Introdução
A infecção pelo vírus da hepatite B (VHB) pode resultar em inflamação do tecido hepático até a necrose hepatocelular.1 Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), as hepatites virais causaram 1,34 milhões de mortes em 2015, representando um severo problema de saúde pública no mundo. Estima-se que 257 milhão de pessoas vivam com infecção crônica por VHB, afetando principalmente a Região Africana da OMS e a do Pacífico Ocidental.2
No ambiente odontológico, o VHB pode-se disseminar pelo contato direto com sangue, saliva e instrumentos contaminados.3 Os profissionais auxiliares em saúde bucal destacam-se pela alta suscetibilidade à contaminação pelo VHB, condição inerente a sua exposição ocupacional.4 Para realizarem com segurança a rotina do descarte de resíduos, limpeza, desinfecção e esterilização dos instrumentais e equipamentos odontológicos, ademais do ambiente de trabalho, é fundamental que esses profissionais sejam esclarecidos sobre os métodos de prevenção da infecção.4,5
Entre as medidas preventivas mais relevantes, encontra-se a realização do esquema vacinal completo: administração de três doses da vacina contra a hepatite B, no intervalo de zero, um e seis meses.6 Recomenda-se, outrossim, a realização do teste anti-HBs para confirmar a imunização mediante a observância dos níveis de anticorpos,7 haja vista ser possível não desenvolver imunidade mesmo após se completar o esquema vacinal recomendado. Estudo realizado em 2015, com 340 indivíduos de uma faculdade de medicina na Índia, identificou 20% dos que completaram o esquema vacinal desprotegidos.8 O teste é seguro, simples e rápido; entretanto, ainda é pouco conhecido pelos profissionais da saúde.9,10
No presente estudo, objetivou-se investigar a imunização contra hepatite B em auxiliares em saúde bucal (ASBs) do Sistema Único de Saúde (SUS) no estado de São Paulo, Brasil, em 2018.
Métodos
Estudo transversal, realizado em 2018, com ASBs do SUS lotados em nove cidades do estado de São Paulo: Valparaíso, Bento de Abreu, Lavínia, Mirandópolis, Penápolis, Brejo Alegre, Alto Alegre, Clementina e Buritama. Estas cidades, inseridas no Departamento Regional de Saúde II da Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo, na região Noroeste paulista, não dispunham de Centro de Especialidades Odontológicas (CEO).
Foram convidados a participar do estudo os profissionais registrados no Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde (CNES) das unidades básicas de saúde (UBS), que não estavam em período de licença, afastamento ou aposentadoria. Foram excluídos aqueles que não aceitaram realizar o teste anti-HBs.
Realizou-se entrevista com aplicação de questionário semiestruturado, para avaliar o esquema vacinal completo contra hepatite B (sim; não; não sei), a realização prévia do teste anti-HBs (sim; não) e a interpretação do resultado de testes anti-HBs anteriormente realizados.
O questionário também contemplou perguntas sobre as seguintes variáveis:
sexo (masculino; feminino);
faixa etária (em anos: 20 a 35; 36 a 45; 46 a 55; 56 ou mais);
tempo de atuação profissional e tempo de atuação no serviço público (em anos: 5 ou menos; 6 a 15; 16 a 25; 26 ou mais);
nível de escolaridade (ensino superior completo; ensino superior incompleto; ensino médio completo);
ocorrência de acidente com material perfurocortante (sim; não); e
f) recebimento de orientações sobre a doença (sim; não).
A entrevista foi realizada na UBS, em salas isoladas, evitando-se interrupções. Os dados dos ASBs da mesma cidade foram coletados no mesmo dia, para prevenir troca de informações sobre o estudo.
O kit anti-HBsAg® (Wama, Brasil) foi utilizado para verificar a imunidade ao VHB. Considerou-se correta a interpretação de que o resultado positivo significava que o indivíduo estava imune à doença. Os testes anti-HBs foram realizados por um médico capacitado. A entrevista/proposição do questionário foi antecedida de estudo-piloto com amostra não incluída na pesquisa, equivalente a 10% da amostra do estudo.
