Introdução
Em vários países tropicais, a ocorrência de acidentes escorpiônicos tomou proporções tão graves que levou a Organização Mundial da Saúde (OMS) a incluí-los na lista de doenças tropicais negligenciadas (DTNs).1 O crescimento desordenado das áreas urbanas, sua precariedade de saneamento básico a falta de moradias adequadas permitem a criação de ambientes favoráveis à proliferação de escorpiões e ao contato das pessoas com esses aracnídeos.2 Os acidentes escorpiônicos são capazes de gerar manifestações locais e sistêmicas, causando danos à saúde individual e, consequentemente, impacto na Saúde Pública.3
Devido ao aumento no número de casos de acidentes com animais peçonhentos, em 1987, o Ministério da Saúde implantou o Programa Nacional de Controle de Acidentes por Animais Peçonhentos (PCAAP), com o objetivo de garantir um tratamento de qualidade aos acidentados e o mapeamento das áreas de maior risco de ocorrência.4
No Brasil, a vigilância dos acidentes escorpiônicos é realizada de forma passiva, na forma de registro no Sistema de Informação de Agravos de Notificação (Sinan) do Ministério da Saúde.5 Instituído em 1993, o Sinan torna obrigatória a notificação de todos os casos de acidentes causados por animais peçonhentos, oportunizando o acesso à informação de forma a subsidiar os órgãos públicos da Saúde na distribuição de soro e na atenção ao acidentado.6 Não obstante todos esses esforços, dados do próprio ministério mostram que, entre 2010 e 2017, houve crescimento acentuado dos acidentes com escorpiões (de 52.509 para 124.077), perfazendo um total de 644.175 casos e 740 óbitos decorrentes.7
O escorpionismo é um problema de Saúde Pública no Brasil, por sua elevada incidência, distribuição geográfica ampla e alta letalidade.8,9 Três espécies do gênero Tityus são responsáveis por grande parte dos acidentes humanos na Bahia e em outros estados do país: Tityus serrulatus (escorpião amarelo, responsável pela maioria dos acidentes graves), Tityus bahiensis (escorpião marrom) e Tityus stigmurus.8
O presente estudo teve como objetivo descrever o perfil epidemiológico do escorpionismo e investigar fatores associados à gravidade dos casos notificados no Extremo Sul da Bahia.
Métodos
Trata-se de um estudo descritivo dos acidentes e óbitos causados por escorpiões, ocorridos no Extremo Sul baiano, no período de 2010 a 2017.
O Extremo Sul da Bahia é uma região localizada no Nordeste do Brasil, entre as coordenadas 16°40’ e 18°20’ Sul, 39°8’ e 40°37’ Oeste. Em 2010, a região contava uma população de 463.163 habitantes, com densidade demográfica de 24,9 hab/km².10 O território de identidade Extremo Sul da Bahia11 é composto por 13 municípios ocupando uma área de quase 18.536 km², correspondendo, aproximadamente, a 3,9% do território estadual. A região conta com dois tipos de clima, úmido na faixa leste e subúmido-seco na faixa oeste. A economia regional, baseada no comércio, agropecuária, silvicultura de eucalipto, lavouras de cana-de-açúcar e café, apresenta baixos índices socioeconômicos, refletidos em maior proporção da população situada na faixa de extrema pobreza e rendimentos médios, condições de habitação e índice de Gini menores que os registrados para o estado da Bahia como um todo, além de apresentar altos índices de endemias.12
foram investigadas as seguintes variáveis:
a) sociodemográficas
- faixa etária (em anos: <1; 1-4; 5-9; 10-14; 15-19; 20-34; 35-49; 50-64; ≥65);
- escolaridade (ignorada/não informada; analfabeto; 1ª a 4ª série incompleta do ensino fundamental; 4ª série completa do ensino fundamental; 5ª a 8ª série incompleta do ensino fundamental; ensino fundamental completo; ensino médio incompleto; ensino médio completo; educação superior incompleta; educação superior completa; não se aplica); raça/cor da pele (ignorada/não informada; branca; negra; amarela; indígena [optou-se pela junção de ‘parda’ e ‘preta’ como ‘negra’]); e13
- sexo (masculino; feminino).
