Introdução
O Brasil é citado internacionalmente por sua resposta à epidemia do vírus da imunodeficiência humana (HIV: human immunodeficiency virus), agente infeccioso da síndrome da imunodeficiência adquirida (aids: acquired immunodeficiency syndrome), ou HIV/aids.1 Entre outras razões desse reconhecimento está a garantia do acesso universal ao diagnóstico e tratamento antirretroviral gratuito, no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS), embora persistam focos epidêmicos no país, principalmente em suas regiões Norte e Sul.
Em 2018, Porto Alegre, capital do estado do Rio Grande do Sul, apresentou a terceira maior taxa de detecção de casos de aids (53,7/100 mil hab.) entre as capitais dos 26 estados brasileiros e o Distrito Federal, e as maiores taxa de (i) detecção do HIV em gestantes (20,2 por mil nascidos vivos) e de (ii) mortalidade por aids (22,5 por 100 mil habitantes), além da maior (iii) contagem média de 332 linfócitos T-CD4/mm3 de sangue por ocasião do diagnóstico da infecção.2 No mesmo ano de 2018, a taxa de mortalidade por aids na capital gaúcha foi três e cinco vezes superior à observada no Rio Grande do Sul e no conjunto do Brasil, de 4,4 e 7,8/100 mil hab. respectivamente.2
O foco endêmico de HIV/aids em Porto Alegre apresenta características peculiares, que incluem acesso tardio ao diagnóstico e tratamento, inequidades no acesso aos serviços de saúde3 e impacto da coinfecção com a tuberculose.4 Neste contexto, a ausência de informações acuradas sobre morbidade e mortalidade constitui obstáculo relevante para o monitoramento e avaliação das respostas locais, além de impedir a elaboração de estratégias para a redução de mortes evitáveis relacionadas à aids.
Visando fortalecer o enfrentamento à epidemia, a Secretaria Municipal de Saúde de Porto Alegre implantou, em caráter pioneiro no país em 2011, o Comitê Municipal de Mortalidade por Aids (CMAids), reconhecido por Lei Municipal em 2013.5 O CMAids foi instituído à semelhança dos comitês de mortalidade materna6 e infantil7 recomendados pelo Ministério da Saúde (MS), para permitir a definição de estratégias de articulação interinstitucional, intersetorial e multiprofissional.
O presente estudo objetivou caracterizar os óbitos por aids elegíveis para investigação pelo CMAids de Porto Alegre, ocorridos em 2015, e seus itinerários terapêuticos.
Métodos
Estudo descritivo com dados secundários de indivíduos que morreram por aids no município de Porto Alegre em 2015.
Porto Alegre possuía uma população estimada para o ano de 2019 de 1.409.351 pessoas e um índice de desenvolvimento humano (IDH) de 0,805, predomínio da população feminina e faixa etária mais frequente entre os 25 e os 29 anos.8 O município conta com 143 unidades básicas de saúde (UBS), oito unidades para atendimento de urgência e emergência da rede municipal e mais oito unidades da rede conveniada;9 e ainda, quatro serviços de atendimento especializado (SAE) para pessoas com HIV/aids e três centros de testagem e aconselhamento (CTA) para a população geral.9
Foram estudados todos os óbitos relacionados a aids entre indivíduos residentes em Porto Alegre, ocorridos em 2015 e que possuíam critério para investigação pelo CMAids. Os óbitos definidos como elegíveis para investigação pelo CMAids, em função da evitabilidade10 pela efetiva ação dos serviços de saúde disponíveis, baseiam-se em cinco critérios: (i) casos de notificação pelo “critério excepcional ‘óbito’” (casos não enquadrados nos critérios de doença vigentes e casos onde não há informações que permitam caracterizar a doença por ocasião da notificação do óbito); (ii) indivíduos que possuíam coinfecção por tuberculose e idade inferior a 50 anos; (iii) indivíduos com tempo inferior a 2 anos entre o momento do diagnóstico de HIV e a morte; (iv) indivíduos com menos de 30 anos de idade; e (v) mulheres gestantes/puérperas. Indivíduos que faleceram em Porto Alegre mas possuíam outro município de residência não participaram do estudo.
