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Epidemiologia e Serviços de Saúde

versão impressa ISSN 1679-4974versão On-line ISSN 2237-9622

Epidemiol. Serv. Saúde vol.29 no.2 Brasília  2020  Epub 15-Abr-2020

http://dx.doi.org/10.5123/s1679-49742020000200012 

ARTIGO ORIGINAL

Malária entre povos indígenas na fronteira Brasil-Guiana Francesa, entre 2007 e 2016: um estudo descritivo*

Malaria entre pueblos indígenas en la frontera Brasil-Guyana Francesa, entre 2007 y 2016: un estudio descriptivo

Anapaula Martins Mendes (orcid: 0000-0002-3287-797X)1  , Marilene da Silva Lima (orcid: 0000-0002-7283-4368)2  , Anaytatyana Góes Peixoto Maciel (orcid: 0000-0003-0793-9291)3  , Rubens Alex de Oliveira Menezes (orcid: 0000-0002-0206-5372)4  , Nádia Cristine Coelho Eugênio (orcid: 0000-0002-3162-3919)2 

1Universidade Federal de Santa Catarina, Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva, Florianópolis, SC, Brasil

2Universidade Federal do Amapá, Oiapoque, AP, Brasil

3Governo do Estado do Amapá, Superintendência de Vigilância em Saúde, Macapá, AP, Brasil

4Universidade Federal do Amapá, Laboratório de Estudos Morfofuncionais e Parasitários, Macapá, AP, Brasil

Resumo

Objetivo:

descrever o perfil e a incidência dos casos de malária entre indígenas e não indígenas na fronteira franco-brasileira, no período de 2007 a 2016.

Métodos:

estudo descritivo, realizado a partir de casos notificados no Sistema de Informação de Vigilância Epidemiológica da Malária (SIVEP-Malária), organizados pelo software Tableau 10.3.

Resultados:

de um total de 21.729 casos no período, o ano de 2009 apresentou o maior registro, 3.637 (16,7%) notificações, das quais 1.956 (53,8%) entre indígenas com incidência parasitária anual (IPA) de 261 por 1 mil habitantes; os polos-base de Kumenê (IPA entre 13 e 534/1 mil hab.) e Manga (IPA entre 55 e 448/1 mil hab.) apresentaram maior risco de infecção; crianças representaram 20,0 a 40,0% dos casos notificados, e gestantes cerca de 2,0% dos casos entre não indígenas e 1,0% entre indígenas.

Conclusão:

a malária se apresentou de maneira desigual entre indígenas e não indígenas, com maior ocorrência entre povos indígenas.

Palavras-chave: Malária; Epidemiologia; Vigilância em Saúde Pública; Áreas de Fronteira; Saúde de Populações Indígenas

Resumen

Objetivo:

describir el perfil y la incidencia de los casos de malaria entre indígenas y no indígenas en la frontera franco-brasileña, entre 2007 y 2016.

Métodos:

estudio descriptivo, realizado a partir de análisis de casos notificados en el Sistema de Información de Vigilancia Epidemiológica de la Malaria (SIVEP-Malaria), organizados por el software Tableau 10.3.

Resultados:

de 21.729 casos en el período, 2009 presentó el registro más alto, 3.637 (16,7%) notificaciones, 1.956 (53,8%) entre indígenas con incidencia parasitaria anual (IPA) de 261/1.000; el mayor riesgo de infección ocurrió en los polos Kumenê (IPA entre 13 y 534/1,000) y Manga (IPA entre 55 y 448/1.000); los niños representan 20% hasta 40% de los casos, y las mujeres embarazadas alrededor del 2,0% entre no indígenas y 1,0% entre indígenas.

Conclusión:

la malaria es desigual entre los dos grupos, con mayor riesgo para los indígenas.

