Introdução
A tuberculose (TB) é a doença infecciosa que mais mata no mundo. Em 2017, foram registrados 10 milhões de casos novos e 1,3 milhão de óbitos.1 No Brasil, no mesmo ano, houve notificação de 69.569 casos novos de TB, equivalentes a uma taxa de incidência de 33,5 casos/100 mil habitantes.2 Em 2016, ocorreram 4.426 óbitos pela doença no país, resultando em uma taxa de mortalidade igual a 2,1 óbitos/100 mil hab.2
Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), no mundo, cerca de 3,6 milhões de casos não são notificados pelo sistema de vigilância da TB.1 A subnotificação ocorre quando uma parcela dos casos não é diagnosticada pelas unidades de saúde e/ou quando parte dos casos diagnosticados não é notificada no sistema de informação da doença. Em ambas as situações, a vigilância epidemiológica da TB é prejudicada, bem como o direcionamento de recursos e o planejamento de ações para seu enfrentamento.3
No Brasil, estima-se que a proporção de casos notificados era de 87% em 2017.1 A alta rotatividade dos profissionais de saúde e a demora para atendimento nos serviços de saúde são alguns dos desafios para a melhoria da notificação de casos no país.4 Também, a doença permanece pouco conhecidapor parte da população, incluindo-se profissionais de saúde que atuam na atenção primária.5 Sabe-se que a desinformação sobre a TB está associada à subnotificação de casos.6
O grupo etário com menor proporção de casos notificados no país o é o de menores de 15 anos.1 Entre os 239 mil óbitos estimados nessa faixa etária, no mundo, mais de 90% ocorreram em casos que não tiveram acesso ao tratamento.7 Dessa forma, o aumento da detecção e, com isso, da notificação de casos, é uma das possíveis estratégias para a redução da taxa de mortalidade por TB no Brasil.
Embora a OMS possua estimativas da proporção de casos notificados no país, inclusive segundo faixas etárias, a instituição não realiza esta mensuração para o nível subnacional. Na literatura, não foram encontrados estudos com este objetivo que abrangessem todo o Brasil. O estudo que mais se aproxima do tema avalia a proporção de casos notificados no país, entre os diagnosticados pelo sistema de vigilância da TB, utilizando-se linkage probabilístico entre bases de dados.8
Diante dessa lacuna, este trabalho tem o objetivo de identificar microrregiões brasileiras com subnotificação de casos de tuberculose, no período de 2012 a 2014.
Métodos
Desenho do estudo
Estudo ecológico transversal, cujas unidades de análise foram as 508 microrregiões brasileiras com sistema de informação ótimo ou regular e pelo menos 6 casos de TB notificados de 2012 a 2014. Considerou-se que o sistema de informação foi ótimo ou regular quando as microrregiões apresentavam completitude mediana igual ou superior a 70% em variáveis prioritárias do sistema de informação, selecionadas por meio de consulta a especialistas no tema. Estas áreas representam 91,0% do total de microrregiões do país, e foram utilizadas com o objetivo de minimizar o viés e a flutuação aleatória dos indicadores de qualidade do sistema de vigilância da TB.9
Foram considerados casos novos aqueles com tipo de entrada no sistema de informação igual a “caso novo”, “não sabe” ou ignorada. Excluíram-se do estudo os casos encerrados devido à mudança de diagnóstico. A taxa de incidência da TB foi calculada como a razão entre o número de casos residentes, diagnosticados de 2012 a 2014, e a soma da população residente na microrregião nos três anos analisados, multiplicada por 100 mil.
Fonte de dados
Os casos novos e os indicadores de qualidade da vigilância foram calculados com dados do Sistema de Informação de Agravos de Notificação (Sinan), de 2012 a 2014. Além disso, as estimativas populacionais de 2012 a 2014, realizadas pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) para o Tribunal de Contas da União (TCU), foram utilizadas como fonte de dados para o número de pessoas residentes nas microrregiões.10
As variáveis de controle foram obtidas por meio do Censo Demográfico do IBGE de 2010 e do Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias (Infopen), do Ministério da Justiça, de 2014.11,12
Indicadores de qualidade do sistema de vigilância
Foram analisados os indicadores propostos por Silva et al. (2017).9 Dado que a completitude é a proporção de casos com informação preenchida em uma determinada variável, foi mensurada a completitude das seguintes variáveis: número de contatos examinados, data de início do tratamento, situação de encerramento, baciloscopia no 2º mês e no 6º mês de tratamento. Calculou-se, ainda, a mediana da completitude nessas cinco variáveis. O nível de completitude foi categorizado como ótimo (90%), regular (entre 70%, inclusive, e<90%) e ruim (<70%).