b) clínico-epidemiológicas
- local da picada (ignorado/não informado; cabeça; braço; mão; tronco; perna; pé);
- zona de ocorrência (ignorada/não informada; urbana; rural; periurbana);
- classificação do caso (ignorado/não informado; leve; grave);
- evolução do caso (cura; óbito por acidente escorpiônico; óbito por outras causas);
- sintomas locais (ignorados/não informados; sim; não);
- sintomas sistêmicos (ignorados/não informados; sim; não);
- soroterapia (ignorada/não informada; sim; não);
- tempo de atendimento (em horas: ignorado/não informado; 0-1; 1-3; ≥3);
- acidente relacionado ao trabalho (ignorado/não informado; sim; não); e
- meses e estações de ocorrência dos acidentes.
Optou-se por dicotomizar a variável ‘gravidade’: (i) caso grave, no qual foram incluídos os casos moderados e graves; ou (ii) caso não grave, aqui incluídos apenas os casos leves. O agrupamento dos casos moderados com os casos graves justifica-se pela maior proximidade de suas características clínicas, como também pela maior possibilidade de comparação dos resultados do estudo com os da literatura.14
Foram calculadas as taxas de incidência dos acidentes escorpiônicos (por mil habitantes) em cada um dos 13 municípios do Extremo Sul Baiano, no período de 2010 a 2017. Como denominadores, foram empregadas as estimativas das populações residente nesses municípios, fornecidas pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), disponíveis na página eletrônica da Superintendência de Vigilância e Proteção da Saúde, da Secretaria da Saúde do Estado da Bahia (http://www.saude.ba.gov.br/suvisa/).
Para o cálculo da letalidade, dividiu-se o somatório total de óbitos pelo total de casos de acidentes escorpiônicos ocorridos entre 2010 e 2017.
O teste do qui-quadrado de Pearson foi empregado para comparação de proporções. Razões de chances (odds ratios [OR]) e respectivos intervalos de confiança de 95% (IC95%) foram calculados visando comparar características dos casos graves e não graves, de modo a se investigarem fatores associados à gravidade dos acidentes.
Foram utilizados os softwares TabWin32 3.6b e Microsoft Excel 2010.
Utilizarem-se dados individualizados do Sinan/Ministério da Saúde, obtidos via Lei de Acesso à Informação. Não foram acessados dados nominais dos acidentados ou qualquer outro que propiciasse sua identificação, respeitando a Legislação e as normas de ética em pesquisa recomendadas no país, não sendo necessário, portanto, que o projeto do estudo fosse submetido a um Comitê de Ética em Pesquisa, conforme determina a Resolução do Conselho Nacional de Saúde (CNS) no 466, de 12 de dezembro de 2012.
Resultados
No período de 2010 a 2017, foram notificados 3.055 casos de acidentes com escorpiões nos 13 municípios que compõem o Extremo Sul da Bahia. O menor número de casos notificados (197) correspondeu ao ano de 2010 e o maior (606), a 2017. Foram notificados dez óbitos, dois em cada ano de 2010 a 2013, um em 2014 e um em 2017. O munícipio com maior número de óbitos foi Nova Viçosa (5) e a maior letalidade foi verificada em Caravelas (1%) (Tabela 1).