Palabras clave: Malaria; Epidemiología; Vigilancia en Salud Pública; Áreas Fronterizas; Salud de Poblaciones Indígenas

Introdução

A malária, uma doença infectoparasitária muito antiga no mundo, é, ademais, um agravo de difícil controle, com ampla distribuição em diversos países, incluindo o Brasil. A Organização Mundial da Saúde (OMS) registrou, em 2017, mais de 217 mil casos de malária no país, o que caracterizou um aumento de 84% sobre o ano anterior.1

O Brasil concentrou, no mesmo ano de 2017, o segundo maior número de casos das Américas (22%), perdendo somente para a Venezuela, que teve com cerca de 50% dos casos. Mais de 90% dos registros brasileiros ocorrem na Região Amazônica, onde questões socioeconômicas, culturais e ambientais tendem a favorecer a reprodução do vetor e, consequentemente, a infecção pelo Plasmodium. Em 2017, foram estimados 189.503 casos de malária no país, sendo 90% das infecções pelo Plasmodium vivax e 30 óbitos notificados pela doença.1,2

Na região fronteiriça entre o Brasil e a Guiana Francesa, fatores como a criação de assentamentos, áreas de garimpo, condições migratórias, habitacionais e atividades ocupacionais estão diretamente ligados ao aumento da transmissão da doença, além de questões ambientais e socioeconômicas.3 A incidência parasitária anual (IPA) é um indicador utilizado para estimar o risco de ocorrência da malária - entre baixo, médio e alto risco de infecção - em uma determinada população e período. A região da fronteira franco-brasileira tem apresentado mais de 50 casos de malária em cada 1 mil indivíduos, motivo por que foi classificada como de alto risco de infecção para sua população e, portanto, foco das ações de controle do Ministério da Saúde.

Os povos indígenas, especialmente, têm protagonizado altas incidências de malária na Região Amazônica: em 2012, foram responsáveis por quase 50% dos casos autóctones registrados nessa fronteira.4-8 Segundo Basta et al.,7 o crescimento de casos de malária entre os anos de 2003 e 2007 foi bastante expressivo. Na área fronteiriça-objeto deste estudo, por exemplo, o crescimento foi de 151 casos, registrados em 2003, para 1.823 em 2007, representando um aumento de 12 vezes. Esta informação pode ser interpretada como resultado de uma melhoria nas ações de controle da malária e seu registro; porém, ainda é vista de maneira preocupante, enquanto evidência de um grave problema a ser enfrentado pelos povos indígenas na região. Adicionalmente, é possível que esses números representem valores inferiores aos reais, uma vez que o atendimento assistemático realizado nessas áreas favorece a subnotificação, o que, afinal, reflete a situação do acesso aos serviços de saúde vivenciada por povos indígenas no Brasil.5,6,9,10

Estudos realizados com foco na saúde dos povos indígenas no Brasil são relativamente escassos e os perfis epidemiológico e de saúde dessa população também estão longe de serem traçados, dada a imensa diversidade socioeconômica, geográfica e cultural dos diferentes povos. O presente estudo buscou preencher parte dessa lacuna, dando visibilidade à situação vivenciada por essa população em relação à malária.

O objetivo do estudo foi descrever o perfil e a incidência dos casos de malária entre indígenas e não indígenas na fronteira franco-brasileira, no período de 2007 a 2016, a partir dos dados disponíveis no Sistema de Informação de Vigilância Epidemiológica da Malária (SIVEP-Malária).11

Métodos

Trata-se de um estudo descritivo sobre a distribuição dos casos de malária no município de Oiapoque, Amapá, notificados no SIVEP-Malária no período de 2007 a 2016, com foco na situação apresentada pelos povos indígenas locais.

Em 2015, o município de Oiapoque, situado no extremo norte do estado do Amapá, no limite com a Guiana Francesa, possuía uma população de 24.263 habitantes, da qual faziam parte aproximadamente 7 mil indígenas distribuídos em mais de 100 aldeias: os grupos étnicos Karipuna e Galibi Kali’ña, com aldeias na abrangência do polo-base Manga; os Galibi Marworno, predominantemente situados no polo-base Kumarumã; e os Palikur, pertencentes ao polo-base Kumenê.5,12-14

Os dados extraídos do SIVEP-Malária11 foram analisados com uso do software Tableau versão 10.3, mediante chave de acesso da Superintendência de Vigilância em Saúde do Estado do Amapá (SVS/AP), autorizada pelo Programa Nacional de Controle de Malária do Ministério da Saúde. Posteriormente, esses dados foram organizados em figuras e tabelas de contingência, com frequências relativas e absolutas.

