Introdução
A hanseníase é uma doença infectocontagiosa de origem milenar e longo período de latência clínica causada pela bactéria Mycobacterium leprae .1 Integra o grupo de doenças tropicais negligenciadas, com elevada endemicidade em países com grandes iniquidades, como Índia, Brasil e Indonésia, que reuniam 80% das pessoas notificadas no mundo, em 2017.2
No Brasil, apesar dos esforços empreendidos para a integração do controle da hanseníase à rede de atenção à saúde, em 2017 foram registrados 92% dos casos novos do continente americano, totalizando 26.875 notificações e taxa de detecção geral de 12,9/100 mil habitantes.2 A distribuição geográfica dos casos de hanseníase no Brasil tem um caráter focal e se sobrepõe às regiões de pobreza, principalmente no Norte, Nordeste e Centro-Oeste.3
Existe grande preocupação em controlar a dinâmica de transmissão, em especial em decorrência das incapacidades físicas geradas pela doença. A incapacidade é a dificuldade de funcionamento em âmbito corporal, pessoal ou social, experimentada por um indivíduo com determinada condição de saúde em sua interação com fatores contextuais.5 Alterações neurais relativas à infecção por M. leprae podem acarretar problemas, como diminuição da capacidade de trabalho, limitação da vida social, diminuição da participação na comunidade e distúrbios psicológicos.6
A maior parte dos estudos considera a deficiência e a incapacidade que podem ser geradas pela hanseníase, mas poucos abordam como elas podem afetar a rotina diária de uma pessoa e os diversos aspectos da vida social.7 Todavia, enquanto síndrome clínica dermatoneurológica, a hanseníase não deve ser considerada apenas pela sua magnitude, mas também pela sua transcendência, considerando-se o custo pessoal e social do agravo à população.6
A limitação de atividade refere-se à dificuldade que um indivíduo tem na execução de alguma tarefa, dado que a restrição à participação social remete a problemas que o indivíduo pode enfrentar quando está envolvido em situações da vida real, em diferentes áreas, como mobilidade, relacionamento interpessoal, casamento, emprego, atividades de lazer e participação em atividades sociais e funções religiosas.5 Abordar a limitação de atividade e as restrições à participação social, conceitos elaborados pela Organização Mundial da Saúde (OMS), nos leva a considerar a hanseníase como uma doença que vai além da carga bacteriológica e dos aspectos clínicos.
A ocorrência de limitação de atividade e de restrição à participação social em pessoas com hanseníase pode desencadear preconceitos e discriminação. Como consequência, podem ocorrer danos diretos ou indiretos à saúde, por meio de processos de marginalização social, os quais dificultam o acesso à prevenção e, inclusive, levam ao diagnóstico tardio, ao abandono do tratamento e à diminuição dos cuidados em saúde.9
Nessa perspectiva, este estudo objetivou analisar a magnitude e os fatores associados à limitação de atividade e restrição à participação social em pessoas com hanseníase de 2001 a 2014, em Picos, estado do Piauí.
Métodos
Trata-se de estudo transversal, conduzido em Picos, Piauí, região Nordeste do Brasil. O estudo representou um recorte do projeto Integrahans-Piauí, coordenado pela Universidade Federal do Piauí (UFPI), em parceria com a Universidade Federal do Ceará (UFC).
O município de Picos foi selecionado por ser classificado como hiperendêmico para hanseníase, pertencendo à área de cluster 6 em âmbito nacional, além de se constituir como referência no tratamento da hanseníase em todo o Vale do Guaribas.10 O município apresentou densidade demográfica de 137,30 habitantes/km2 e população estimada de 78.002, em 2018.11 O percentual de cobertura da Estratégia Saúde da Família (ESF) para o ano de 2019 foi de 100%.12 O Índice de Desenvolvimento Humano Municipal (IDHM) de Picos, segundo o Atlas do Desenvolvimento Humano do Brasil (2013), era de 0,698.13
A população-alvo do estudo foi constituída por todos os casos de hanseníase no município de Picos, diagnosticados no período de 2001 a 2014 e notificados no Sistema de Informação de Agravos de Notificação (Sinan). Pela especificidade das escalas utilizadas, estabeleceu-se como critério de inclusão ter mais de 15 anos de idade e estar residindo no município no momento da pesquisa. Foram excluídas as pessoas privadas de liberdade e aquelas com algum comprometimento cognitivo que impedisse a participação. Foram consideradas perdas as pessoas não localizadas e as pessoas que não participaram de todas as etapas da pesquisa, deixando de responder a algum instrumento.