Tabela 1 - Número, número de óbitos, letalidade e zona de ocorrência dos casos de acidente escorpiônico segundo o município de ocorrência, território do Extremo Sul da Bahia, 2010-2017
Município | Anos | Total N | Taxa de incidência | Óbitos N | Letalidade (%) | Zona | |||||||||
---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|
2010 | 2011 | 2012 | 2013 | 2014 | 2015 | 2016 | 2017 | Urbana N (%) | Rural N (%) | Periurbano/ignorado N (%) | |||||
Alcobaça | 6 | 9 | 2 | 3 | 6 | 3 | 5 | 13 | 47 | 2,1 | - | - | 4 (8,5) | 39 (83,0) | 4 (8,5) |
Caravelas | 36 | 48 | 39 | 22 | 56 | 30 | 21 | 44 | 296 | 13,4 | 3 | 1,0 | 55 (18,6) | 208 (70,3) | 33 (11,1) |
Ibirapuã | 6 | 4 | 11 | 20 | 30 | 53 | 38 | 10 | 172 | 20,3 | 1 | 0,6 | 39 (22,7) | 133 (77,3) | - |
Itamaraju | 7 | 2 | 5 | 2 | 11 | 15 | 9 | 29 | 80 | 1,2 | - | - | 25 (31,3) | 47 (58,8) | 8 (10,0) |
Itanhém | 18 | 9 | 13 | 21 | 29 | 16 | 8 | 20 | 134 | 6,6 | - | - | 18 (13,4) | 101 (75,4) | 15 (11,2) |
Jucuruçu | 2 | 3 | 2 | - | 5 | 3 | 4 | 2 | 21 | 2,1 | - | - | 3 (14,3) | 18 (85,7) | - |
Lajedão | 11 | 17 | 19 | 25 | 39 | 12 | 12 | 20 | 155 | 39,5 | - | - | 50 (32,3) | 104 (67,1) | 1 (0,6) |
Medeiros Neto | 32 | 29 | 74 | 75 | 122 | 71 | 70 | 120 | 593 | 26,0 | - | - | 165 (27,8) | 425 (71,7) | 3 (0,5) |
Mucuri | 37 | 44 | 28 | 38 | 45 | 35 | 58 | 95 | 380 | 9,6 | 1 | 0,3 | 129 (34,0) | 242 (63,7) | 9 (2,4) |
Nova Viçosa | 23 | 60 | 76 | 84 | 107 | 59 | 38 | 144 | 591 | 14,2 | 5 | 0,8 | 135 (22,8) | 453 (73,6) | 21 (3,6) |
Prado | 1 | 3 | 2 | 3 | 8 | 7 | 1 | 6 | 31 | 1,1 | - | - | 6 (19,4) | 22 (71,0) | 3 (9,7) |
Teixeira de Freitas | 18 | 37 | 48 | 44 | 68 | 114 | 113 | 102 | 544 | 3,6 | - | - | 349 (64,2) | 126 (23,2) | 69 (12,7) |
Vereda | - | 1 | - | 2 | 1 | 2 | 4 | 1 | 11 | 1,6 | - | - | - | 10 (90,9) | 1 (9,1) |
Total | 197 | 266 | 319 | 339 | 527 | 420 | 381 | 606 | 3.055 | 6,8 | 10 | 3,3 | 978 (32) | 1.910 (62,5) | 167 (5,5) |
Fonte: Sistema de Informação de Agravos de Notificação (Sinan).
Nota: incidência por 1000 habitantes.
Teixeira de Freitas foi o único município do Extremo Sul da Bahia onde a frequência de acidentes na área urbana (64,2%) foi superior à de sua área rural (23,2%) (Tabela 1).
A taxa de incidência e a letalidade podem ser conferidas graficamente, na Figura 1. A maior incidência foi observada em 2017 (1,3 por 1mil hab.) e a maior letalidade, em 2010 (1%).

Fontes: Sistema de Informação de Agravos de Notificação (Sinan); Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
Nota: incidência por 1 mil habitantes.
Figura 1 - Taxa de incidência e letalidade dos casos de acidente escorpiônico segundo o ano de ocorrência, território do Extremo Sul da Bahia, 2010-2017
Os acidentes com escorpiões na região do Extremo Sul da Bahia foram distribuídos ao longo do ano, com leve crescimento gradual entre os meses de abril a dezembro, quando, então, decaem até março.