Foram utilizadas as seguintes variáveis:

  1. raça/cor da pele, categorizada como ‘indígena’ e ‘não indígena’ (não indígena: preta, parda, amarela ou branca);

  2. ano de ocorrência (dentro do período de 2007 a 2016);

  3. faixa etária (em anos completos: <10; 10 a 59; ≥60);

  4. local de residência (polos-base: Kumenê; Kumarumã; Manga);

  5. tipo de plasmódio ou espécie parasitária (vivax; falciparum; mista; não falciparum); e

  6. número de casos entre gestantes.

A análise dos registros de casos entre gestantes foi realizada tão somente a partir de 2011, por limitações do próprio sistema de informação que, no período de 2007 a 2010, não trazia a informação da variável ‘raça/cor da pele’ para esse grupo.

A IPA foi calculada considerando-se como numerador o número de exames positivos de malária registrados no SIVEP-Malária,11 e como denominador a população, por 1.000 (mil) habitantes, em determinado espaço geográfico, no ano considerado - esta última informação, com base nos dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).12,13 Foram excluídos os resultados de lâmina de verificação de cura (LVC) por estarem relacionados a recidivas (recrudescências e recaídas). Foi estimado o risco de ocorrência anual de malária em áreas endêmicas, de acordo com os seguintes parâmetros: baixo (<10,0/1000 hab.); médio (10,0 a 49,9/1.000 hab.); e alto (≥50,0/1.000 hab.).11

Realizou-se o teste do qui-quadrado para verificar a diferença entre os grupos analisados, sendo considerados estatisticamente significativos os valores de níveis descritíveis iguais ou inferiores a 5% (valor de p≤0,05), segundo o aplicativo Bioestat 5.3. Nesta avaliação, foram testadas as relações de dependência entre indígenas e não indígenas no que concerne às variáveis ‘número de casos’, ‘incidência’, ‘local de infecção’ e ‘casos em gestantes’. Os testes foram realizados em partições, ou seja, várias comparações de todo o período, entre indivíduos indígenas e não indígenas.

Todas as atividades desenvolvidas foram fundamentadas e respaldadas pela Resolução do Conselho Nacional de Saúde (CNS) nº 466, de 12 de dezembro de 2012. O projeto do estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal do Amapá (CEP/UNIFAP): Parecer no 2.430.905, emitido em 12 de dezembro de 2017.

Resultados

No período de 2007 a 2016, foram registrados 21.756 casos de malária no município de Oiapoque. A população indígena apresentou maior registro no ano de 2009, com 1.956 casos, representando um IPA de 261 em 1.000 habitantes. Nos anos subsequentes, esse quantitativo reduziu-se; porém, entre os anos de 2015 e 2016, a população indígena do município novamente apresentou maior número de casos de malária no município, em relação aos demais segmentos populacionais, com IPA de 86 casos em 1.000 hab. em 2015 (Figura 1). Na análise do teste de qui-quadrado, observou-se que a diferença entre as proporções de casos de malária para ambas as populações, indígena e não indígena, ao longo do período estudado, foi dependente de os indivíduos serem indígenas (valor de p<0,001).

Fonte: Sistema de Informação de Vigilância Epidemiológica da Malária (SIVEP-Malária), Secretaria de Vigilância em Saúde, Ministério da Saúde. Data de atualização: 14/12/2017.

Figura 1 - Distribuição de casos de malária e sua incidência parasitária anual (IPA) entre indígenas e não indígenas no município de Oiapoque, Amapá, segundo o Sistema de Informação de Vigilância Epidemiológica da Malária, 2007-2016 

Adicionalmente, ao se analisarem as diferenças entre as proporções de casos de malária para a variável ‘local de residência’ (polo-base) entre povos indígenas (Kumarumã, Kumene e Manga), no período 2007-2016, foi observada maior prevalência e incidência de casos nos polos-base de Kumenê e Manga, com estatística significativa na comparação desses polos (valor de p<0,001) (Figura 2).

Fonte: Sistema de Informação de Vigilância Epidemiológica da Malária (SIVEP-Malária), Secretaria de Vigilância em Saúde, Ministério da Saúde. Data de atualização: 14/12/2017.