O CMAids é composto por profissionais de saúde representantes de serviços da rede SUS, universidades, laboratório clínico de referência municipal, além de organizações não governamentais dedicadas à defesa dos direitos das pessoas vivendo com HIV/aids (PVHA). Profissionais da equipe de vigilância de doenças transmissíveis (EVDT) do município identificam os casos a partir do Sistema de Informações sobre Mortalidade (SIM) e qualificam essas informações pelos seguintes sistemas: Sistema de Informação de Agravos de Notificação – Aids (Sinan-Aids), Sistema de Controle de Exames Laboratoriais (Siscel) e Sistema de Controle Logístico de Medicamentos (Siclom). A cada mês, a EVDT elabora a relação dos casos, logo enviada aos membros do CMAids para, no âmbito dos seus respectivos serviços de saúde, realizarem busca em prontuários clínicos de informações dos óbitos sob investigação. Um banco de dados é gerado, a partir dos dados fornecidos pelos serviços de saúde e da análise dos membros do CMAids. Após o retorno de todos os representantes do CMAids, cada caso é discutido e realiza-se o fechamento da análise em reunião mensal do CMAids.
As informações para caracterização dos óbitos elegíveis para investigação pelo CMAids corresponderam às seguintes variáveis:
sexo (masculino; feminino);
idade (em anos);
raça/cor da pele (branca; preta; parda; indígena);
escolaridade (sem estudo; 1ª a 4ª série incompleta; 4ª série completa; 5ª a 8ª série incompleta; ensino fundamental completo; ensino médio incompleto; ensino médio completo ou superior; ignorada);
forma de transmissão do vírus (homossexual; bissexual; heterossexual; uso de drogas; transmissão vertical; ignorada);
tempo transcorrido entre o diagnóstico da infecção pelo HIV e a morte (em meses); e
tempo entre a notificação de caso de aids e a morte (em meses).
Os dados foram coletados a partir do SIM e do Sinan-Aids, e verificados, caso a caso, nos sistemas de informações Siscel e Siclom.
Além disso, os pesquisadores elaboraram questionário visando caracterizar os itinerários terapêuticos13 das PVHAs no período antecedente ao óbito. Os itinerários foram elaborados a partir das informações obtidas da revisão dos prontuários das PVHAs nos serviços de saúde de Porto Alegre onde atuam os representantes do CMAids. A pesquisa dos itinerários terapêuticos teve o propósito de identificar as causas de morte e as possíveis falhas/intercorrências no atendimento prestado às PVHAs no período antecedente ao óbito. Para a construção do instrumento de coleta de dados, utilizou-se o Protocolo de Investigação de Óbito por HIV/Aids do Ministério da Saúde.14 Todos os óbitos por aids previamente averiguados pelo CMAids foram analisados. Semanalmente, a equipe de pesquisa reuniu-se com quatro a cinco membros do CMAids detentores de experiência em vigilância epidemiológica, gestão em saúde e assistência à PVHA, para coleta de dados. Quando necessário, as informações foram qualificadas com dados do SIM, Sinan-Aids, Siscel e Siclom.
As variáveis coletadas nessa etapa foram:
critério de investigação pelo CMAids (critério ‘óbito’; coinfecção por tuberculose em indivíduos até 50 anos de idade; tempo de infecção inferior a 2 anos entre o diagnóstico de HIV e a morte; indivíduos com menos de 30 anos de idade; mulheres gestantes/puérperas);
causa do óbito (conforme a Décima Revisão da Classificação Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde [CID-10]);
alteração de causa do óbito após investigação do caso (sim; não);
situações correlacionadas ao óbito (uso abusivo de álcool e/ou drogas; indivíduo vivendo em situação de rua; paciente de doença psiquiátrica);
avaliação da adequação do itinerário terapêutico(14) (falha no acesso; falha na assistência; falha na organização do sistema de saúde; falha em relação ao tratamento antirretroviral; nenhuma falha);
evitabilidade do óbito (sim; não; inconclusiva);
critério de notificação (Caracas/Rio de Janeiro; CDC adaptado; CDC por contagem de células T-CD4; critério ‘óbito’); e
recomendações aos serviços de saúde.
As falhas mais frequentes identificadas nos itinerários terapêuticos, assim como o número de falhas concomitantes elencadas em cada caso, também foram objeto de contabilização. As falhas identificadas nos óbitos por aids elegíveis para investigação pelo CMAids em 2015 são apresentadas descritivamente, através de frequências absolutas e relativas, quando apropriado, médias e desvios-padrão ou medianas e intervalos interquartílicos. Para tanto, utilizou-se o software SPSS versão 25.0.
