Introdução
As leishmanioses, doenças tropicais negligenciadas, são causadas por protozoários do gênero Leishmania e apresentam duas formas clínicas principais: leishmaniose tegumentar (LT), cutânea e/ou mucosa; e leishmaniose visceral (LV).1
De 2007 a 2015, foram registrados 6.801 casos de leishmaniose cutânea (LC) no estado do Amapá.2 A LC pode evoluir para formas graves, embora não fatais. Contudo, entre 2017 e 2018, a Superintendência de Vigilância em Saúde do Amapá registrou três óbitos de pacientes com LC em tratamento com o medicamento Glucantime®3 e 19 casos de LV canina.4 Ainda em 2018, confirmou-se o primeiro caso de LV humana autóctone no estado: indivíduo ribeirinho, com 82 anos de idade, infectado no município de Mazagão, ido a óbito por complicações de cirrose hepática.4
A vigilância da LV, causada pelo agente etiológico Leishmania infantum, favorece o diagnóstico e o tratamento precoces, reduzindo o risco de morte. Entretanto, o óbito em portador de LC é incomum e, normalmente, decorre de comorbidades agravadas pela toxicidade do Glucantime®.5 Entre os agentes da LC, Leishmania braziliensis e, principalmente, Leishmania guyanensis, exibem resistência ao Glucantime®, cujo uso prolongado eleva o risco de eventos adversos.6 A L. guyanensis ocorre no Norte do Brasil,1,7,8 mas sua frequência e distribuição no Amapá são desconhecidas.
O objetivo desse estudo foi investigar as espécies de Leishmania em uma série de casos autóctones de leishmaniose cutânea no Amapá, em 2018.
Métodos
Realizou-se estudo descritivo em série de casos de LC. O Amapá possui 670 mil habitantes, distribuídos em 16 municípios.9 Banhado pelo oceano Atlântico, o estado faz fronteira com o Suriname e a Guiana Francesa ao norte, e com o estado do Pará ao sul. Em 2018, o coeficiente de detecção da LC no Amapá foi de 68,7/100 mil habitantes, com casos autóctones em 14 dos 16 municípios do estado.3 Insetos flebotomíneos, potenciais vetores de LC, são abundantes nessa sub-região amazônica,8,10,11 endêmica para LC.2,3
Para a coleta de dados, foram recrutados indivíduos atendidos no Centro de Referência em Doenças Tropicais do Amapá no período de janeiro a maio de 2018. Foram critérios de inclusão no estudo: homens e mulheres maiores de 12 anos de idade, com lesão primária sugestiva de LC há pelo menos duas semanas. Aqueles com contraindicação médica para anestesia e/ou biópsia ou com outro diagnóstico laboratorial foram excluídos.
As espécies de Leishmania identificadas na pesquisa foram avaliadas em relação às seguintes variáveis:
a) sociodemográficas
- sexo;
- município de infecção;
- idade média; e
- faixas etárias;
b) clínicas
- número de casos;
- tipo de lesão (úlcera; verrucosa);
- diâmetro da lesão;
- localização das lesões no corpo; e
- manifestações clínicas predominantes (crosta, infecção secundária, lesões-satélites etc.).