Figura 2 - Distribuição da incidência parasitária anual (IPA) de malária por polo-base dos indígenas no município de Oiapoque, Amapá, segundo o Sistema de Informação de Vigilância Epidemiológica da Malária, 2007-2016 

O tipo de plasmódio mais incidente entre indígenas e não indígenas, durante todo o período analisado (2007-2016), foi o vivax, independentemente do segmento populacional. Porém, nos anos de 2011 a 2013, houve muitos casos registrados de malária do tipo falciparum, número este reduzido em 2014, passando-se a observar casos esporádicos nos anos seguintes. Os casos de malária do tipo falciparum foram mais frequentes na população não indígena. Nos anos de 2012 e 2015, observou-se um incremento no número de casos de ‘não’ falciparum entre a população indígena (Tabela 1).

Tabela 1 - Frequência de casos de malária de acordo com a espécie parasitária, entre indígenas e não indígenas no município de Oiapoque, Amapá, segundo o Sistema de Informação de Vigilância Epidemiológica da Malária, 2007-2016 

Ano Indígenas Não indígenas Total de casos
F V M+M Ñ F F V M+M Ñ F
N % N % N % N % N % N % N % N %
2007 188 6 1.433 47 10 0 - 0 260 8 1.148 37 27 1 - 0 3.066
2008 106 3 1.576 45 18 1 - 0 330 9 1.323 38 123 4 - 0 3.476
2009 203 6 1.743 48 10 0 - 0 270 7 1.366 38 42 1 - 0 3.634
2010 579 14 1.020 24 9 0 - 0 620 15 1.895 45 50 1 - 0 4.173
2011 474 11 1.683 38 11 0 - 0 472 11 1.795 40 34 1 - 0 4.469
2012 47 2 702 28 11 0 427 17 242 10 1.054 42 33 1 1 0 2.517
2013 30 2 380 29 1 0 16 1 128 10 756 57 15 1 1 0 1.327
2014 4 1 181 26 - 0 18 3 24 3 475 67 4 1 - 0 706
2015 1 0 406 37 1 0 222 20 4 0 448 41 - 0 10 1 1.092
2016 1 0 451 57 - 0 12 2 22 3 299 38 3 0 1 0 789

Legenda

F: Plasmodium falciparum, ou P. falciparum.

V: Plasmodium vivax.

M+M: P. malariae + mista (P. falciparum e P. vivax na mesma infecção).

ÑF: não P. falciparum (resultado de coletas de testes rápidos).

Fonte: Sistema de Informação de Vigilância Epidemiológica da Malária (SIVEP-Malária), Secretaria de Vigilância em Saúde, Ministério da Saúde. Data de atualização: 14/12/2017.

Nota: as frequências (%) são relativas ao total de casos notificados; valores menores que 0,5% foram arredondados para ‘0’.

Entre as gestantes, no período 2011-2016, observou-se maior frequência de casos de malária registrados em mulheres pardas e indígenas de Oiapoque (Figura 3). Não houve diferença significativa entre os casos de malária nos grupos classificados de acordo com raça/cor da pele, no segmento das gestantes (valor de p=0,006).

Fonte: Sistema de Informação de Vigilância Epidemiológica da Malária (SIVEP-Malária), Secretaria de Vigilância em Saúde, Ministério da Saúde. Data de atualização: 14/12/2017.

Figura 3 - Casos de malária em gestantes, conforme raça/cor da pele, no município de Oiapoque, Amapá, segundo o Sistema de Informação de Vigilância Epidemiológica da Malária, 2011-2016 

Quando se analisa a distribuição dos casos por faixa etária, entre indígenas e não indígenas, no período de 2007 a 2016, encontra-se um percentual a variar entre cerca de 20 e 40% dos casos em menores de 10 anos, e maior concentração entre adultos jovens (10 a 59 anos). Esta situação é muito similar entre ambos os segmentos populacionais, em todo o período (Tabela 2). O número de casos de malária em crianças foi expressivo, apresentando pequenas oscilações ao longo dos dez anos observados.