O registro de casos duplicados localizados no sistema foi possível a partir da observação das seguintes variáveis: nome do paciente, nome da mãe e data de nascimento do paciente. Esses registros, bem como as pessoas que evoluíram para óbito no período considerado, não foram considerados na análise.
A busca dos casos e a coleta de dados ocorreram nas unidades básicas de saúde do município, de acordo com a área de abrangência da residência da pessoa, e em espaços comunitários, como igrejas e escolas. Cada pessoa foi identificada no Sinan e, como os endereços correspondiam à residência declarada na data da notificação, para fins de comprovação e/ou atualização do endereço e telefone de contato, foi consultado o Cadastro Nacional de Usuários do Sistema Único de Saúde (CADSUS) para qualificação do endereço atualizado. A abordagem dos casos identificados foi realizada em parceria com os agentes comunitários de saúde e enfermeiros da equipe Saúde da Família específica da área de abrangência.
Visando à uniformidade dos registros coletados, foram realizadas capacitações para os pesquisadores de campo (profissionais de saúde e graduandos participantes do projeto Integrahans-Piauí), os quais foram responsáveis, por meio de entrevistas, pela aplicação dos questionários padronizados e pela realização do exame físico (avaliação neurológica simplificada), conforme abordado a seguir.
Foram investigadas as seguintes variáveis sociodemográficas e clínicas: faixa etária (15-29, 30-44, 45-59, ≥60 anos); sexo (masculino, feminino); anos de estudo (<8 anos, ≥8 anos); raça/cor da pele (branca, parda, negra, amarela, indígena); zona de residência (rural, urbana); situação de trabalho (ativo, aposentado, desempregado, do lar e estudante); classificação operacional da hanseníase (paucibacilar [PB], multibacilar [MB]); formas clínicas (indeterminada, tuberculoide, dimorfa, virchowiana); e ocorrência de episódio reacional (respostas imunológicas contra o bacilo, que podem ocorrer antes, durante ou após o tratamento para hanseníase),14 de modo autorreferido (sim, não).
Realizou-se ainda avaliação neurológica simplificada para classificação da incapacidade física, com utilização de instrumento padronizado pelo Ministério da Saúde.14 A partir da inspeção, palpação de nervos, teste de força e teste de sensibilidade de mãos e pés com os monofilamentos de Semmes-Weinstein, foi estabelecido no momento da avaliação o grau de incapacidade física (GIF) e o escore de comprometimento de olho-mão-pé (OMP). A incapacidade física foi classificada por meio do maior grau observado no exame: grau 0 (nenhuma incapacidade relacionada à hanseníase); grau 1 (diminuição ou perda da sensibilidade); e grau 2 (presença de incapacidades e deformidades visíveis).14 Por sua vez, o escore OMP avalia a presença e a magnitude das incapacidades físicas e verifica o somatório de todos os GIF individuais referentes aos dois olhos, às duas mãos e aos dois pés, determinando o grau máximo de incapacidade para cada segmento acometido, com escore final variando de 0 a 12.14
Para dimensionar a limitação de atividade, foi utilizada a escala SALSA (Screening of Activity Limitation and Safety Awareness/Triagem de Limitação de Atividade e Consciência de Risco). O escore da escala varia de 1 a 80; quanto mais baixo o escore, menor a dificuldade com as atividades de vida diária, enquanto escores mais altos são indicativos de níveis crescentes de limitação de atividade. A escala possui a seguinte categorização pelos escores: 10-24 (sem limitação); 25-39 (limitação leve); 40-49 (limitação moderada); 50-59 (limitação severa); 60-80 (limitação muito severa).15
Para dimensionar a restrição à participação social, foi utilizada a Escala de Participação Social em sua versão 4.6. Ela é composta por 18 itens, mensurados a partir de uma entrevista, com o valor total de pontos de 0 a 90. As pessoas que atingiram até 12 pontos foram classificadas como não tendo nenhuma restrição significativa à participação e, a partir desse valor, identificaram-se diferentes graus de restrição: leve restrição (13-22), moderada restrição (23-32), grande restrição (33-52) e extrema restrição (53-90).16
Em ambas as escalas, os escores finais foram calculados de forma manual ao final da aplicação do instrumento, de modo a se dimensionar e informar ao participante sobre a existência de limitação de atividade ou restrição à participação social, bem como conduzi-los em eventuais necessidades assistenciais devido aos desfechos estudados.