A mensuração das variáveis e o diagnóstico de Leishmania basearam-se em critérios de vigilância das leishmanioses definidos na publicação de manual técnico pelo Ministério da Saúde,1 e em técnicas moleculares.12,13
Para confirmar a infecção, usou-se o exsudato da lesão, obtido por raspagem, para esfregaço em lâmina, corado pelo Giemsa, na pesquisa microscópica de amastigotas.1 A caracterização de Leishmania realizou-se com DNA extraído da pele (fenol-clorofórmio). Para a coleta de pele, procedeu-se a biópsia em lesão com anestesia local (lidocaína a 2%). Manteve-se a amostra em frasco contendo 0,5mL de NET (NaCl 0,15mM; EDTA 50mM; Tris-HCl 0,1M/pH 7,5). Para assegurar a qualidade das amostras de pele/DNA extraído, manteve-se controle diário de temperatura (2-8oC) em geladeira. Realizou-se a reação em cadeia da polimerase (polymerase chain reaction [PCR]) e posterior sequenciamento do alvo de 234 pares de base, região gênica codificadora da proteína 70 de choque térmico no DNA de Leishmania (hsp70-234).12
Os ensaios realizados foram:
a) Reação em cadeia de polimerase - PCR
A PCR baseou-se em hsp70-234 de Leishmania, altamente sensível para detecção de DNA do protozoário e discriminação de espécies.12 Condições do ensaio: Mix 50mL (Taq DNA polimerase 0,03U/µL; MgCl2 1,5mM; tampão KCl buffer Invitrogen®; dNTPs 0,25mM; iniciadores F- 5’ GGA CGA GAT CGA GCG CAT GGT 3’ e R- 5’ TCC TTC GAC GCC TCC TGG TTG 3’, 0,2pM cada; DNA 3,0µL); desnaturação, anelamento e extensão (1x 94°C/5’; 32x 94°C/0,5’, 61oC/1’ e 72oC/1’); e extensão final (72°C/10’). O resultado positivo confirma presença de DNA de Leishmania na lesão, pois significa amplificação do fragmento gênico hsp70-234.12
b) Sequenciamento de DNA
Este procedimento identifica a sequência de bases nucleotídicas da região gênica hsp70-234, confirmando a distinção entre espécies de Leishmania ao compará-la com sequências bem caracterizadas, disponíveis no GenBank. Para tanto, os produtos da PCR-hsp70-234 foram purificados (illustra ExoProStar; GE Healthcare Life Science) e sequenciados (forward e reverse) no analisador automático de DNA ABI3500XL, com o BigDye ® Terminator v3.1 Cycle Sequencing Kit (Applied Biosystems). Na análise de sequências, utilizou-se o programa BioEdit e o aplicativo Basic Local Alignment Search Tool (BLAST).13 Amostras-controle foram DNA de L. braziliensis (MHOM/BR/1975/M2904), L. guyanensis (MHOM/BR/1975/M4147), L. lainsoni (MHOM/BR1881/M6426), L. shawi (MCEB/BR/1984/M8408), L. naiffi (MDAS/BR/1979/M533) e L. amazonensis (IFLA/BR/1968/PH8).
Para tabelas de frequências e cálculos da média e desvio-padrão, utilizou-se o software BioStat 5.0 (disponível em: www.mamiraua.org.br).
O projeto do estudo teve aprovação dos Comitês de Ética da Universidade Federal do Amapá (Certificado de Apresentação para Apreciação Ética [CAAE] no 57036716.0.0000.0003, aprovado em 22/08/2016) e do Instituto Evandro Chagas (CAAE no 57036716.0.3001.0019, aprovado em 03/10/2016).
Resultados
Foram incluídos 38 indivíduos com LC, sendo 28 homens e 10 mulheres com idades de 13 a 81 anos e média de 34,4 anos (desvio-padrão: 14,2), residentes em dez municípios do Amapá. Destes municípios, Mazagão referiu o maior número de casos (n=13). O agente etiológico mais frequente entre os participantes foi a Leishmania guyanensis (32/38). Aspectos clínico-demográficos e etiologia dos casos de LC são apresentados na Tabela 1.
Variáveis | Sexo | Total n=38 | |
---|---|---|---|
Masculino n=28 | Feminino n=10 | ||
Faixa etária (em anos) | |||
12|- 20 | 3 | 3 | 6 |
20|-30 | 9 | 1 | 10 |
30|-40 | 9 | 1 | 10 |
40|-50 | 5 | 3 | 8 |
50|-60 | 2 | 1 | 3 |
60|-81 | - | 1 | 1 |
Média de idade (desvio-padrão) | 32,5 (11,3) | 39,9 (19,9) | 34,4 (14,2) |
Município de infecção | |||
Mazagão | 10 | 3 | 13 |
Porto Grande | 3 | 4 | 7 |
Serra do Navio | 5 | - | 5 |
Tartarugalzinho | 3 | - | 3 |
Laranjal do Jari | 3 | - | 3 |
Santana | - | 2 | 2 |
Oiapoque | 2 | - | 2 |
Ferreira Gomes | 1 | - | 1 |
Pedra Branca do Amapari | 1 | - | 1 |
Calçoene | - | 1 | 1 |
Diagnóstico molecular (espécie Leishmania) a | |||
Leishmania (Viannia) guyanensis | 23 | 9 | 32 |
Leishmania (Leishmania) amazonensis | 2 | - | 2 |
Leishmania (Viannia) braziliensis | 1 | - | 1 |
Leishmania (Viannia) naiffi | 1 | - | 1 |
Leishmania (Leishmania) infantum | - | 1 | 1 |
Leishmania (Viannia) sp | 1 | - | 1 |
a) Diagnóstico molecular baseou-se na reação em cadeia de polimerase (PCR) e no sequenciamento da região gênica hsp70-234 de Leishmania.