Tabela 2 - Distribuição de casos de malária por faixa etária, entre indígenas e não indígenas, no município de Oiapoque, Amapá, segundo o Sistema de Informação de Vigilância Epidemiológica da Malária, 2007-2016 

Faixas etárias (em anos) Período Total
2007 2008 2009 2010 2011 2012 2013 2014 2015 2016
N % N % N % N % N % N % N % N % N % N % N
Indígenas
<10 718 44 612 36 724 37 338 21 161 34 475 40 132 31 89 44 107 17 111 24 3.467
10-59 913 56 1.085 63 1.229 62 1.269 78 307 65 710 60 293 65 114 55 523 82 353 75 6.796
≥60 - 0 3 1 3 1 1 1 6 1 2 0 2 4 - 1 - 1 - 1 17
Total 1.631 100 1.700 100 1.956 100 1.608 100 474 100 1.187 100 427 100 203 100 630 100 464 100 10.280
Não indígenas
<10 660 46 657 37 303 18 359 14 66 14 292 22 162 18 65 13 69 15 36 11 2.669
10-59 774 54 1.116 63 1.370 81 2.203 86 398 83 1.036 78 735 82 437 87 393 85 286 88 8.748
≥60 1 0 3 0 8 1 3 0 8 3 2 0 3 0 1 0 - 0 3 1 32
Total 1.435 100 1.776 100 1.681 100 2.565 100 472 100 1.330 100 900 100 503 10 462 100 325 100 11.449

Fonte: Sistema de Informação de Vigilância Epidemiológica da Malária (SIVEP-Malária), Secretaria de Vigilância em Saúde, Ministério da Saúde. Data de atualização: 14/12/2017.

Nota: valores proporcionais menores que 0,5% foram arredondados para ‘0’.

Discussão

Durante o período de 2007 a 2016, o indicador IPA possibilitou observar um risco de adoecer por malária mais expressivo entre povos indígenas. Praticamente em todos os anos analisados, a IPA apresentou valores que ultrapassaram 50 casos registrados entre 1 mil hab., portanto de alto risco de infecção, com aumento importante nos anos de 2007 a 2010, quando se registraram valores de mais de 200/1 mil hab., quase três vezes superiores aos da população não indígena. Apesar de, em alguns anos, o número de casos ser maior entre o segmento não indígena, a incidência, em todos os anos do período observado, foi maior entre povos indígenas.

De acordo com informações do Ministério da Saúde, a incidência de casos de malária nas comunidades indígenas, de forma geral, aumentou consideravelmente entre 2012 e 2014. Isso fez com que medidas de prevenção e controle fossem direcionadas aos indígenas, promovendo a reordenação da rede de saúde e das práticas sanitárias e desenvolvendo atividades administrativo-gerenciais necessárias à prestação da assistência, com participação social, no intuito de reduzir as epidemias que assolam suas comunidades.9,10

A proximidade dos povos indígenas a ambientes silvestres propicia maior exposição aos diversos patógenos presentes no ambiente natural, sobretudo nas áreas fronteiriças.3,7 Ainda de acordo com o mesmo Ministério da Saúde, os municípios que integram a faixa de fronteira amazônica contribuíram com 37,2% de todos os casos de malária registrados no Brasil, no ano de 2010,9,10 sendo fundamental manter a atenção sobre essas áreas e procurar os determinantes de tal incremento no número de casos.

De acordo com Braz, Duarte e Tauil,4 o risco de adoecer por malária entre povos indígenas é duas vezes maior do que entre não indígenas, na Amazônia; esta representatividade em relação à incidência da doença também foi descrita por Lapouble et al.15 Estes estudos observaram que quase a metade dos municípios da Amazônia Brasileira apresentou algum tipo de epidemia de malária entre os anos de 2003 e 2012, evidenciando que os fenômenos epidêmicos ocorreram mais naqueles municípios com populações indígenas, assentamentos e garimpos, e fronteiriços.4,15

Esse panorama contribui para a transmissão da doença, face ao aumento da exposição e, consequentemente, do contato vetor/habitante, requerendo maior atendimento dos serviços de saúde.4 Essa desigualdade relativa à situação de saúde dos indígenas, comparada às demais populações, se apresenta em diferentes estudos, e de forma mais expressiva quando se trata das doenças infecciosas e parasitárias.7,16

É possível afirmar que o parasito mais comum circulante nesta área fronteiriça do Brasil com a Guiana Francesa é o Plasmodium vivax. Contudo, apesar de o município de Oiapoque já ter feito parte do grupo que representava o maior percentual de casos de falciparum na Região Amazônica, a tendência à redução de casos por essa espécie parasitária se mantém, inclusive entre os povos indígenas da região.4,15 Essa tendência pode ser explicada por alguns fatores, como (i) o P. vivax apresentar uma distribuição geográfica mais ampla, uma vez que o vetor é capaz de tolerar grande variedade de temperaturas e sobreviver em altitudes mais elevadas, (ii) a presença de estágios hepáticos dormentes (hipnozoítos) que podem ser ativados meses após a infecção inicial, causando recaídas e a circulação precoce dos estágios sexuais (gametócitos) no sangue periférico, o que pode tornar este Plasmodium menos sensível em relação ao falciparum, e ainda (iii) as estratégias de controle direcionadas à redução do falciparum implementadas pela OMS e Ministério da Saúde nos últimos anos.17,18