Os dados descritivos foram apresentados, para as variáveis quantitativas, como média, desvio-padrão e valores mínimos e máximos, ao passo que, para as variáveis categóricas, como frequência absoluta e percentuais.
A análise bruta foi realizada pelo teste estatístico do qui-quadrado de Pearson e cálculo da razão de prevalência (RP), com intervalos de confiança de 95% (IC95%), a partir da regressão de Poisson, para se investigarem as associações com a variável dependente (ocorrência ou ausência de limitação de atividade ou restrição à participação) e sua associação com as variáveis explicativas.
Para se verificar a associação da restrição à participação social e da limitação de atividade com variáveis demográficas e clínicas, foram reclassificadas as variáveis. Para limitação de atividade, foram consideradas pessoas sem limitação ou com limitação (se enquadradas nas classificações leve, moderada, severa e muito severa na classificação habitual). Por sua vez, para a restrição à participação, foram consideradas pessoas sem restrição e com restrição (classificações leve, moderada, grande e extrema na classificação habitual).
Em relação aos escores calculados (escore OMP, escore Salsa e escore Participação Social), após verificação de normalidade pelo teste do Shapiro Wilk, verificou-se a existência de correlação linear entre as variáveis, por meio da construção do gráfico de dispersão. O coeficiente de correlação de Pearson ou de Spearman (r) foi considerado: r=0,10 até 0,30 (correlação fraca), r=0,40 até 0,60 (correlação moderada) e r=0,70 até 1(correlação forte). O nível de significância adotado foi de 5%, com poder estatístico de 80%.
Os dados foram analisados com auxílio do programa Stata versão 11.0 (Stata Corporation, College Station, USA).
A pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética e Pesquisa da Universidade Federal do Piauí, sob parecer nº 1.115.818, em 17/05/2015. A coleta de dados foi realizada após assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE), mediante esclarecimento dos objetivos da pesquisa. A abordagem das pessoas com hanseníase respeitou o sigilo e a confidencialidade de cada pessoa, bem como sua relação com a equipe de saúde do território.
Resultados
Foram identificadas 703 pessoas com hanseníase notificadas no período de 2001 a 2014 no município de Picos. Não atenderam aos critérios de inclusão 36 óbitos, 32 pessoas que mudaram de endereço, quatro menores de 15 anos e uma pessoa privada de liberdade. Houve 363 perdas, devido à não localização (n=289) e ao não comparecimento em alguma fase da pesquisa (n=74), além de quatro recusas em participar. A amostra do estudo foi composta por 263 pessoas.
Verificou-se que quase a metade das pessoas apresentaram algum grau de limitação de atividade (45,3%), e aproximadamente um quarto delas (24,0%) apresentaram algum grau de restrição à participação ( Figura 1 ). O escore SALSA apresentou média de 27,6, com valor mínimo 13,0 e máximo 76,0; por seu turno, o escore de participação apresentou média de 9,0, com valor mínimo 0,0 e máximo 59,0.
Predominou o sexo masculino (50,2%). A média de idade foi de 52 anos (variando de 15 a 87 anos, desvio-padrão 1), sendo 36,9% das pessoas com mais de 60 anos; 43,0% tinham menos de 8 anos de estudo; 50,2% eram de raça/cor da pele parda; 94,3% residiam em zona urbana; e 44,1% se encontravam com trabalho ativo.