A oportunidade do sistema de vigilância da TB foi mensurada por meio dos seguintes indicadores: oportunidade de notificação (proporção de casos com diferença entre as datas de notificação e de diagnóstico menor ou igual a 7 dias); e oportunidade de tratamento (proporção de casos que iniciaram o tratamento no dia do diagnóstico). A oportunidade foi classificada como ótima, regular ou ruim, segundo os mesmos pontos de corte utilizados para a completitude.
Adicionalmente, o indicador foi considerado “inválido”nas microrregiões em que pelo menos 15% dos casos apresentaram dado incompleto ou inconsistente. Embora não haja uma regra de ouro na literatura acerca deste ponto de corte, estudos apontam que 5%, 10% e 20% de dados incompletos podem resultar em inferências enviesadas, de acordo com o mecanismo gerador dos dados faltantes.13,14 Neste trabalho, considerou-se que a probabilidade de perda do dado é não aleatória, e adotou-se o ponto de corte de 15% sugerido por Harrel (2001) para se identificarem variáveis que necessitam da imputação múltipla, ou seja, que exigem um método mais sofisticado de imputação para realização de inferências.15
A aceitabilidade dos profissionais de saúde às recomendações do Programa Nacional de Controle da Tuberculose (PNCT) foi mensurada por meio dos seguintes indicadores: percentual de casos que realizaram baciloscopia (proporção dos casos novos pulmonares que realizaram baciloscopia de escarro); percentual de casos que aderiram ao tratamento (proporção de casos pulmonares que não abandonaram o tratamento da TB, entre aqueles não encerrados como falência, mudança de esquema e TB drogarresistente); e percentual de casos testados para HIV (proporção de casos testados para a infecção pelo vírus da imunodeficiência humana (HIV), considerando-se os testes com resultado “em andamento” como não realizados).
Os limites para a classificação da aceitabilidade em ótima, regular ou ruim foram diferentes em cada indicador, definidos de acordo com recomendações dos documentos oficiais e de especialistas na vigilância da TB.9 A aceitabilidade foi ótima nas microrregiões com pelo menos 90% dos casos com baciloscopia realizada, 95% dos casos sem abandono do tratamento e 85% com testagem para HIV. Por outro lado, a aceitabilidade foi ruim nas microrregiões com menos de 80% de realização de baciloscopia, 90% de casos sem abandono e 70% de testagem para HIV. Considerou-se o cálculo da aceitabilidade “inválido”nas microrregiões em que 15% dos casos ou mais tiveram informação não preenchida ou ignorada nas variáveis necessárias para o seu cálculo.
Variáveis de controle
As variáveis de controle utilizadas neste estudo foram: região (Norte, Nordeste, Centro-Oeste, Sudeste e Sul); logaritmo da população residente na microrregião de 2012 a 2014; população privada de liberdade/10 mil hab. em junho de 2014; taxa de urbanização (proporção de pessoas residentes na área urbana da microrregião); taxa de desemprego (proporção de pessoas desempregadas, entre as que possuem 16 anos ou mais); e proporção de pessoas residentes em domicílios com mais de duas pessoas por cômodo em 2010.
Análise estatística de dados
A análise de agrupamentos dos indicadores de aceitabilidade e oportunidade foi realizada por meio de um algoritmo híbrido dos métodos k-médias e hierárquico.16,17 O número de grupos foi definido com auxílio de um dendograma construído com o método de Ward, tendo a distância euclidiana como medida de dissimilaridade (disponível no material suplementar> do trabalho). Os grupos foram comparados de acordo com a média (x̄) e desvio padrão(ˢ) dos indicadores de oportunidade e aceitabilidade.