Mais da metade dos acidentes (51%) concentrou-se na faixa etária de 20-49 anos. A maior parte dos óbitos deles decorrentes foi de crianças com até 9 anos de idade (7/10). No que se refere à escolaridade, havia falta de informação para 38,1% dos casos. A maioria dos acidentados (84%) autodeclarou-se de raça/cor da pele negra, sendo que todos os óbitos ocorreram nessa população. O sexo masculino concentrou a maioria dos casos (70,1%) e dos óbitos (6/10) (Tabela 2).
Tabela 2 - Características sociodemográficas dos casos e óbitos por acidente escorpiônico, território do Extremo Sul da Bahia, 2010-2017
Dados sociodemográficos | Casos | Óbitos N=10 | Letalidade % | |
---|---|---|---|---|
N=3.055 | % | |||
Faixa etária (em anos) | ||||
<1 | 54 | 1,8 | - | - |
1-4 | 78 | 2,6 | 3 | 3,8 |
5-9 | 119 | 3,9 | 4 | 3,4 |
10-14 | 176 | 5,8 | - | - |
15-19 | 235 | 7,7 | - | - |
20-34 | 809 | 26,5 | 2 | 0,2 |
35-49 | 750 | 24,5 | 1 | 0,1 |
50-64 | 565 | 18,5 | - | - |
≥65 | 269 | 8,8 | - | - |
Escolaridade | ||||
Ignorada/não informada | 1.165 | 38,1 | 2 | 0,2 |
Analfabeto | 146 | 4,8 | - | - |
1ª a 4ª série incompleta do ensino fundamental | 400 | 13,1 | 1 | 0,3 |
4ª série completa do ensino fundamental | 157 | 5,1 | - | - |
5ª a 8ª série incompleta do ensino fundamental | 638 | 20,9 | 1 | 0,2 |
Ensino fundamental completo | 99 | 3,2 | - | - |
Ensino médio incompleto | 123 | 4,0 | - | - |
Ensino médio completo | 139 | 4,5 | - | - |
Educação superior incompleta | 9 | 0,3 | - | - |
Educação superior completa | 12 | 0,4 | - | - |
Não se aplica | 167 | 5,5 | 6 | 3,6 |
Raça/cor da pele | ||||
Ignorada/não informada | 281 | 9,2 | - | - |
Branca | 169 | 5,5 | - | - |
Negra (preta + parda) | 2.567 | 84,0 | 10 | 0,4 |
Amarela | 25 | 0,8 | - | - |
Indígena | 13 | 0,4 | - | - |
Sexo | ||||
Masculino | 2.142 | 70,1 | 6 | 0,3 |
Feminino | 913 | 29,9 | 4 | 0,4 |
As regiões anatômicas mais acometidas pelas picadas foram as mãos (61,9%) e os pés (21%). A maioria dos óbitos (7/10) ocorreu nos casos que sofreram picadas na mão. Quanto à zona de ocorrência, o meio rural exibiu maior frequência de acidentes (62,5%), e de óbitos (6/10) (Tabela 3).