Dos participantes, 52,5% tiveram classificação operacional multibacilar, sendo as formas clínicas mais presentes a dimorfa e a indeterminada (34,6% e 32,3%, respectivamente). Quanto ao dano neural, 61,2% tiveram GIF 1e escore OMP variando de 0 a 12, com predominância do escore 2 em 33,1%. A maioria das pessoas relatou não ter apresentando episódio reacional (82,1%).
Verificou-se que a maior ocorrência de limitação associou-se estatisticamente com faixa etária de 60 anos ou mais (RP=1,68, IC95% 1,09;3,02), quando comparada com a faixa etária entre 30 e 44 anos, com GIF 1 ou 2 na atualidade (RP=1,66, IC95% 1,14;2,41) e com baixa escolaridade ou menos de 8 anos de estudo (RP=1,76, IC95% 1,26;2,45) ( Tabela 1 ).
Variáveis | Limitação de atividade | RPa | IC95%ª | p-valorb | ||
---|---|---|---|---|---|---|
| ||||||
Total | Sim | Não | ||||
n (%) | n (%) | n (%) | ||||
Faixa etária (anos) | ||||||
15-29 | 33 (12,5) | 11 (33,3) | 22 (66,7) | 1,11 | 0,56;2,18 | 0,028 |
30-44 | 40 (15,2) | 12 (30,0) | 28 (70,0) | 1,00 | - | |
45-59 | 93 (35,4) | 43 (46,2) | 50 (53,8) | 1,54 | 0,91;2,59 | |
≥ 60 | 97 (36,9) | 53 (54,6) | 44 (45,4) | 1,68 | 1,09;3,02 | |
Sexo | ||||||
Feminino | 131 (49,8) | 65 (49,6) | 66 (50,4) | 1,00 | - | 0,156 |
Masculino | 132 (50,2) | 54 (40,9) | 78 (59,1) | 0,82 | 0,63;1,07 | |
Anos de estudo | ||||||
< 8 | 165 (62,7) | 89 (53,9) | 76 (46,1) | 1,76 | 1,26;2,45 | <0,001 |
≥ 8 | 98 (37,3) | 30 (30,6) | 68 (69,4) | 1,00 | - | |
Classificação operacional | ||||||
Paucibacilar | 125 (47,5) | 53 (42,4) | 72 (57,6) | 1,00 | - | 0,377 |
Multibacilar | 138 (52,5) | 66 (47,8) | 72 (52,2) | 1,12 | 0,86 ;1,45 | |
GIF | ||||||
Sim (1 e 2) | 191 (72,6) | 97 (50,8) | 94 (49,2) | 1,66 | 1,14;2,41 | <0,001 |
Não | 72 (27,4) | 22 (30,6) | 50 (69,4) | 1,00 | - |
RP = razão de prevalência.
GIF = grau de incapacidade física.
p-valor = valor de p.
IC95%= intervalo de confiança de 95%.
a) Calculado pela regressão de Poisson.
b) Calculado pelo teste estatístico do Qui-Quadrado de Pearson.
Para a restrição à participação social, não foram verificadas associações estatisticamente significativas, mas indicativos em relação às variáveis classificação operacional e GIF 1 ou 2 ( Tabela 2 ). O valor de p demonstra possível significância entre as variáveis em questão, o que não é corroborado pelo intervalo de confiança identificado para associação. Assim, no presente estudo, as pessoas com maior grau de incapacidade ou formas clínicas mais severas não necessariamente apresentaram maior grau de restrição à participação social.