Quanto ao número de lesões, 20 indivíduos apresentaram lesões múltiplas e 18 lesão única. Em 37/38 casos, as lesões foram do tipo úlcera, a maioria com diâmetro de 5 a 6cm, localizadas, predominantemente, em membros superiores (n=9) e inferiores (n=11). As manifestações clínicas predominantes foram crosta, infecção secundária e lesões-satélite. As características das lesões dos indivíduos com LC e os respectivos agentes etiológicos identificados após sequenciamento e análise da região gênica Hsp70-234 de Leishmania são descritos na Tabela 2.
Variáveis | Espécies de Leishmania | ||||||
---|---|---|---|---|---|---|---|
Leishmania guyanensis | Leishmania amazonensis | Leishmania braziliensis | Leishmania naiffi | Leishmania infantum | Leishmania (Viannia)sp | Total (n) | |
Número | |||||||
Única | 15 | 1 | 1 | 1 | - | - | 18 |
Múltiplas | 17 | 1 | - | - | 1 | 1 | 20 |
Tipo | |||||||
Úlcera | 32 | 2 | 1 | 1 | - | 1 | 37 |
Verrucosa | - | - | - | - | 1 | - | 1 |
Diâmetro (em cm) | |||||||
0,4|-2 | 5 | 1 | - | 1 | - | 1 | 8 |
2|-4 | 4 | - | 1 | - | - | - | 5 |
4|-6 | 9 | 1 | - | - | - | - | 10 |
6|-8 | 5 | - | - | - | 1 | - | 6 |
8|-10 | 5 | - | - | - | - | - | 5 |
10|- | 4 | - | - | - | - | - | 4 |
Localização | |||||||
Cabeça/face | - | - | - | 1 | - | - | 1 |
Tronco | 2 | - | - | - | - | - | 2 |
Membros superiores | 7 | 1 | 1 | - | - | - | 9 |
Membros inferiores | 11 | - | - | - | - | - | 11 |
Cabeça e tronco | 1 | - | - | - | - | - | 1 |
Cabeça, membros superiores e inferiores | 2 | - | - | - | - | - | 2 |
Cabeça, tronco e membros inferiores | 1 | - | - | - | - | - | 1 |
Tronco e membros superiores | 1 | - | - | - | - | - | 1 |
Tronco e membros inferiores | 4 | - | - | - | - | - | 4 |
Membros superiores e inferiores | 3 | 1 | - | - | 1 | 1 | 6 |
Manifestações clínicas predominantes (tipos) a | |||||||
Crosta | 16 | - | - | 1 | - | 1 | 18 |
Infecção secundária | 9 | - | - | - | - | 1 | 10 |
Lesões-satélite | 5 | 1 | - | - | - | - | 6 |
Linfangite | 5 | - | - | - | - | - | 5 |
Linfadenopatia | 2 | - | - | - | - | - | 2 |
Fibrose | 1 | - | - | - | - | - | 1 |
Cefaleia | 1 | - | - | - | - | - | 1 |
Erisipela | 1 | - | - | - | - | - | 1 |
a) Um ou mais tipos de manifestações associadas ocorreu, eventualmente, no mesmo indivíduo portador de LC.
O presente estudo contém o primeiro relato de L. infantum associada a LC no Amapá: mulher, 35 anos de idade, infectada no município de Porto Grande, com múltiplas lesões cutâneas verrucosas pelo corpo, de tamanhos variados, inclusive em coxas e pernas, sem doença visceral.