Os pesquisadores foram orientados quanto ao dever de preservar o sigilo e a privacidade dos casos analisados, incluindo a assinatura de Termo de Compromisso de Sigilo como requisito à participação no estudo.
O projeto do estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa do Hospital de Clínicas de Porto Alegre (CEP/HCPA): Registro no 12298713.7.0000.5327, de 10 de abril de 2013.
Resultados
Em 2015, ocorreram 336 óbitos por causas relacionadas à aids entre residentes de Porto Alegre. Desses óbitos, 113 (33,6%) foram considerados elegíveis para investigação pelo CMAids, que conseguiu realizar a análise de 52 casos, representando 46,0% dos óbitos elegíveis. A Figura 1 mostra o fluxograma de seleção dos casos analisados em relação ao total de óbitos elegíveis.
Ao se analisar os indivíduos elegíveis para investigação pelo CMAids (n=113), o critério mais frequente foi o diagnóstico com tempo de duração inferior a 2 anos entre o momento de identificação da infecção pelo HIV e a morte (59/113 casos), seguido pela coinfecção HIV-tuberculose em menores de 50 anos de idade (27/113 casos), conforme se apresenta na Tabela 1. Entre os óbitos investigados pelo CMAids (n=52), o primeiro e o segundo critérios mais frequentes foram os mesmos listados neste parágrafo, respectivamente 28/52 casos e 11/52 casos.
Variáveis | Óbitos elegíveis para investigação pelo CMAids (n=113) | Óbitos investigados pelo CMAids (n = 52) |
---|---|---|
| ||
n | n | |
Criterios de investigação dos óbitos | ||
| ||
Critério ‘Óbito’ | 13 | 7 |
Idade inferior de 30 anos | 12 | 6 |
Coinfecção TBª/HIVb com @idade inferior de 50 anos | 27 | 11 |
Diagnóstico de HIV com menos de 2 anos de duração | 59 | 28 |
Gestantes/puérperas | 2 | – |
| ||
Variáveis sociodemográficas | ||
| ||
Sexo masculino | 64 | 30 |
| ||
Raça/cor da pele | ||
| ||
Branca | 61 | 27 |
Preta | 29 | 14 |
Parda | 16 | 9 |
Indígena | 1 | – |
Ignorada | 6 | 2 |
| ||
Escolaridade | ||
| ||
Sem estudo | 3 | 1 |
1ª a 4ª série incompleta | 4 | – |
4ª série completa | 9 | 4 |
5ª a 8ª série incompleta | 45 | 24 |
Ensino fundamental completo | 13 | 7 |
Ensino médio incompleto | 8 | 2 |
Ensino médio completo ou superior | 12 | 6 |
Ignorada | 10 | 8 |
| ||
Variáveis clínicas | ||
| ||
Forma de transmissão do HIVb | ||
| ||
Homossexual | 6 | 3 |
Bissexual | 1 | 1 |
Heterossexual | 60 | 29 |
Uso de drogas | 6 | 1 |
Transmissão vertical | – | – |
Ignorada | 40 | 18 |
a) TB: tuberculose.
b) HIV: human immunodeficiency vírus – vírus de imunodeficiência humana.
Em relação às variáveis sociodemográficas, entre os óbitos com critério para investigação pelo CMAids, chama a atenção a maioria do sexo masculino, com 56,6% dos casos (64/113 casos), média de idade de 41 anos (desvio-padrão: 11 anos), maior frequência da raça/cor da pele branca (61/113) e predomínio de baixa escolaridade (61/113 casos estudaram até a 8ª série incompleta) (Tabela 1). Quanto aos óbitos investigados pelo CMAids, a maioria também era do sexo masculino (30/52 casos), com média de idade de 40,5 anos (desvio-padrão: 12,2 anos), predomínio da raça/cor da pele branca (27/52 casos) e baixa escolaridade (29/52 casos estudaram até a 8ª série incompleta).
Sobre as variáveis clínicas, a forma mais frequente de transmissão do HIV foi a heterossexual, tanto nos indivíduos que possuíam critério para investigação pelo CMAids (60/113 casos) como naqueles investigados pelo CMAids (29/52 casos). O período transcorrido entre o diagnóstico de HIV e o óbito, e entre a notificação de caso de aids e o óbito, apresentou medianas de 89 dias (intervalo interquartílico 9; 531 dias) e 38 dias (intervalo interquartílico 0; 400 dias), respectivamente, para os óbitos elegíveis; e de 38 (intervalo interquartílico 4; 497 dias) e 17 dias (intervalo interquartílico 0; 354 dias), respectivamente, para os casos investigados pelo CMAids.