O estimador indireto da proporção de casos notificados (EIPCN) foi igual à média dos indicadores de oportunidade e/ou aceitabilidade em que as microrregiões com sistema de vigilância ruim apresentaram baixo desempenho médio e grande homogeneidade, ou seja, baixo desvio-padrão. O ponto de corte do EIPCN para definição de microrregiões com suspeita de subnotificação foi o ponto da curva ROC com maior sensibilidade e especificidade para representação das microrregiões com vigilância de TB ruim.
A distribuição dos indicadores categóricos de qualidade da vigilância nas microrregiões com suspeita de subnotificação foi comparada com a distribuição nas demais microrregiões. A diferença entre os grupos foi avaliada por meio do teste do qui-quadrado de Pearson. Nas tabelas com número esperado de casos inferior a cinco, utilizou-se o teste exato de Fisher. Além disso, foi feito mapa temático do EIPCN, em relação ao ponto de corte encontrado, com o objetivo de se visualizar a localização das microrregiões com suspeita de subnotificação no território brasileiro.
Foi gerado gráfico de dispersão entre o EIPCN e a taxa de incidência da TB. A curva de alisamento foi ajustada por meio do modelo aditivo generalizado da incidência de TB/100 mil hab. em função do EIPCN, utilizando-se a spline cúbica como função de alisamento. Esta curva foi representada no gráfico de dispersão para avaliar sua compatibilidade com a associação teórica esperada. Utilizou-se o pressuposto de que desvios da associação empírica, em relação à associação teórica esperada, seriam consequência da subnotificação de casos de TB nas microrregiões.
Por fim, foi ajustado o modelo de regressão binomial negativa, tendo o número de casos de TB diagnosticados de 2012 a 2014 como variável dependente, o EIPCN como variável independente e o logaritmo da população residente na microrregião, de 2012 a 2014, como offset. Optou-se por esse modelo devido à inadequação do modelo de regressão de Poisson, inicialmente testado, à superdispersão dos dados na variável dependente.18
O modelo de regressão, com o EIPCN como variável independente, foi ajustado, excluindo-se as microrregiões com suspeita de subnotificação e, também, considerando-se essas localidades. A razão de taxas (RT) deste modelo foi comparada com a razão de taxas esperada segundo a associação teórica entre as variáveis.
Para todos os testes estatísticos, adotou-se um nível de significância de 5%. As análises foram realizadas com auxílio do software R19 versão 3.5.1, usando-se os pacotes Facto extra (https://CRAN.R-project.org/package=factoextra), mgcv (https://CRAN.R-project.org/package=mgcv) e MASS (https://CRAN.R-project.org/package=MASS).
Considerações éticas
Durante a realização deste estudo, foram respeitados os preceitos éticos da pesquisa em seres humanos, normatizados pela Resolução nº 466/2012 do Conselho Nacional de Saúde (CNS). O trabalho não foi submetido a Comitê de Ética em Pesquisa por corresponder a análise de dados secundários de acesso público, conforme a Resolução nº 510/2016 do CNS.
Resultados
As 508 microrregiões estudadas foram divididas em quatro grupos. O grupo 1 (n=73) apresentou menor proporção média de casos que realizaram baciloscopia (x̄=75,7%, ˢ=9,5) e de casos que aderiram ao tratamento (x̄=78,0%, ˢ=7,9). As microrregiões do grupo 2 (187), por sua vez, tiveram maior proporção média de casos com baciloscopia realizada (x̄=91,2%, ˢ=5,3), com adesão ao tratamento (x̄=91,7%, ˢ=4,7) e com testagem para HIV(x̄=85,9%, ˢ=9,0) (Tabela 1).
Indicador | Grupo | |||||||
---|---|---|---|---|---|---|---|---|
1 (n=73) | 2 (n=187) | 3 (n=164) | 4 (n=84) | |||||
x̄ | ˢ | x̄ | ˢ | x̄ | ˢ | x̄ | ˢ | |
Oportunidade de notificação | 74,9 | 10,8 | 80,6 | 9,2 | 82,4 | 6,2 | 57,6 | 10,2 |
Oportunidade de tratamento | 51,0 | 19,2 | 63,8 | 17,5 | 42,1 | 16,5 | 24,6 | 10,8 |
Casos que realizaram baciloscopia (%) | 75,7 | 9,5 | 91,2 | 5,3 | 88,2 | 6,0 | 88,2 | 8,0 |
Casos que aderiram ao tratamento (%) | 78,0 | 7,9 | 91,7 | 4,7 | 88,7 | 5,5 | 88,7 | 7,4 |
Casos testados para HIV (%) | 60,0 | 19,3 | 85,9 | 9,0 | 54,6 | 14,5 | 58,1 | 18,4 |
Nota: Os indicadores mais homogêneos (σ<10) estão destacados em cinza.
