Introdução
As políticas públicas de imunização são reconhecidamente as que apresentam a melhor relação custo/benefício e impacto epidemiológico, com elevado alcance social, fortalecendo tanto a promoção da saúde como a prevenção de doenças.1
No Brasil, desde o século XIX, as vacinas são utilizadas como medidas de controle de doenças. Em 1973, foi lançado o Programa Nacional de Imunizações (PNI), com a finalidade de coordenar as ações cujo objetivo é imunizar a população, controlar e erradicar as doenças imunopreveníveis. O PNI do Brasil é citado pela Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS) como referência mundial para a Saúde Pública, na área de imunização.2
Os imunobiológicos são produtos farmacológicos termolábeis, sensíveis ao calor, ao frio e à luz. De forma a manter sua potência, eles devem ser armazenados, transportados, organizados, monitorados, distribuídos e administrados adequadamente,1 e para assegurar que mantenham sua imunogenicidade, as vacinas devem ser mantidas em temperaturas adequadas, desde sua produção até sua utilização.3
É importante destacar que, no período 2010-2015, o orçamento do PNI cresceu mais de 140%, passando de R$ 1,2 bilhão, em 2010, para R$ 2,9 bilhões em 2015.4 O PNI também conta com vários Sistemas de Informações, cujos dados municiam o acompanhamento, análise e avaliação das redes de frio de todo o país, desde o estoque e distribuição até as perdas de vacinas, sejam perdas técnicas ou físicas, o que garante o diagnóstico necessário à organização e planejamentos de distribuições futuras.5) A rede de frio é definida como um sistema técnico-administrativo regido pelo PNI, por meio de normatizações, planejamento, avaliação e financiamento, com o propósito de manter a eficácia e a eficiência do processo.
A perda técnica é considerada uma perda justificável, porque resulta da abertura de um frasco de vacina multidose cujo vencimento do prazo de validade se encerra quando ele é aberto.6) Por sua vez, perdas físicas são aquelas consideradas evitáveis, como, por exemplo, quebra de frasco, falta de energia elétrica, falhas no equipamento, validade vencida, procedimento inadequado e falha no transporte, entre outras.7
Este estudo objetivou descrever as perdas físicas, por descarte, dos imunobiológicos fornecidos pelo PNI ao estado do Ceará no período de 2014 a 2016, e os custos das doses perdidas.
Métodos
Foi realizado estudo descritivo com base em dados secundários, documentados nos formulários de avaliação de imunobiológicos sob suspeita, expostos a temperatura inadequada, como também nos pareceres favoráveis de descarte por perda física, todos referentes ao período de janeiro de 2014 a dezembro de 2016, no Ceará. Os formulários de avaliação, juntamente com os pareceres técnicos de descarte ou reutilização dos imunobiológicos, foram obtidos do banco de dados da rede de frio do estado.
No presente estudo, foram consideradas perdas físicas aquelas decorrentes de armazenagem, acondicionamento e conservação inadequados, problemas na manipulação e transporte, como quebra ou fissura de frasco, vencimento da validade do imunobiológico, excursão de temperatura por falha do equipamento e problemas de rotulagem.
Os formulários de avaliação de imunobiológicos sob suspeita são preenchidos pelos profissionais responsáveis pelas salas de vacinas dos municípios no momento da ocorrência, e encaminhados para a Coordenadoria Regional de Saúde (CRES) de sua abrangência. As CRES, por sua vez, enviam os formulários impressos para a gerência da rede de frio estadual, responsável por emitir parecer técnico de descarte ou reutilização, levando em consideração (i) os dados da última leitura de temperatura antes e após o ocorrido, (ii) o tempo de exposição dos imunobiológicos à alteração de temperatura desde o início até o final da ocorrência, (iii) as temperaturas máximas, mínimas e de momento registradas durante o intervalo de exposição, e condutas adotadas quanto à conservação das vacinas, e (iv) os registros por escrito dos produtos, demonstrando se eles já sofreram ou não alterações de temperatura anteriores. A coleta de dados dos formulários de avaliação ocorreu nos meses de abril e maio de 2017.
A análise dos dados foi realizada mediante estudo estatístico descritivo, mostrando os tipos de imunobiológicos perdidos, a quantidade de doses perdidas em números absolutos, e o percentual dos principais fatores que levaram à ocorrência da perda física.
Por meio das notas de fornecimento de material disponibilizadas à rede de frio do Ceará pelo Ministério da Saúde, via Sistema de Informações de Insumos Estratégicos (SIES), foi calculado o valor do custo, em reais correntes, de todas as vacinas, soros e imunoglobulinas enviadas ao estado no período selecionado, por ano. O cálculo foi realizado considerando-se todos os reajustes de preços promovidos no período, atualizados em cada nota fornecida pelo Ministério. Com base nos mesmos reajustes, foram calculados os valores referentes às vacinas perdidas de forma física em cada ano, frente ao valor total do custo dessas vacinas.