Tabela 3 - Características epidemiológicas e clínicas dos casos de acidente escorpiônico, território do Extremo Sul da Bahia, 2010-2017
Dados epidemiológicos/clínicos | Casos | Óbitos | Letalidade | |
---|---|---|---|---|
N=3.055 | % | N=10 | % | |
Local da picada | ||||
Ignorado/não informado | 116 | 3,8 | - | - |
Cabeça | 42 | 1,4 | - | - |
Braço | 182 | 6,3 | - | - |
Mão | 1.789 | 61,9 | 7 | 0,4 |
Tronco | 84 | 2,9 | 1 | 1,2 |
Perna | 186 | 6,4 | 1 | 0,5 |
Pé | 606 | 21,0 | 1 | 0,2 |
Zona de ocorrência | ||||
Ignorada/não informada | 101 | 3,3 | - | - |
Urbana | 978 | 32,0 | 4 | 0,4 |
Rural | 1.910 | 62,5 | 6 | 0,3 |
Periurbana | 66 | 2,2 | - | - |
Classificação do caso | ||||
Ignorada/não informada | 114 | 3,7 | - | - |
Leve | 2.530 | 82,8 | 3 | 0,1 |
Gravea | 411 | 13,5 | 7 | 1,7 |
Sintomas locais | ||||
Ignorados/não informado | 50 | 1,6 | - | - |
Sim | 2.814 | 92,0 | 9 | 0,3 |
Não | 191 | 6,3 | 1 | 0,5 |
Sintomas sistêmicos | ||||
Ignorado/não informados | 127 | 4,2 | 1 | 0,8 |
Sim | 244 | 8,0 | 6 | 2,5 |
Não | 2.684 | 87,9 | 3 | 0,1 |
Soroterapia | ||||
Ignorada/não informada | 73 | 2,4 | - | - |
Sim | 695 | 22,7 | 6 | 0,9 |
Não | 2.287 | 74,9 | 4 | 0,2 |
Tempo de atendimento (em horas) | ||||
Ignorado/não informado | 399 | 13,1 | - | - |
0-1 | 953 | 31,2 | 1 | 0,1 |
1-3 | 1.200 | 39,3 | 7 | 0,6 |
≥3 | 503 | 16,5 | 2 | 0,4 |
Acidente relacionado ao trabalho | ||||
Ignorado/não informado | 599 | 19,6 | - | - |
Sim | 690 | 22,6 | 1 | 0,1 |
Não | 1.766 | 57,8 | 9 | 0,5 |
a) Grave e junção de moderado-grave.
Fonte: Sistema de Informação de Agravos de Notificação (Sinan).
A maioria dos casos mostrou-se de importância leve (82,8%); contudo, houve 411 casos graves (13,5%), responsáveis pela maioria dos óbitos (7/10). Quanto à sintomatologia, 92,0% sofreram manifestações clínicas locais e 8% manifestações sistêmicas. Grande parte dos acidentados não fizeram uso da soroterapia (74,9%); entre os que foram a óbito, 60% fizeram uso desse tratamento. A maioria dos acidentados (55,8%) e daqueles idos a óbito (9/10) foram atendidos mais de uma hora após o acidente. A maioria dos casos (57,8%) não teve relação com o trabalho exercido pelo acidentado (Tabela 3).
Como fatores associados à gravidade dos casos (Tabela 4), destacaram-se a zona de ocorrência e a faixa etária. Acidentes ocorridos em zona rural exibiram chance 40% maior de serem caracterizados como graves, frente aos ocorridos em zona urbana (OR=1,40; IC95% 1,10;1,78). Menores de 15 anos tiveram três vezes mais chance de apresentar quadros graves, comparados aos demais indivíduos que sofreram acidentes com escorpiões (OR=3,26; IC95% 2,55;4,74). Não houve diferenças significativas entre as demais variáveis, quanto à gravidade.