Os grupos 3 (n=164) e 4 (n=84) apresentaram indicadores de aceitabilidade com desempenho semelhante. Em ambos, a média do percentual de casos que realizaram baciloscopia foi igual a 88,2%, e do percentual de casos que aderiram ao tratamento foi de 88,7%. A oportunidade do sistema de vigilância, entretanto, foi inferior no grupo 4, tanto em relação à oportunidade média de notificação (x̄=57,6%, ˢ=10,2), quanto à oportunidade média de tratamento (x̄=24,6%, ˢ=10,8) (Tabela 1).
Considerou-se que as microrregiões localizadas no grupo 1 possuem sistema de vigilância ruim. A partir disso, concluiu-se que um sistema de vigilância ruim pode ser caracterizado, especialmente, pela baixa proporção de casos que realizaram baciloscopia e que aderiram ao tratamento da TB. Uma vez que ambos correspondem a indicadores de aceitabilidade, a média deles foi chamada aceitabilidade média. Este indicador foi utilizado como EIPCN devido à sua capacidade de distinguir as microrregiões com vigilância da TB ruim das demais localidades.
O ponto de corte da aceitabilidade média foi igual a 83%, segundo a curva ROC. A sensibilidade e especificidade deste limite para identificação das microrregiões do grupo 1 é igual a 98,6% e 97,0%, respectivamente. Ao todo, 17,5% (n=89) das microrregiões apresentaram aceitabilidade média inferior a 83%.
A distribuição dos indicadores de qualidade da vigilância nas microrregiões com aceitabilidade média inferior a 83,0%, nas quais há suspeita de subnotificação, foi significativamente diferente da distribuição nas microrregiões com aceitabilidade média superior ou igual a esse limite. A distribuição da oportunidade de tratamento, entretanto, foi semelhante em ambos os grupos. Cerca de 80,5% das microrregiões apresentaram desempenho ruim nesse indicador (Tabela 2).
Indicador | Aceitabilidade média < 83% | Total | p-valor | ||||
---|---|---|---|---|---|---|---|
Não | Sim | ||||||
n | % | n | % | n | % | ||
Completitude do número de contatos examinados | |||||||
Ótimo | 188 | 44,9 | 10 | 11,2 | 198 | 39,0 | <0,001b |
Regular | 170 | 40,6 | 42 | 47,2 | 212 | 41,7 | |
Ruim | 61 | 14,6 | 37 | 41,6 | 98 | 19,3 | |
Completitude da data do início do tratamento | |||||||
Ótimo | 400 | 95,5 | 80 | 89,9 | 480 | 94,5 | 0,081c |
Regular | 18 | 4,3 | 9 | 10,1 | 27 | 5,3 | |
Ruim | 1 | 0,2 | - | - | 1 | 0,2 | |
Completitude da situação de encerramento | |||||||
Ótimo | 398 | 95,0 | 56 | 62,9 | 454 | 89,4 | <0,001c |
Regular | 21 | 5,0 | 31 | 34,8 | 52 | 10,2 | |
Ruim | - | - | 2 | 2,2 | 2 | 0,4 | |
Completitude da baciloscopia no 2º mês | |||||||
Ótimo | 246 | 58,7 | 33 | 37,1 | 279 | 54,9 | <0,001b |
Regular | 142 | 33,9 | 51 | 57,3 | 193 | 38,0 | |
Ruim | 31 | 7,4 | 5 | 5,6 | 36 | 7,1 | |
Completitude da baciloscopia no 6º mês | |||||||
Ótimo | 164 | 39,1 | 22 | 24,7 | 186 | 36,6 | 0,003b |
Regular | 205 | 48,9 | 46 | 51,7 | 251 | 49,4 | |