Resultados
O estudo avaliou 317 formulários, provenientes das 22 CRES e seus municípios. Desses formulários, 257 (72,0%) obtiveram parecer de descarte após análise e avaliação pela rede de frio; os demais receberam pareceres de reutilização.
A Tabela 1 apresenta a descrição dos imunobiológicos perdidos fisicamente, durante o estudo, e os valores (em reais) das doses perdidas. Em 2014-2016, foram perdidas 160.767 doses de vacinas, soros e imunoglobulinas que fazem parte do elenco, fornecidos pelo PNI/Ministério da Saúde ao estado do Ceará, totalizando um custo de R$ 1.834.604,75. As perdas físicas registradas nos pareceres de descarte dos formulários representaram 0,45%, 0,93% e 0,53% do valor total do custo das vacinas em 2014, 2015 e 2016, respectivamente.
Imuno/soro | Número de doses | Custo médio por dose (R$) | Custo (em R$) | ||||
---|---|---|---|---|---|---|---|
2014 | 2015 | 2016 | 2014 | 2015 | 2016 | ||
Soro antibotrópico | 30 | 50 | - | 76,8 | 1.870.8 | 5.298,8 | - |
Soro antibotrópico/laquético | 20 | 10 | - | 101,3 | 1.634,8 | 1.210,3 | - |
Soro anticrotálico | 67 | 52 | - | 76,3 | 3.620,6 | 5.132,9 | - |
Soro antielapídico | - | 10 | - | 66,0 | - | 660,0 | - |
Soro antibotrópico/crotálico | 29 | - | - | 122,4 | 3.551,3 | - | - |
Soro antiescorpiônico | 14 | 26 | - | 37,4 | 420,9 | 1.163,5 | - |
Soro antirrábico | 48 | 12 | 13 | 45,2 | 1.500,9 | 637,2 | 690,3 |
Soro antitetânico | 33 | 11 | - | 62,1 | 1.584,0 | 840,1 | - |
Vacina antirrábica humana | 2.224 | 2.751 | 466 | 33,7 | 65.140,9 | 86.216,3 | 18.882,3 |
Vacina BCGa | 1.772 | 4.770 | 2.027 | 1,3 | 2.419,4 | 6.630,3 | 2.776,9 |
Vacina contra febre amarela | 47 | 660 | 300 | 1,7 | 1,3 | 1.702,8 | 774,0 |
Vacina contra hepatite A | 99 | 1.115 | 1.231 | 22,0 | 1.965,1 | 22.132,7 | 32.449,1 |
Vacina contra hepatite B | 2.712 | 9.727 | 4.434 | 1,5 | 3.932,4 | 15.757,7 | 7.316,1 |
Vacina contra HPVb | 1.128 | 4.510 | 2.805 | 38,5 | 34.990,5 | 190.682,8 | 118.651,5 |
Vacina contra influenza | 2.740 | 2.989 | 2.141 | 10,6 | 23.125,6 | 26.990,6 | 30.873,2 |
Vacina contra varicela | - | 99 | 583 | 39,1 | - | 4.752,9 | 17.664,9 |
Vacina dTb | 1.895 | 3.780 | 3.955 | 0,2 | 480,3 | 1.096,2 | 1.344,7 |
Vacina DTPc | 3.542 | 6.584 | 1.816 | 0,6 | 1.948,1 | 3.752,8 | 1.743,3 |
Vacina DTPad | 88 | 1.452 | 993 | 25,9 | 1.657,7 | 31.537,4 | 36.949,5 |
Vacina duplaviral | - | 1.714 | 1.626 | 1,3 | - | 2.262,4 | 2.130,0 |
Vacina meningocócica | 2.267 | 3.490 | 2.228 | 30,8 | 48.423,1 | 95.486,4 | 97.519,5 |
Vacina oral de rotavírus | 1.648 | 2.437 | 1.714 | 23,7 | 35.959,3 | 55.246,7 | 46.038,0 |
Vacina pentavalente | 3.450 | 4.853 | 1.944 | 6,4 | 22.942,5 | 30.962,1 | 12.461,0 |
Vacina pneumocócica 10v | 1.146 | 3.987 | 2.528 | 41,0 | 37.829,4 | 163.785,9 | 124.023,6 |
Vacina pneumocócica 23v | 3 | 254 | 52 | 19,2 | 46,1 | 4.373,8 | 1.312,4 |
Vacina tetraviral | 610 | 468 | 88 | 31,0 | 17.690,0 | 14.985,3 | 2.817,7 |
Vacina tríplice viral | 3.754 | 8.612 | 3.836 | 6,8 | 25.527,2 | 58.561,6 | 26.084,8 |
VIPe | 3.166 | 4.062 | 2.678 | 6,6 | 17.729,6 | 28.149,6 | 19.977,8 |
VOPf | 3.463 | 12.769 | 3.104 | 0,7 | 2.468,5 | 9.576,7 | 2.669,4 |
HIBg | 1 | - | - | 2,2 | 2,2 | - | - |
Total | 38.943 | 81.262 | 40.562 | - | 359.867,0 | 869.586,9 | 605.150,8 |
a) BCG: bacilo Calmette-Guérin.