As análises estatísticas foram realizadas com uso do software Epi InfoTM versão 7.0. Os resultados foram apresentados pela distribuição de frequência absoluta; para as variáveis contínuas, calculou-se a média e o desvio-padrão. Utilizou-se o teste do qui-quadrado de Pearson e o teste exato de Fisher para verificar associação entre o esquema vacinal completo, recebimento de orientações, realização prévia e resultado do teste anti-HBs. Adotou-se nível de significância de 5%.
O projeto do estudo foi aprovado pelo Comitê Permanente de Ética em Pesquisa com Seres Humanos da Faculdade de Odontologia de Araçatuba, Universidade Estadual Paulista (CEP/FOA/Unesp), mediante Certificado de Apresentação para Apreciação Ética (CAAE) nº 54227416.0.0000.5420) emitido em 29 de junho de 2018, e foi conduzido de acordo com a Resolução do Conselho Nacional de Saúde do Ministério da Saúde: CNS nº 466, de 12 de dezembro de 2012. Os participantes assinaram Termo de Consentimento Livre e Esclarecido.
Resultados
Do total de 70 ASBs registrados, 63 aceitaram participar da pesquisa. Os ASBs eram predominantemente do sexo feminino (n=58), na faixa etária de 36-45 anos (n=24), com média de 42 ± 12 anos (Tabela 1); 27 atuavam na profissão por um período de 6-15 anos, com média de 12 ± 9 anos, e 25 atuavam no serviço público pelo mesmo período, com média de 13 ± 8 anos.
Variável | N | |
---|---|---|
Sexo | ||
Feminino | 58 | |
Masculino | 5 | |
Faixa etária (em anos) | ||
20-35 | 20 | |
36-45 46-55 ≥56 | 24 13 6 | |
Tempo de atuação como auxiliar de saúde bucal (em anos) | ||
≤5 | 15 | |
6-15 | 27 | |
16-25 | 19 | |
≥26 | 2 | |
Tempo de serviço público (em anos) | ||
≤5 | 18 | |
6-15 | 25 | |
16-25 | 16 | |
≥26 | 4 | |
Escolaridade | ||
Ensino superior completo | 24 | |
Ensino superior incompleto | 12 | |
Ensino médio completo | 27 |
Pouco mais da metade dos ASBs (n=35) completou o esquema vacinal (Figura 1). Grande parte (n=29) apresentou resultado negativo ao teste anti-HBs; a maioria (n=47) nunca havia realizado o teste e somente 20 tinham conhecimento sobre seu significado correto. Outrossim, a maioria (n=32) apresentava histórico de acidente com instrumental perfurocortante.
Houve associação (p=0,025) entre realização do esquema vacinal completo e recebimento de orientações sobre a doença (Tabela 2). A completude do esquema vacinal foi observada em 32/51 dos ASBs que receberam orientação e apenas em 3/12 dos que não a receberam.
Variáveis | Esquema vacinal completo | ||||
---|---|---|---|---|---|
Não | Sim | Total | p-Valor | ||
n | n | n | |||
Resultado do teste anti-HBs | |||||
Negativo | 14 | 15 | 29 | 0,756a | |
Positivo | 14 | 20 | 34 | ||
Realização prévia do teste anti-HBs | |||||
Não | 22 | 25 | 47 | 0,722a | |
Sim | 6 | 10 | 16 | ||
Recebimento de orientações sobre a doença | |||||
Não | 9 | 3 | 12 | 0,025b | |
Sim | 19 | 32 | 51 |
a) Teste do qui-quadrado de Pearson.
b) Teste exato de Fisher.
Discussão
Uma parcela considerável dos ASBs não completou o esquema vacinal apresentou resultado negativo para o teste anti-HBs e, além de nunca haver realizado teste anterior, interpretou incorretamente o resultado obtido. A maioria relatou ter sofrido acidente com material perfurocortante, em alguma situação do trabalho, e ter recebido orientações sobre hepatite B.
Achados indicam que a prevalência de lesões percutâneas é maior entre ASBs do que entre cirurgiões-dentistas.11,12 O fato pode estar relacionado às atividades de desmonte, limpeza ou descarte dos instrumentos, com risco de acidentes mesmo após o término dos procedimentos.