Ruim | 50 | 11,9 | 21 | 23,6 | 71 | 14,0 | |
Completitude mediana | |||||||
Ótimo | 301 | 71,8 | 27 | 30,3 | 328 | 64,6 | <0,001b |
Regular | 118 | 28,2 | 62 | 69,7 | 180 | 35,4 | |
Oportunidade de notificação | |||||||
Inválido | 4 | 1,0 | 1 | 1,1 | 5 | 1,0 | 0,047c |
Ótimo | 48 | 11,5 | 5 | 5,6 | 53 | 10,4 | |
Regular | 273 | 65,2 | 52 | 58,4 | 325 | 64,0 | |
Ruim | 94 | 22,4 | 31 | 34,8 | 125 | 24,6 | |
Oportunidade de tratamento | |||||||
Inválido | 8 | 1,9 | 4 | 4,5 | 12 | 2,4 | 0,395c |
Ótimo | 9 | 2,1 | 1 | 1,1 | 10 | 2,0 | |
Regular | 66 | 15,8 | 11 | 12,4 | 77 | 15,2 | |
Ruim | 336 | 80,2 | 73 | 82,0 | 409 | 80,5 | |
Casos que realizaram baciloscopia (%) | |||||||
Ótimo | 227 | 54,2 | 4 | 4,5 | 231 | 45,5 | <0,001b |
Regular | 173 | 41,3 | 30 | 33,7 | 203 | 40,0 | |
Ruim | 19 | 4,5 | 55 | 61,8 | 74 | 14,6 | |
Casos que aderiram ao tratamento (%) | |||||||
Inválido | 4 | 1,0 | 20 | 22,5 | 24 | 4,7 | <0,001c |
Ótimo | 88 | 21,0 | 3 | 3,4 | 91 | 17,9 | |
Regular | 134 | 32,0 | 2 | 2,2 | 136 | 26,8 | |
Ruim | 193 | 46,1 | 64 | 71,9 | 257 | 50,6 | |
Casos testados para HIV (%) | |||||||
Inválido | 1 | 0,2 | 1 | 1,1 | 2 | 0,4 | <0,001c |
Ótimo | 121 | 28,9 | 8 | 9,0 | 129 | 25,4 | |
Regular | 96 | 22,9 | 14 | 15,7 | 110 | 21,7 | |
Ruim | 201 | 48,0 | 66 | 74,2 | 267 | 52,6 | |
Total | 419 | 100,0 | 89 | 100,0 | 508 | 100,0 |
a) A aceitabilidade média é igual à média entre a proporção de casos de tuberculose que realizaram baciloscopia de escarro e a proporção de casos que aderiram ao tratamento da doença.
b) Teste do qui-quadrado de Pearson.
c) Teste exato de Fisher.
Apenas 11,2%(n=10) das microrregiões com aceitabilidade média inferior a 83% possuem completitude ótima do número de contatos examinados. Além disso, 62,9% (n=56) têm completitude ótima na variável situação de encerramento, contra 95,0% nas demais microrregiões. A completitude da baciloscopia no segundo mês foi regular na maior parte (n=51) das microrregiões com suspeita de subnotificação de casos, e ótima (n=246) em grande parte das outras áreas. Quase um quarto (n=21) das microrregiões com aceitabilidade média inferior a 83% possui completitude ruim da baciloscopia no 6º mês (Tabela 2).
A oportunidade de notificação foi regular ou ruim em 93,2% (n=83) das microrregiões com suspeita de subnotificação de casos de TB. Além disso, 74,2% (n=66) dessas áreas tiveram percentual ruim de casos testados para HIV, sendo esse percentual de 48% (n=201) nas demais microrregiões (Tabela 2).
Foram identificadas 4 (4,5%) microrregiões com aceitabilidade média inferior a 83% na região Norte, 33 (37,7%) no Nordeste, 21 (23,6%) no Sudeste, 17 (19,1%) no Sul e 14(15,7%) na região Centro-Oeste. Essas microrregiões estão mais concentradas nos estados do Rio Grande do Sul (n=16, 18,0%), Minas Gerais (n=12, 13,5%), Bahia (n=11, 12,4%,), Mato Grosso (n=8, 9,0%), Rio de Janeiro (n=7, 7,9%) e Piauí (n=6, 6,7%) (Figura 1).