b) HPV: Papilomavirus humano.
c) dT: difteria e tétano.
d) DTP: difteria, tétano e coqueluche.
e) DTPa: difteria, tétano e coqueluche acelular.
f) VIP: vacina inativada contra poliomielite.
g) VOP: vacina oral contra poliomielite.
h) HIB: Haemophilus Influenza do tipo B.
Os imunobiológicos com mais doses perdidas foram a vacina contra hepatite B, a vacina dupla adulto (dT), a vacina tríplice bacteriana (DTP), a vacina oral contra poliomielite (VOP) e a vacina tríplice viral, provavelmente por serem essas vacinas de frascos-multidoses.
O principal motivo das perdas físicas foi a queda de energia (54,9%), seguido de desligamento do interruptor geral de energia (10,6%), problemas relacionados aos equipamentos (9,2%), desligamento do plug das geladeiras (7,7%), porta da geladeira aberta (6,3%) e esquecimento da guarda de vacinas no refrigerador (4,7%), entre outros (Figura 1).
Discussão
O presente estudo revelou que no estado do Ceará, em um período de três anos (2014-2016), foram descartadas mais de 160 mil doses de vacinas por perdas físicas, correspondendo a um custo de quase dois milhões de reais. Levando-se em consideração o investimento anual do PNI com imunobiológicos destinados ao estado, o percentual perdido representou menos de 1% desse valor, no período.
Em termos financeiros, o ano de 2014 representou a menor perda, totalizando R$ 359.867,02, como também registrou o menor número de doses e ocorrências geradas, na comparação com cada um dos dois anos seguintes observados. O ano de 2015, particularmente, foi responsável pelo maior número de doses e valor perdidos, totalizando R$ 869.586,91 - ou 47,4% de todo o valor perdido no triênio analisado. Não obstante, ao mesmo ano corresponderam apenas 77 ocorrências de descarte, ou seja, um quantitativo inferior ao esperado, tendo por referência a relação perdas/custos verificada em 2014 e 2016. Logo, o elevado valor financeiro gerado com essas perdas pode ser justificado pela maior quantidade de imunobiológicos sob suspeita presentes em um mesmo formulário, como também pelas variações dos preços desses produtos, promovidas anualmente, por ocasião da renovação dos contratos de fornecimento assinados pelo Ministério da Saúde com os laboratórios produtores.
No presente estudo, a falta de energia foi o principal motivo das perdas de vacinas armazenadas. A maior proporção de perdas físicas nos estados de Santa Catarina e Amazonas também foi causada por falta de energia elétrica, 35,7% e 41,2% respectivamente. Já nos estados de Mato Grosso do Sul (38,6%) e Rio Grande do Norte (40,4%), a maior proporção de perdas identificadas aconteceu por motivos de erros nos registros, não correspondendo, portanto, a perdas físicas.8
A análise de perdas físicas no estado do Paraná, nos anos de 2009 a 2012, mostrou que as perdas de imunobiológicos por causas evitáveis representaram 3.437.552 doses, sendo que o ano de 2011 foi o que mais se destacou, com 38%. O maior percentual registrado decorreu de perda por falha no equipamento (76,5%), seguido das perdas por falta de energia (7%).9
Grande parte das perdas físicas poderia ser evitada com a permanente capacitação dos profissionais atuantes nas redes de frio, manutenção preventiva e corretiva dos equipamentos de refrigeração, controle de lotes e validade das vacinas, entre outras ações de execução igualmente simples.10 Para resolver a questão da falta de energia, responsável maior pelas perdas físicas levantadas pelo estudo, é mister tomar medidas de prevenção, como a instalação de geradores e a correta execução dos protocolos de contingência recomendados pelo PNI.
Em termos financeiros, apesar de as perdas físicas representarem pouco, diante do valor investido pelo Ministério da Saúde nas ações de imunização, as doses perdidas somaram quase R$ 2 milhões. São recursos que, se não desperdiçados, poderiam ser utilizados das mais variadas formas, para beneficiar a população cearense. Outrossim, enquanto essas perdas ocorrem, podem faltar imunobiológicos em outros locais do país, remetendo à responsabilidade do PNI em gerenciar melhor a rede de frio e sua distribuição.
Considera-se, portanto, que qualquer falha na cadeia de frio pode onerar o orçamento público, promover o desperdício, limitar o acesso da população à imunização e ter como desfecho a redução das coberturas vacinais.