Quase metade dos ASBs não estavam imunizados contra o VHB. Estudos conduzidos em países de renda alta e média também encontraram indicadores preocupantes de profissionais da odontologia que não apresentavam imunidade ao vírus.13,14 Estes achados reforçam a importância de desenvolver estratégias com o objetivo de aumentar as prevalências de vacinação e de conferência da imunidade.15
A maioria dos ASBs nunca havia realizado o teste anti-HBs. Achados similares foram identificados em estudo conduzido por Garcia et al.16 com 289 cirurgiões-dentistas e 104 auxiliares de consultório dentário do município de Florianópolis, Santa Catarina, evidenciando que a verificação da imunidade continua ausente das medidas preventivas adotadas sistematicamente pelos profissionais de saúde bucal. O desconhecimento e a falta de orientação resultam na baixa adesão ao procedimento.5,17,18
O teste anti-HBs verifica a imunidade contra o VHB. Entretanto, ele pode ser confundido com o teste de identificação da infecção pelo vírus. No presente estudo, mais de um quarto dos ASBs interpretaram erroneamente o resultado, relatando não serem portadores da doença quando diante do resultado negativo do teste. A proporção de ASBs que interpretaram corretamente o significado do teste foi menor, na comparação com a mesma proporção observada em recente estudo, conduzido por Garbin et al.19 junto a cirurgiões-dentistas (60%) do SUS do estado de São Paulo.
Houve associação entre o recebimento de orientações e a realização do esquema vacinal completo. Contudo, apenas pouco mais da metade dos ASBs haviam recebido as três doses da vacina. Destaca-se a elevada proporção dos que relataram desconhecer a condição de sua cobertura vacinal. A ausência de orientação e informação sobre a necessidade das três doses pode comprometer a vacinação completa dos indivíduos, sobretudo quando se sabe que o SUS disponibiliza gratuitamente a vacina.20-22
O desconhecimento sobre a quantidade de doses e o intervalo a respeitar entre elas prejudica a completude do esquema vacinal.21,22 São fatores capazes de provocar o esquecimento ou induzir o pensamento equivocado de que uma ou duas doses é suficiente para garantir a imunidade.
Não houve associação entre o esquema vacinal completo e o resultado do teste anti-HBs. A completude do esquema vacinal não garante a imunidade, e alguns indivíduos podem continuar expostos ao risco de infecção mesmo após completar o esquema vacinal.8,23 Isto pode decorrer de fatores como obesidade, tabagismo, insuficiência renal, doença hepática, imunossupressão, administração inadequada da vacina e intervalo incorreto entre as doses.23 Também é possível o declínio natural dos níveis de anticorpos, com o passar do tempo, e doses de reforço podem ser necessárias.24
A amostra composta apenas por ASBs do estado de São Paulo representa uma limitação do estudo, pois diferentes resultados podem ser encontrados em serviços públicos de outras localidades do estado ou do país. Ademais, a exclusão dos ASBs que se recusaram realizar o teste anti-HBs poderia influenciar os resultados, se profissionais que evitam essa ação preventiva forem os mais vulneráveis à doença. Considerando-se que nem todos os auxiliares de consultório dentário estão registrados no Conselho Regional de Odontologia de São Paulo, salienta-se que um fator importante para o estudo foi a possibilidade de convidar à participação todos os ASBs das UBS, desde que estivessem registrados no CNES.
A maioria dos ASBs recebeu orientações sobre a doença. Entretanto, uma parcela considerável deles não completou o esquema vacinal e apresentou resultado negativo para o teste anti-HBs. Poucos ASBs realizaram o teste anteriormente, e desses, poucos interpretaram corretamente o resultado. Revela-se um cenário alarmante, no qual se nota severa deficiência na imunização contra hepatite B de auxiliares em saúde bucal, evidenciando a necessidade de ações e estratégias que solidifiquem a adoção de práticas de controle e monitoramento da cobertura vacinal e verificação sistemática periódica da imunidade contra hepatite B entre esses profissionais.