As principais causas de morte foram analisadas entre os 52 casos investigados pelo CMAids (Tabela 2). Tuberculose foi a causa mais frequente (17/52 casos), sendo sua forma pulmonar a mais comum, seguida por pneumonia (14/52 casos) e septicemia (6/52 casos). Quanto às situações relacionadas à morte, em 21 casos houve relato de uso abusivo de álcool e/ou drogas.
Variáveis | Frequência absoluta |
---|---|
n | |
Causa do óbito | |
| |
Tuberculose pulmonar | 7 |
Tuberculose miliar | 4 |
Tuberculose não especificada | 6 |
| |
Tuberculose totala | 17 |
| |
Pneumonia não especificada | 9 |
Pneumocistose | 5 |
| |
Pneumonia totalb | 14 |
| |
Septicemia | 6 |
Criptococose | 5 |
Neurotoxoplasmose | 4 |
Leucoencefalopatia multifocal progressiva | 2 |
Histoplasmose | 1 |
Linfoma não-Hodgkin de tipo não especificado | 1 |
Acidente vascular cerebral | 1 |
Parada cardiorrespiratória | 1 |
| |
Situações correlacionadas ao óbito | |
| |
Uso abusivo de álcool e/ou drogas | 21 |
Indivíduos vivendo em situação de rua | 4 |
Paciente de doença psiquiátrica | 5 |
a) Somatório das tuberculoses pulmonar, miliar e não especificada.
b) Somatório da pneumonia não especificada e pneumocistose.
A análise da ocorrência de potenciais falhas no itinerário terapêutico colocou em evidência 150 eventos. Em 50 dos 52 casos investigados, existiu pelo menos uma situação caracterizável como falha, independentemente de qual fosse. Foram identificadas 72 (48%) situações caracterizadas como ‘falha na assistência prestada pelo serviço de saúde’ (Tabela 3). A categoria ‘diagnóstico tardio da infecção pelo HIV’ foi observada 23 vezes. Situações tipificadas como ‘falha no acesso aos serviços de saúde’ foram verificadas 46 vezes (30,7%) e, entre estas, 30 foram identificadas ‘no diagnóstico do HIV’. Ao se verificarem as falhas concomitantes em cada caso investigado, para 46 casos houve pelo menos uma falha relacionada à assistência prestada pelos serviços de saúde ao longo do itinerário terapêutico das PVHAs, enquanto para 29 casos verificou-se a existência de ao menos uma falha relacionada com o acesso aos serviços de saúde (Tabela 4).
Falhas | n | Categorias | n |
---|---|---|---|
Falha na assistência prestada pelo serviço de saúde | 72 | Diagnóstico tardio da infecção pelo HIVa | 23 |
Não adesão ao tratamento antirretroviral | 15 | ||
Perda de oportunidade no diagnóstico | 10 | ||
Manejo clínico inadequado durante a internação hospitalar | 10 | ||
Não realização de exames diagnósticos | 6 | ||
Manejo clínico inadequado no atendimento em emergência | 4 | ||
Não cumprimento do protocolo clínico para manejo do HIVa nos serviços de saúde | 4 | ||
| |||
Falha no acesso aos serviços de saúde | 46 | No diagnóstico do HIVa | 30 |
No acolhimento/consulta no ambulatório/serviço especializado | 6 | ||
No acolhimento/consulta na UBSb/ESFc | 4 | ||
Terapêutica adequada | 3 | ||
Internação hospitalar | 1 | ||
Internação em UTId | – | ||
Exames especializados | – | ||
Serviço de pronto atendimento/emergência | – | ||
Outra | 2 | ||
| |||
Falha em relação ao tratamento antirretroviral | 18 | Má adesão ao tratamento | 17 |
Paciente não queria receber tratamento | – | ||
Falha terapêutica na vigência de multirresistência do HIVa | – | ||
Outra | 1 | ||
| |||
Falha na organização da rede de serviços de saúde | 14 | Referência e contrarreferência do caso | 7 |
Central de regulação de leitos | 4 | ||
Transporte inter-hospitalar/serviços | – | ||
Central de regulação de consultas | – | ||
Outra | 3 | ||
| |||
Total | 150 |
a) HIV: human immunodeficiency vírus – vírus de imunodeficiência humana.
b) UBS: unidade básica de saúde.
c) ESF: Estratégia Saúde da Família.
d) UTI: unidade de tratamento intensivo.
