SUS, com base em indivíduos que reportaram não contar com a cobertura de seu domicílio por uma UBSF. É possível que estes resultados reflitam o acréscimo da oferta de serviços pelo segmento suplementar, além de dificuldades de acesso ao serviço público e/ou avaliação negativa do serviço prestado.17 Vale ainda ressaltar que a literatura aponta diferentes motivos para recorrer aos serviços de saúde: enquanto o setor privado é mais utilizado na realização de exames de caráter preventivo, o setor público tende a ser mais solicitado quando se trata de doença já estabelecida.2 Estes achados se encontram alinhados com os do presente estudo.
As dificuldades de acesso e utilização dos serviços de saúde públicos também podem ser percebidas na ausência de associação significativa entre não consulta e cobertura por UBSF ou visita pelo ACS. Dado o cuidado longitudinal e a busca ativa ao usuário pela qual se caracteriza a Estratégia Saúde da Família (ESF),27 esperava-se do grupo de indivíduos residentes em território adscrito a uma UBSF maior probabilidade de haver consultado um médico nos últimos 12 meses.25 Todavia, segundo pesquisa realizada com 812 jovens/adolescentes de Camaçari, BA, no ano de 2012,28 a utilização de serviços de Atenção Primária à Saúde, de maneira geral, tampouco apresentou diferenças estatisticamente significativas entre os jovens que residiam em áreas cobertas pela ESF quando comparados aos demais.
As características referidas pela população investigada levam a perceber que alguns grupos utilizam serviços de saúde na medida de suas necessidades: indivíduos que sentem menos necessidade consultaram menos com um médico nos 12 meses anteriores à pesquisa, assim como aqueles com menos morbidades apresentadas ou que percebem sua saúde como positiva. Por sua vez, no mesmo período analisado, grupos carentes de maior atenção e acompanhamento mais próximo (como fumantes, etilistas e aqueles desprovidos de plano de saúde) também buscaram por um médico significativamente menos. A identificação de fatores com poder de influência na utilização ou não dos serviços de saúde contribui para um planejamento mais adequado dos serviços, permitindo que gestores e profissionais comprometidos atuem de forma a se alcançarem as condições de saúde desejadas para sua população.13
Na investigação apenas da não utilização do serviço, aqui tratado como consulta médica, encontra-se a primeira limitação do estudo: os entrevistados podem incluir tanto (i) o grupo de usuários que não sentiam desejo/necessidade de consulta médica como (ii) o grupo de pessoas com alguma demanda reprimida, ou seja, que procuram os serviços mas não conseguem agendar consulta conforme suas necessidades. Trata-se de fatores associados distintos, não elucidados entre esses participantes da pesquisa, embora ambos os grupos se encontrem em situação mais vulnerável por não procurarem acompanhamento médico ao longo dos últimos 12 meses. Em segundo lugar nas limitações do estudo, encontra-se o fato de a pesquisa ter abordado apenas os habitantes da área urbana, onde o acesso aos serviços de saúde pode ser mais fácil, na comparação ao da população rural, levando a uma previsão subestimada da prevalência real de não consulta médica entre a população geral de Rio Grande. Por fim, o percentual de 9,8% de perdas/recusas diminui a variabilidade dos resultados encontrados, não obstante esse aparente prejuízo haver-se previsto no cálculo de tamanho de amostra. O perfil demográfico desses indivíduos não se diferenciou, significativamente, do encontrado na amostra, sendo a idade média das perdas a mesma dos respondentes, embora com mais perdas para o sexo masculino em um dos bairros visitados.
Como pontos fortes do trabalho, cumpre lembrar o caráter de uma pesquisa de base populacional e, por conseguinte, seu grau de representatividade dos resultados obtidos. Os autores foram responsáveis por um estudo único até então realizado no município, sobre o tema e a diversidade de fatores de risco analisados. Foi possível encontrar fatores associados, diferentes dos apresentados na literatura, mas igualmente capazes de interferir na abordagem dos profissionais envolvidos e melhorar o acesso e o cuidado do usuário dos serviços de saúde no município. Recomendam-se novos estudos com o propósito de identificar outros fatores associados à realização de consultas médicas nessa população, como também identificar quem são os indivíduos que procuraram por consulta médica mas não conseguiram atendimento.
A identificação desses fatores associados permite um planejamento dos serviços mais coerente com a realidade e as necessidades do município, permitindo que gestores e profissionais de saúde atuem de forma mais efetiva na solução dos problemas de saúde de sua população.13 Maximizar o acesso, investir em ações específicas de promoção, prevenção e reabilitação poderá ter impacto - inclusive econômico - na Saúde Pública de Rio Grande, a exemplo das conclusões de outros estudos realizados no município e no país.3,4,13