Tabela 4 - Características epidemiológicas, clínicas e sociodemográficas dos acidentes escorpiônicos segundo a gravidade dos casos (N=3.055), território do Extremo Sul da Bahia, 2010-2017
Variáveis | Gravidade | p -valora | ORb | IC95% c | |
---|---|---|---|---|---|
Não (%) | Sim (%) | ||||
Zona de ocorrência | |||||
Urbana | 838 (88,8) | 106 (11,2) | - | 1,00 | - |
Rural | 1.582 (85,0) | 280 (15,0) | 0,006 | 1,40 | 1,10;1,78 |
Estação de ocorrência | |||||
Primavera/verão | 1.257 (85,4) | 215 (14,6) | - | 1,00 | - |
Outono/inverno | 1.273 (86,7) | 196 (13,3) | 0,323 | 0,09 | 0,73;1,11 |
Tempo de atendimento (em horas) | |||||
0-1 | 797 (85,8) | 132 (14,2) | - | 1,00 | - |
≥1 | 1.411 (85,2) | 246 (14,8) | 0,660 | 1,05 | 0,84;1,32 |
Local da picada | |||||
Pernas, braços e tronco | 380 (13.8) | 61 (13,8) | - | 1,00 | - |
Cabeça, mãos e pés | 2.013 (85,6) | 338 (14,4) | 0,764 | 1,05 | 0,78;1,40 |
Faixa etária (em anos) | |||||
≥15 | 2.243 (88,6) | 290 (11,4) | - | 1,00 | - |
<15 | 287 (70,3) | 121 (29,7) | <0,001 | 3,26 | 2,55;4,74 |
Sexo | |||||
Masculino | 1.784 (86,6) | 277 (13,4) | - | 1,00 | - |
Feminino | 746 (84,8) | 134 (15,2) | 1,196 | 1,16 | 0,93;1,45 |
Raça/cor da pele | |||||
Branca | 144 (88,3) | 19 (11,7) | - | 1,00 | - |
Negra (preta + parda) | 2.120 (85,4) | 361 (14,6) | 0,308 | 1,29 | 0,79;2,11 |
Escolaridade | |||||
Ensino médio completo ou mais | 139 (88,0) | 19 (12,0) | - | 1,00 | - |
Fundamental incompleto/completo | 1.171 (86,0) | 190 (14,0) | 0,504 | 1,19 | 0,72;1,96 |
Analfabeto | 124 (85,5) | 21 (14,5) | 0,528 | 1,24 | 0,64;2,41 |
Soroterapia/tempo de atendimento | |||||
Soroterapia de 0-1 hora | 93 (44,5) | 116 (55,5) | - | 1,00 | - |
Soroterapia ≥1 hora | 188 (47,5) | 208 (52,5) | 0,485 | 0,89 | 0,63;1,24 |
a) Teste qui-quadrado de Pearson.
b) OR: odds ratio (razão de chances).
c) IC95%: intervalo de confiança de 95%.
Discussão
No período de 2010 a 2017, constatou-se um crescimento na taxa de incidência dos acidentes escorpiônicos notificados no Extremo Sul da Bahia (de 0,5/1 mil hab. para 1,3/1 mil hab.). A maior parte das vítimas atendidas pelo sistema de saúde foram pessoas em idade produtiva, do sexo masculino, residentes no meio rural, com baixa escolaridade e negras. Crianças com quadros graves estão em maior risco de evoluir para óbito.
O crescimento da incidência dos casos nos municípios do Extremo Sul da Bahia segue a mesma tendência de muitos municípios no Brasil, onde o escorpionismo tem aumentado e atingindo proporções epidêmicas.15
Contrária a essa tendência, constatou-se redução da letalidade (de 1,0/1 mil para 0,2/1 mil) no Extremo Sul da Bahia, diferentemente dos demais municípios do estado, onde houve acréscimo de quase 50% no número de óbitos, de 27 em 2010 para 40 casos em 2017.16 A redução da letalidade por esses acidentes nos 13 municípios do Extremo Sul Baiano também contrastou com a tendência de aumento observada para o conjunto do Brasil.17
O aumento no número de casos notificados pode ser reflexo não apenas do crescimento de acidentes, em si, senão também de uma melhora no processo de notificação dos casos pela rede de atendimento. Desde 2009, o Ministério da Saúde realiza cursos de capacitação para a identificação, o manejo e o controle de escorpiões nos estados brasileiros, em cooperação com as Secretarias de Estado da Saúde, intensificando programas de sensibilização da população sobre o risco representado pela picada de escorpiões. Tais programas têm resultado na maior procura pelos estabelecimentos de saúde, em casos de acidente.18
Dos 13 municípios analisados, apenas Teixeira de Freitas apresentou maior proporção de acidentes na zona urbana, possivelmente relacionados à elevada taxa de urbanização - de 93,4% em 2010 - e à atividade econômica, com destaque para a área de construção civil, responsável por 61,3% desse setor nos municípios componentes do território investigado, particularmente em Teixeira de Freitas.12 Alguns estudos sugeriram, inclusive, que a ocorrência de acidentes escorpiônicos estaria associada a baixos índices socioeconômicos e falta de infraestrutura urbana.2,4