Falhas concomitantes por indivíduo | Sem falhas | 1 falha | 2 falhas | 3 falhas | 4 falhas | 5 falhas |
---|---|---|---|---|---|---|
n | n | n | n | n | n | |
Falha de acesso aos serviços de saúde | 23 | 22 | 5 | 2 | – | – |
Falha na assistência prestada pelos serviços de saúde | 6 | 20 | 20 | 6 | – | – |
Falha na organização da rede de serviços de saúde | 39 | 12 | 1 | – | – | – |
Falha em relação ao tratamento antirretroviral | 34 | 18 | – | – | – | – |
Todas as falhas | 2 | 4 | 13 | 18 | 11 | 4 |
Discussão
Os achados deste estudo permitiram identificar, entre os óbitos investigados pelo CMAids de Porto Alegre, um predomínio de indivíduos com diagnóstico recente da infecção pelo HIV (até 2 anos pregressos), do sexo masculino, adultos, de raça/cor da pele branca e com baixa escolaridade; e ainda, que a principal causa de morte foi a tuberculose. Ademais, percebe-se a ocorrência de pelo menos uma falha ao longo do itinerário terapêutico na maioria das PVHAs investigadas, sendo a falha na assistência prestada pelo serviço de saúde a mais frequente.
A caracterização dos óbitos investigados pelo CMAids em Porto Alegre demonstrou perfil sociodemográfico e causas evitáveis de mortalidade consistentes com as encontradas em estudos prévios. Pesquisa realizada com uma coorte nacional, de pessoas acompanhadas no período de 2009 a 2012 e que recebiam terapia antirretroviral, demonstrou perfil sociodemográfico com predominância de homens, com média de 37 anos, e a via heterossexual de transmissão do HIV como a mais comum.15 Estudo de caso-controle realizado com óbitos e PVHAs, baseado em dados coletados do SIM e do Sinan-Aids de 2003, apresentou as maiores frequências para sujeitos na faixa etária de 30 a 39 anos, ensino fundamental incompleto e tempo entre o diagnóstico de aids e a morte inferior a um ano.16 Outra pesquisa, desenvolvida com os óbitos por aids de 2014, a partir das bases de dados de sistemas de informações do Uruguai, verificou que o sexo masculino, baixa escolaridade e via de transmissão sexual foram as características mais presentes, além da média de idade de 43,7 anos à época do falecimento.17
Na região metropolitana de Porto Alegre, estudo sobre o perfil sociodemográfico de pessoas com aids entre 1980 e 2015, com base em dados de sistemas de informações do Ministério da Saúde,18 encontrou predomínio de homens, faixa etária de 30 a 39 anos e categoria de exposição heterossexual.
Em relação ao perfil clínico, tanto os casos elegíveis para análise do CMAids quanto aqueles investigados revelam reduzido tempo entre o diagnóstico da infecção pelo HIV e o óbito, evidenciando perdas de oportunidades para a prevenção da infecção pelo HIV, progressão para aids e ocorrência do óbito.19 Além disso, a tuberculose, enquanto principal causa de morte dos indivíduos pesquisados, aponta para um perfil de morbidade compatível com a era prévia à adoção da terapia antirretroviral altamente ativa e da abordagem ‘testar e tratar’.22 A tuberculose ocorre em maior proporção nas PHVAs. A coinfecção HIV-tuberculose prejudica a aderência aos tratamentos e está relacionada à vulnerabilidade social dos sujeitos.23 Uma coorte retrospectiva analisou 2.419 casos dessa coinfecção em Porto Alegre, de 2009 a 2013, e mostrou frequências de hospitalização e mortalidade, respectivamente, de 63,1% e 27,4%.4
A tuberculose é um fator de risco para óbito de indivíduos com HIV/aids.20 No presente estudo, a enfermidade foi seguida por pneumonia e septicemia. Em Gana, um estudo retrospectivo com PVHAs hospitalizadas entre 2012 e 2013 encontrou tuberculose, anemia, toxoplasmose e pneumonia como causas do óbito, nessa ordem decrescente de frequência.24 Na cidade do Rio de Janeiro, em uma coorte de coinfectados por HIV e tuberculose, acompanhada no decênio 2000-2010, a pneumonia foi o agravo mais comumente diagnosticado.20 Mesmo com as variações entre as principais causas de morte, a tuberculose se apresenta como agravo mais frequente entre indivíduos com HIV, apesar de ser um evento clínico manejável e as mortes a ela atribuídas serem evitáveis mediante ações em saúde que reforcem o diagnóstico oportuno e o adequado tratamento.4