Na análise por faixa etária, os povos indígenas apresentaram uma elevada distribuição entre menores de 10 anos. A proporção de casos, assim como sua redução nos últimos anos analisados, foi similar entre ambos os segmentos populacionais, no período 2007-2016. Em relação a sua distribuição por idade, corroborando diversos registros da Região Amazônica, observou-que que a doença tem acometido, com frequência, crianças, tanto indígenas como não indígenas, caracterizando-as enquanto grupo passível de ser considerado de maior risco e, portanto, que necessita ser mais bem assistido. Esse contexto potencializa as questões socioculturais envolvidas no processo de adoecimento dessa faixa etária, que não se aplicam somente aos povos indígenas.10,14

A combinação dos determinantes biológicos (imunidade de grupo), culturais (tipo de habitação, relações com a sociedade nacional, competências culturais), sociopolíticos (acesso aos serviços de saúde) e geográficos (localização em áreas de fronteira e de difícil acesso) faz com que a malária em áreas indígenas apresente um comportamento epidemiológico diferenciado.4 A transmissão da malária nas áreas indígenas de fronteira também é influenciada pela diversidade e complexidade das relações que se estabelecem no espaço fronteiriço; entretanto é pouco estudada, a despeito de haver muitas iniciativas do Brasil com outros países visando ao controle integrado da doença.2 Outrossim, as áreas de fronteira no Brasil contam com uma atenção à saúde marcada pela carência de profissionais e consequente dificuldade no acesso de suas populações a esses serviços.

É importante citar que o contingente indígena dispõe de uma política de saúde específica. Nesse sentido, a Atenção Primária do Sistema Único de Saúde (SUS) deveria adequar suas ações dirigidas a esses povos, considerando seus modelos organizacionais, de maneira a favorecer a promoção da saúde e prevenção de doenças, como a malária.20,21 A elevada mobilidade transfronteiriça dos indígenas, a dificuldade de acesso à região pelas equipes de saúde e a persistente incursão de garimpeiros dificultam as ações de controle da malária nessas regiões. A mobilidade constante nessas áreas ainda contribui para a mudança do perfil epidemiológico da doença.22,23

Outra condição relevante são os casos de malária na gestação. As mulheres grávidas, em áreas endêmicas, são acometidas com relativa frequência, acarretando uma série de efeitos deletérios não só para a mãe, como também para o feto.24 Mulheres grávidas são particularmente vulneráveis à malária, porque seu estado de imunidade se modifica durante a gestação, tornando-as mais suscetíveis às alterações no curso da gravidez, aumentando o risco de formas complicadas da doença. Para o feto, a malária materna é causa frequente de ameaça de aborto, de parto prematuro, baixo peso ao nascer, crescimento intrauterino restrito e anemia materna.25,26 Gestantes, crianças e primoinfectados estão sujeitos a maior gravidade, principalmente quando infectados pelos P. falciparum, podendo evoluir a óbito.

Vale ressaltar que o fato de a placenta constituir um local propício para a multiplicação do parasito pode tornar as grávidas mais sensíveis à malária, com exacerbação dos sintomas e maior risco de complicações.27,28 Em 2001 e 2002, um inquérito epidemiológico de base populacional realizado no município de Coari, estado do Amazonas, encontrou uma prevalência de infecção de 4,3% em gestantes, contra uma prevalência de 0,8% em mulheres não gestantes da mesma faixa etária.27

Faltas na abordagem da fisiopatologia da malária materna e das dificuldades específicas do tratamento são limitações ou impedimentos à informação e análise, ao se consultarem diferentes estudos dedicados à temática.27,28 Sendo assim, mostram-se necessários trabalhos relacionados aos possíveis impactos da malária na gestação, que estimem a frequência das principais alterações no curso da gravidez e identifiquem os possíveis fatores associados à infecção, no sentido de subsidiar políticas públicas de prevenção e assistência.