Discussão
O agente etiológico mais frequente, entre as cinco espécies identificadas em indivíduos com LC no Amapá, foi a L. guyanensis: 32 dos 38 casos analisados. O marcador hsp70-234 de Leishmania discrimina seis patógenos na Amazônia.12,14 A especificidade da hsp70-234 não foi previamente avaliada para L. lindenbergi, o sétimo patógeno causador de LC humana na Amazônia.8 Certas espécies de Leishmania identificadas neste estudo merecem destaque: (i) Leishmania amazonensis, que além da LC localizada, pode provocar leishmaniose difusa anérgica, raramente curável; e (ii) Leishmania guyanensis e L. braziliensis, as quais induzem lesões cutâneas/mucosas de difícil resolução,1,15 com alto grau de hipersensibilidade, inclusive surgidas meses ou anos após a cura clínica da lesão primária.1 Somente um longo acompanhamento médico garantiria eficácia no diagnóstico e tratamento de recidivas.15 Mesmo na ausência de envolvimento mucoso, conhecer o patógeno permite definir um prognóstico.
Indivíduos com LC por L. braziliensis e L. naiffi tinham úlcera única. A Leishmania braziliensis é amplamente distribuída no Brasil.1 A infecção por L. naiffi em humanos se limitava aos estados do Amazonas, Acre, Pará, Rondônia e Mato Grosso,16 sem complicações relatadas, até o presente estudo revelar o primeiro caso de LC por L. naiffi no Amapá.
A L. infantum é filogeneticamente próximo à Leishmania donovani, agente de LV e leishmaniose dérmica pós-calazar no Velho Mundo;17 a ocorrência de lesões cutâneas por L. infantum em imunocompetentes é incomum nas Américas, sobretudo no Brasil.14,18
Em africanos com LC, isolou-se L. infantum da pele, com lesão histologicamente distinta da provocada por Leishmania major.19 Desde 2015, casos de LC por L. infantum são registrados em diferentes estados brasileiros.14,18 Na África ou nas Américas, as características clínicas da LC variam segundo o agente etiológico.1,19 Este estudo destaca o pleomorfismo da LC por L. infantum, alertando sobre a necessária atenção ao diagnóstico precoce20 e, nesse sentido, a importância da vigilância para a prevenção também da LV humana no Amapá.
Focos da LC no Amapá são identificados principalmente em áreas de assentamento agrícola, extrativismo vegetal e garimpo,2 onde são mais atingidos pela infecção homens em idade produtiva. A maioria dos indivíduos analisados apresentava múltiplas lesões primárias, sugerindo diversas picadas do vetor, um comportamento reconhecido do Nyssomyia umbratilis, agente transmissor da L. guyanensis.1,8 Nesses casos, tratamentos prolongados com Glucantime® seriam necessários; entretanto, há expressiva morbidade e inclusive óbitos associados à toxicidade deste quimioterápico.3,5,21,22
Embora o Glucantime® seja a primeira opção de fármaco para LC no Brasil, recomenda-se Isotionato de Pentamidina® onde houver predomínio de L. guyanensis.1 Os doentes infectados com L. guyanensis provinham de nove dos dez municípios considerados na casuística, sugerindo ampla distribuição da espécie no Amapá, onde a fauna de vetores é exuberante.8,10,11
A infecção de L. braziliensis e L. guyanensis pelo vírus de RNA de Leishmania subtipo 1, observada no Peru, Bolívia, Guiana Francesa, Suriname e Brasil, explicaria a alta virulência e resistência dessas espécies à droga.23 O monitoramento de fatores biológicos da LC faz-se necessário, sobretudo nas regiões de fronteiras.
Em relação ao tratamento, em 2017, o Isotionato de Pentamidina® foi considerado preferencial em relação ao Glucantime® para tratamento sistêmico da LC em áreas onde predomina a L. guyanensis no Brasil. Na presença de (i) insuficiência renal, cardíaca e hepática, (ii) transplantados renais, cardíacos e hepáticos, (iii) gestantes e pessoas acima de 50 anos de idade, recomenda-se o uso da Anfotericina B® lipossomal. O Glucantime® seria primeira opção apenas para uso intralesional nessas áreas.1 Os resultados encontrados por este trabalho fundamentam as novas orientações terapêuticas para tratamento da LC no Amapá, adotadas a partir de 2018.24
Conclui-se haver predominância de infecção por L. guyanensis no Amapá, frequentemente associada a múltiplas lesões, adicionalmente aos primeiros relatos da presença de Leishmania naiffi e de L. infantum em amostras clínicas de LC no estado do Amapá.