Nota:
A aceitabilidade média é igual à média entre a proporção de casos de tuberculose que realizaram baciloscopia de escarro e a proporção de casos que aderiram ao tratamento da doença, calculada apenas para as microrregiões que possuem completitude mediana do sistema de informação ótima ou regular (≥70%).
Espera-se que, quanto maior a aceitabilidade média do sistema de vigilância da TB, menor a taxa de incidência média da doença. Nas microrregiões com aceitabilidade média superior ou igual a 83,0%, a relação empírica entre esses indicadores é linear e coerente com a relação teórica esperada. Nas demais microrregiões, entretanto, observa-se aumento na média da taxa de incidência da TB em função do aumento na aceitabilidade média do sistema de vigilância (Figura 2).
Nota:
A linha tracejada vertical indica aceitabilidade média igual a 83%.
Grupo 1: microrregiões com sistema de vigilância da tuberculose ruim, selecionadas por meio de análise de agrupamentos.
Demais microrregiões: microrregiões com sistema de vigilância da tuberculose ótimo ou regular, segundo a análise de agrupamentos.
Considerando-se os dados completos, a taxa de incidência de TB não é significativamente diferente em microrregiões com aceitabilidade média distintas, tanto no modelo de regressão binomial negativa bruto (RT=0,996 - IC95%0,988;1,003), quanto no modelo ajustado (RT=0,997- IC95%0,991;1,003). Entretanto, a razão de taxas passa a ser menor que 1 quando as microrregiões com suspeita de subnotificação são excluídas da análise (IC95%0,974; 0,999 no modelo bruto e IC95%0,975; 0,996 no ajustado). Nesse caso, à medida que a aceitabilidade média da microrregião é aumentada em 1 ponto percentual, a taxa de incidência de TB é reduzida, em média, em 1,3% no modelo bruto e 1,5% no modelo ajustado (Tabela 3).
Variáveis de controle | Microrregiões com aceitabilidade <83% | |||
---|---|---|---|---|
Sim | Não | |||
Razão de taxas | IC95% a | Razão de taxas | IC95% a | |
Sim | 0,997 | 0,991;1,003 | 0,985 | 0,975;0,996 |
Não | 0,996 | 0,988;1,003 | 0,987 | 0,974; 0,999 |
a) IC95%: intervalo de confiança de 95%.
Assim, desconsiderando-se as microrregiões com aceitabilidade média inferior a 83%, conclui-se que, quanto mais bem estruturado o sistema de vigilância da TB no quesito aceitabilidade, menor será a taxa de incidência esperada na região. Além disso, a não significância dessa associação na base de dados completa sugere a existência de subnotificação de casos de TB nas microrregiões com aceitabilidade média inferior a 83%.
Discussão
Observaram-se evidências de subnotificação de casos de TB nas microrregiões com baixa proporção de casos novos pulmonares que realizaram baciloscopia de escarro e/ou com baixa proporção de casos pulmonares que aderiram ao tratamento da doença. No território, essas microrregiões localizaram-se, principalmente, nas regiões Nordeste e Sudeste do país, concentrando-se nos estados do Rio Grande do Sul, Minas Gerais e Bahia.
Pelissari e colaboradores identificaram que a solicitação de baciloscopia foi positivamente associada à detecção de casos de TB nos municípios brasileiros com equipes de atenção básica avaliadas pelo segundo ciclo do Programa Nacional de Melhoria do Acesso e da Qualidade da Atenção Básica (PMAQ-AB).20 Além disso, estudo no Rio de Janeiro identificou que a notificação de óbitos foi maior entre os casos de TB com confirmação bacteriológica.21 Ambos os estudos trazem evidências de que a aceitabilidade média pode ser utilizada como proxy da notificação de casos de TB.