A frequência elevada de indivíduos com histórico de uso abusivo de álcool e/ou drogas na população estudada remete à característica da epidemia de HIV em Porto Alegre, onde, durante a década de 1990, mais de um terço dos casos de aids foram relacionados ao uso de drogas injetáveis.25 Sobre esse aspecto da transmissão do HIV, o consumo de drogas previamente ao falecimento esteve presente em 47,1% dos sujeitos do citado estudo realizado no Uruguai.17
Visto que as evidências apontam para perfis específicos de indivíduos que adoecem e morrem por causa de HIV/aids, as ações de prevenção e controle podem priorizar essas populações. Pessoas portadoras de coinfecção HIV-tuberculose, histórico de abuso de álcool e/ou drogas e diagnóstico recente do HIV necessitam de atenção diferenciada da rede de serviços de saúde, uma vez que possuem maior risco de morte.4 No entanto, em Porto Alegre, observa-se a fragilização do Programa Municipal de Infecções Sexualmente Transmissíveis e HIV/Aids, a baixa cobertura da Atenção Básica em Saúde, bem como dificuldades de articulação entre as redes de cuidado do HIV e da tuberculose e o perfil hospitalar de assistência.18
A análise dos itinerários terapêuticos evidenciou dificuldades dos serviços de saúde e seus profissionais na identificação e retenção dos indivíduos no tratamento da doença. Na ocasião, percebeu-se uma multiplicidade de fatores considerados contributivos para o óbito, conforme observado em outras análises realizadas por comitês de prevenção de mortalidade28 como o CMAids. Estudo realizado em municípios do interior de São Paulo no ano de 2014, com pessoas coinfectados com HIV-tuberculose, apontou que, nas localidades onde havia uma qualidade satisfatória do manejo desses pacientes, era também melhor a estruturação da Atenção Primária e de organização da rede de cuidado.29 O contexto de fragilidade da rede de serviços de saúde voltada às pessoas vivendo com HIV/aids em Porto Alegre reforça a necessidade de melhorias na assistência, no acesso à prevenção e no tratamento da infecção pelo HIV, e na rede de serviços de saúde em geral.
O presente estudo apresenta algumas limitações, a exemplo da impossibilidade de estudar a adequação dos itinerários terapêuticos em 113 óbitos elegíveis para investigação pelo CMAids em 2015, uma vez que parte das informações necessárias não estavam disponíveis. Porém, cabe considerar a semelhança do perfil dos casos elegíveis para investigação com o daqueles efetivamente analisados pelo CMAids. Outra limitação a destacar foi a utilização de dados secundários, coletados a partir de sistemas de informações em saúde e do banco de dados do CMAids: apesar dos esforços da equipe de pesquisa e treinamento para a coleta dos dados, as informações disponíveis estavam sujeitas a esse viés de fragilidade. A caracterização das falhas nas oportunidades de acesso ao diagnóstico e retenção dos indivíduos no tratamento apresenta subjetividade. Contudo, o caráter de colegialidade, representado pela discussão dos casos entre o grupo de pesquisadores, contribuiu para minimizar o efeito dessas falhas sobre a análise efetuada.
Os achados deste estudo permitiram a identificação de perfil sociodemográfico e clínico dos óbitos por HIV/aids de indivíduos residentes em Porto Alegre, predominantemente pessoas do sexo masculino, de raça/cor da pele branca, com baixa escolaridade e média de idade de 40 anos, referidos com diagnóstico recente de infecção pelo HIV e apresentando tuberculose como principal causa de morte. Tal caracterização possibilita postular, ao menos para parcela dos casos, que persistem falhas no acesso e retenção dos indivíduos no tratamento. Futuros estudos devem utilizar as informações geradas em nível local para a definição de ações em saúde que auxiliem no enfrentamento ao HIV.