De acordo com o Ministério da Saúde, devido às alterações climáticas globais, em algumas regiões, os escorpiões têm se apresentado ativos durante todo o ano. Segundo estudo do ministério,9 os acidentes com escorpiões não apresentaram ocorrência sazonal, revelando certa uniformidade na ocorrência do agravo no decorrer dos meses e estações, o que corrobora os resultados encontrados por Barros et al.19 Esse achado pode ser explicado pelo fato de as condições climáticas serem relativamente estáveis, favoráveis à sobrevivência e proliferação dos escorpiões durante todo o ano. O regime pluviométrico na região se caracteriza por chuvas bem distribuídas e baixa variação das temperaturas ao longo do ano, entre os 20 e os 25ºC.12
Os acidentes ocorreram, predominantemente, na faixa etária de 20-49 anos, idade compatível com a população economicamente ativa. As principais atividades desenvolvidas na região - agricultura, pecuária e construção civil - apresentam condições de alto risco para picadas de escorpiões. Contudo, apenas uma pequena parte desses agravos está relacionada ao trabalho, contrastando com o estudo de Reckziegel e Pinto:20 segundo esses autores, mais da metade dos acidentes (62,5%) ocorreu durante atividades na zona rural. Devido à vulnerabilidade da atividade rural, cujos direitos trabalhistas e de assistência são pouco considerados,21 os acidentes relacionados ao trabalho podem estar subnotificados no presente estudo. Todavia, a relevante porcentagem (19,6%) de fichas de notificação sem informação das circunstâncias laborais envolvidas suscita a hipótese de o número de casos relacionados ao trabalho ser maior.
Existem múltiplos fatores de risco para a gravidade e o óbito, em acidentes escorpiônicos. A mais relevante é a idade, com risco de óbito e quadros graves maior em crianças de até 9 anos, nas quais a inoculação do veneno tende a criar maiores concentrações, dado seu menor volume corporal.14 Neste estudo, 70% dos óbitos ocorreram em crianças de 1 a 9 anos; e os menores de 15 anos tiveram três vezes a chance de apresentarem quadros graves, frente aos demais indivíduos picados por escorpiões.
O aumento dos acidentes escorpiônicos está diretamente relacionado ao crescimento desordenado dos centros urbanos, à inadequação de infraestrutura domiciliar e ao desequilíbrio ambiental.22,23 Diante desse quadro, indivíduos socioeconomicamente vulneráveis e autodeclarados negros (84,0%), vivendo na zona rural e com baixa escolaridade (analfabetos e com até 7 anos de estudo) foram os que mais sofreram acidentes escorpiônicos. A atividade de produção no meio rural é exercida, principalmente, por homens, aumentando seu risco de exposição aos escorpiões, como já fora relatado em recente estudo de Silva et al.24
No presente trabalho, assim como no de Bucaretchi et al.,25 as mãos foram a região anatômica mais afetada nos acidentes escorpiônicos. O achado se justifica tanto pelas atividades domésticas26 como pela não utilização de equipamento de proteção individual (EPI) pelos trabalhadores em suas atividades.24 O acidente escorpiônico se caracteriza, sobremaneira, por envolver atividades manipulativas de objetos e locais onde se abrigam os escorpiões. EPIs poderiam ser um importante instrumento para evitar os acidentes em ambientes de trabalho.
Corroborando outros estudos,14,20 grande parte dos acidentes-alvo desta pesquisa foram classificados clinicamente como leves. A ocorrência dos casos graves e óbitos pode estar relacionada ao tempo de atendimento das vítimas: a maioria dos óbitos foram causados por acidentes ocorridos na zona rural, sob condições logísticas precárias para um atendimento imediato e eficiente. Em 70% dos óbitos, o tempo transcorrido até o atendimento foi de 1 a 3 horas. Os óbitos ficaram praticamente restritos aos casos classificados como graves, em sua maioria causados pelo T. serrulatus, espécie amplamente encontrada na Bahia.9 Para evitar desfechos negativos, relacionados a sequelas e óbitos, é indispensável que o intervalo de tempo entre o acidente e o atendimento seja o menor possível.20,27,28 Portanto, é imprescindível que a população seja informada sobre as unidades de saúde onde o tratamento soroterápico é fornecido, para que os acidentados sejam levados imediatamente a esses locais.