A subnotificação de TB em uma região pode ocorrer devido a problemas em três diferentes fases da linha de cuidado do caso: acesso ao sistema de saúde, diagnóstico da TB e notificação no sistema de informação.22 O EIPCN, proposto neste estudo, possui o potencial de identificar a subnotificação gerada em qualquer uma dessas fases. Se, por exemplo, este fenômeno ocorre devido a problemas no acesso dos doentes ao sistema de saúde, seja pela existência de barreiras geográficas, financeiras ou culturais, é possível que essa realidade se reflita na baixa adesão ao tratamento da TB.23,24
Se, por outro lado, a subnotificação for motivada pelo subdiagnóstico da doença, a proporção de casos com baciloscopia realizada pode ser útil para captar tal fato. Falhas nesse indicador podem sugerir baixa realização de baciloscopia também entre os sintomáticos respiratórios, uma vez que ambos os grupos estão submetidos ao mesmo sistema de vigilância.25
Por fim, Selig et al. (2004)21 supõem que há associação entre a confirmação bacteriológica e a notificação de casos de TB, uma vez que, nos sistemas de vigilância mais robustos, os profissionais de saúde estão comprometidos com a execução das principais recomendações do PNCT, e não apenas de atividades isoladas. Nesse sentido, a aceitabilidade média é um bom estimador indireto da proporção de casos notificados no sistema de informação da TB.
Oliveira et al. (2012)8 utilizaram linkage probabilístico para mensurar a proporção de óbitos subnotificados no sistema de informação da TB, no Brasil, em 2006. Uma vez que a subnotificação no sistema de informação é uma das componentes da subnotificação geral dos casos, as duas medidas podem ser comparadas. Foi identificada alta proporção de subnotificação nos sistemas de informação do Sudeste e do Nordeste do país, corroborando os resultados encontrados neste estudo. Por outro lado, a maior proporção de subnotificação de casos no Sinan foi observada na região Norte, na qual não houve evidência de subnotificação de TB por meio do trabalho atual.
A divergência entre os estudos pode ser explicada pela diferença temporal dos dados. Apesar disso, é importante ressaltar que, não necessariamente, todas as áreas com subnotificação foram identificadas neste trabalho. Embora existam evidências desse fenômeno nas áreas selecionadas, não se exclui a possibilidade de sua ocorrência em outras microrregiões do país.
A principal suposição deste trabalho é que existe subnotificação de casos de TB nas microrregiões com sistema de vigilância de baixa qualidade e, por isso, os desvios na associação empírica entre a aceitabilidade média e a incidência de TB/100 mil hab., em relação à associação teórica, são gerados devido a esse mecanismo. Entretanto, também é possível que os desvios observados tenham sido ocasionados por fatores de confusão, representando associações espúrias. Para minimizar este problema, foram feitos modelos de regressão bruto e ajustado por variáveis de controle.
Uma limitação deste trabalho é o uso de dados secundários para avaliação da subnotificação de casos de TB. Não foi possível realizar a análise em 8,8% (n=49) das microrregiões brasileiras, devido à baixa qualidade do sistema de informação da doença. Recomenda-se que essas microrregiões sejam incluídas nas iniciativas voltadas para a melhoria do sistema de vigilância da TB, com o objetivo de se aprimorar o sistema de informação deste agravo.
Outra limitação importante foi o nível de agregação utilizado para a análise. As microrregiões são unidades geográficas formadas por um conjunto de municípios com Programas Municipais de Controle da TB independentes. Assim, municípios de uma mesma microrregião podem ser heterogêneos quanto à qualidade do sistema de vigilância. Entretanto, considerou-se que municípios vizinhos possuem maior chance de apresentar sistemas de vigilância similares do que áreas distantes entre si, uma vez que estão submetidos aos mesmos determinantes regionais. Além disso, o nível de agregação escolhido foi útil para diminuir a flutuação aleatória dos indicadores de qualidade calculados no nível dos municípios, ocasionada em decorrência de um pequeno número de casos notificados.
A identificação de áreas com problemas de notificação de casos de TB, no nível subnacional, pode ser uma iniciativa cara e dispendiosa se realizada por meio de inquérito populacional.22 Este trabalho, entretanto, propôs um método simples, baseado em dados secundários, para identificação dessas localidades. Os resultados encontrados podem ser úteis para o direcionamento de políticas públicas voltadas para a melhoria na busca, diagnóstico e notificação de casos. Ademais, os achados deste estudo poderão impactar na diminuição da mortalidade por TB, especialmente entre as crianças acometidas pela doença.