Nesse contexto, a atenção à saúde indígena tem se revelado um desafio, dadas as particularidades das demandas dessas populações. Doenças como malária, diarreias, desnutrição, tuberculose e infecções respiratórias ainda se destacam no perfil epidemiológico desses povos. Este perfil, embora tenha sofrido alterações ao longo dos anos, mantém-se caracterizado por grande desigualdade entre indígenas e outros segmentos populacionais.5,7,21,29 Dada a incidência elevada de malária no período do estudo (2007-2016), é importante dar atenção especial aos indígenas, principalmente por sua presença marcante na fronteira entre o Brasil e a Guiana Francesa, em função das mobilidades existentes nessa região.

Essa condição de mobilidade dos povos indígenas se reflete na distribuição não homogênea da doença nas áreas fronteiriças; ademais, áreas de maior ou menor transmissão variam ao longo dos anos, em função dos movimentos populacionais existentes.22,29 É importante destacar que as competências culturais e os saberes tradicionais já foram descritos por outros autores como importantes pontos a serem considerados no momento da avaliação e do planejamento de ações relacionadas ao controle da malária entre indígenas.21 Diferentes percepções relacionadas ao processo saúde-doença e as diversas práticas de autocuidado dos doentes de malária influenciam, de forma direta, no comportamento desses povos e nos resultados esperados sobre o impacto da doença, segundo determinada comunidade ou território.24,30 Novos estudos também são necessários para se entender melhor a dinâmica de transmissão da malária entre povos indígenas.

Este trabalho contribuiu para delinear os perfis de adoecimento por malária entre os povos indígenas de uma área fronteiriça. Uma limitação para seu desenvolvimento, análise e conclusões encontra-se na qualidade dos registros realizados no Sistema de Informação de Vigilância Epidemiológica da Malária - (SIVAP-Malária), dada a possibilidade de duplicidade de informação, não registro ou registro incorreto da variável raça/cor da pele, podendo levar à possível subnotificação dos casos entre indígenas. Outra limitação do estudo estaria no fato de o SIVAP-Malária não especificar as formas clínicas da doença, uma informação que subsidiaria outras análises. Entretanto, pela amplitude dos dados, não seria possível obter as informações necessárias de outras fontes que não o SIVAP-Malária.

O controle da malária entre os povos indígenas é uma ação complexa. Questões socioeconômicas, culturais, ambientais, ecológicas, biológicas e de logística envolvidas na abordagem desse público afetam a eficácia das medidas de controle e prevenção, implicando a necessidade de investimento em pesquisas que busquem alternativas viáveis de resposta a esses desafios. Vale destacar que as aldeias Manga e Kumenê merecem especial atenção, fortalecimento e maior precisão no direcionamento das ações de controle e prevenção da doença, uma vez que são os locais com maior distribuição dos casos na fronteira entre o Brasil e a Guiana Francesa.

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*O projeto da pesquisa de se originou este artigo contou com o apoio financeiro de bolsa de estudos concedida pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior, fundação vinculada ao Ministério da Educação do Brasil (Capes/MEC): Capes/PDSE, Edital no 47/2017 - Processo no 88881.190163/2018-01.

Recebido: 01 de Abril de 2019; Aceito: 29 de Janeiro de 2020

Endereço para correspondência: Anapaula Martins Mendes - Universidade Federal do Amapá, Campus Binacional Oiapoque, Bairro Universidade, Rodovia. BR156, no 3051, Oiapoque, AP, Brasil. CEP: 68980-000. E-mail: anapsosa@hotmail.com

Contribuição dos autores

Mendes AM e Eugênio NCC contribuíram na elaboração e desenvolvimento do projeto do estudo, coleta dos dados e análise dos resultados, estruturação e redação do artigo. Lima MS e Maciel AGP contribuíram na elaboração e desenvolvimento do projeto, coleta dos dados e análise dos resultados do estudo. Menezes RAO contribuiu na análise dos dados, estruturação e redação do artigo. Todos os autores são responsáveis pela versão final do manuscrito, assim como por todos os demais aspectos do trabalho, garantindo sua precisão e integridade.

Editora associada: Bárbara Reis Santos - orcid.org/0000-0001-6952-0352

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