A dor intensa é o sintoma local mais comum, conforme as descrições da maior parte dos casos.15,19 Contudo, nos acidentes mais graves, a dor pode ser camuflada pelos sintomas sistêmicos, que progridem à medida que o tempo vai passando e o atendimento não ocorre.8 Em 8% dos acidentes analisados neste estudo, encontravam-se registrados sintomas sistêmicos, importantes enquanto gatilho na tomada de decisão quanto ao tratamento mais indicado para o paciente. Os sintomas sistêmicos vagais (hipotensão arterial, tonturas, escurecimento da visão, bradicardia, cólicas abdominais e diarreia) estavam presentes em 60% dos pacientes que foram a óbito. Por essa razão, os sintomas clínicos apresentados pela vítima no momento do atendimento devem ser avaliados com a devida atenção, pois são eles que determinam a classificação do caso e direcionam o uso ou não da soroterapia.15
O Guia de Vigilância em Saúde (2017) recomenda tratamento soroterápico apenas nos casos classificados como moderados e graves, possíveis de evoluir para óbito,15 que, no caso deste estudo, somaram 13,5% dos pacientes. No entanto, 22,7% dos pacientes receberam soroterapia, sugerindo um erro na classificação dos casos ou tratamento soroterápico. Outra falha encontrada nos registros são os óbitos classificados como leves (30%), apenas com sintomas locais de dor e edema, não apresentando sintomas sistêmicos nem soroterapia, com tempo de atendimento entre 1 e 3 horas (dois casos) e 3 a 6 horas (um caso). Estes fatos sugerem um erro de interpretação ou de digitação da ficha de investigação do Sinan pelos profissionais responsáveis.20 Mais da metade dos casos idos a óbito receberam a soroterapia, um tratamento resolutivo quando realizado na dosagem correta. Possivelmente, mais fatores teriam contribuído para os óbitos, recomendando-se uma futura e melhor investigação sobre esses determinantes.
A elevada ocorrência de escorpionismo na região do extremo Sul da Bahia, no período de 2010 a 2017, associada aos fatores socioeconômicos, conforma um cenário epidêmico com aumento dos casos, a despeito de redução dos óbitos, sugerindo uma melhora no atendimento prestado pela rede de atenção à saúde. Porém, o aumento dos acidentes deve ser mais bem compreendido, para a adoção de ações de prevenção e cuidados à saúde, especialmente da população rural masculina e das crianças.
A região do Extremo Sul da Bahia apresenta, como principais atividades econômicas, a produção de cana-de-açúcar e café, plantação de florestas de eucalipto e pecuária.10 Estas atividades levam ao desmatamento e à ocupação humana, alterando o habitat natural dos escorpiões e favorecendo o contato do homem com o escorpião, com potenciais acidentes. Estudos sobre a ecologia dos escorpiões fazem-se necessários, para melhor compreender o impacto da atividade agroflorestal na incidência de acidentes escorpiônicos na região.29,30
Ressalta-se que o estudo em tela também encontra limitações, relacionadas a fonte de dados secundários. O Sinan apresenta falhas no momento do preenchimento e digitação das fichas de investigação, o que pode comprometer os resultados das análises em nível local. Ainda que se considerem tais falhas, elas não anulam os resultados alcançados, tendo-se em conta a dimensão da amostra utilizada no período do estudo. Ademais, nos 13 municípios observados, a duplicidade de informações não ocorre com frequência, visto que a soroterapia se restringe às poucas unidades de saúde onde acontece o atendimento - e a notificação.