Variáveis | Restrição à participação social | RPa | IC95%a | p-valorb | ||
---|---|---|---|---|---|---|
| ||||||
Total | Sim | Não | ||||
| ||||||
n (%) | n (%) | n (%) | ||||
Faixa etária (anos) | ||||||
15-29 | 33 (12,5) | 8 (24,2) | 25 (75,8) | 2,42 | 0,80;7,34 | 0,153 |
30-44 | 40 (15,2) | 4 (10,0) | 36 (90,0) | 1,00 | - | |
45-59 | 93 (35,4) | 26 (28,0) | 67 (72,0) | 2,79 | 1,04;7,48 | |
≥ 60 | 97 (36,9) | 25 (25,8) | 72 (74,2) | 2,57 | 0,95;6,93 | |
Sexo | ||||||
Feminino | 131 (49,8) | 36 (27,5) | 95 (72,5) | 1,00 | - | 0,182 |
Masculino | 132 (50,2) | 27 (20,5) | 105 (79,5) | 0,74 | 0,48;1,15 | |
Anos de estudo | ||||||
< 8 | 165 (62,7) | 46 (27,9) | 119 (72,1) | 1,76 | 1,26;2,45 | 0,053 |
≥ 8 | 98 (37,3) | 17 (17,3) | 81 (82,7) | 1,00 | - | |
Classificação operacional | ||||||
Paucibacilar | 125 (47,5) | 23 (18,4) | 102 (81,6) | 1,00 | - | 0,046 |
Multibacilar | 138 (52,5) | 40 (29,0) | 98 (71,0) | 1,39 | 0,98;1,98 | |
GIF | ||||||
Sim (1 e 2) | 191 (72,6) | 52 (27,2) | 139 (72,8) | 1,78 | 0,98;3,21 | 0,043 |
Não | 72 (27,4) | 11 (15,3) | 61(84,7) | 1,00 | - |
RP = razão de prevalência.
GIF = grau de incapacidade física.
p-valor = valor de p.
IC95%= intervalo de confiança de 95%.
a) Calculado pela regressão de Poisson.
b) Calculado pelo teste estatístico do Qui-Quadrado de Pearson.
Observou-se correlação significativa entre escore OMP e limitação de atividade (r=0,29; p<0,001) e restrição à participação (r=0,27; p<0,001). A análise de correlação entre escore SALSA (informa a ausência ou a presença de limitação de atividade e em que grau: leve, moderada, grande e extrema limitação) e escore OMP (verifica o somatório de todos os graus de incapacidade individuais avaliados referentes aos dois olhos, às duas mãos e aos dois pés, determinando o grau máximo de incapacidade, referente à perda de sensibilidade ou presença de deformidade visível), segundo a classificação operacional, demonstrou ser positiva, fraca e significativa nos casos paucibacilares (r=0,32; p<0,001) e nos multibacilares (r=0,24; p=0,003) ( Figura 2 ). Observa-se que variados graus de comprometimento dos segmentos (escore >5) não geram necessariamente um aumento no escore de limitação de atividade.
A correlação entre escore de participação (informa a ausência ou presença da restrição à participação social e em que grau: leve, moderada, grande e extrema restrição) e escore OMP também revelou correlação positiva fraca e significativa nos casos paucibacilares (r=0,23; p=0,009) e multibacilares (r=0,22; p=0,010) ( Figura 3 ). O maior grau de comprometimento dos segmentos avaliados não produz um aumento da restrição de participação social em todos os casos.
A análise de correlação dos dois desfechos do estudo demonstrou que a restrição à participação social esteve significativamente associada à limitação de atividade em ambas as classificações operacionais, apresentando uma correlação moderada e significativa nos casos multibacilares (r=0,54; p<0,001) e correlação fraca e significativa nos paucibacilares (r=0,23; p=0,012).
Foram identificadas, neste estudo, 16 (6,1%) pessoas com grande e extrema restrição à participação social, sendo 13 (81,3%) casos multibacilares e 14 (87,5%) casos com presença de GIF 1 ou 2 e limitação de atividade.
Discussão
O presente estudo reforçou a importância da análise das dimensões de restrição à participação social e limitação de atividade na avaliação das pessoas com hanseníase. Verificou-se elevada prevalência dessas duas dimensões analíticas no contexto hiperendêmico do município, bem como associação da limitação de atividade e de restrição à participação social com a gravidade da doença (classificação operacional multibacilar), a faixa etária mais avançada (>60 anos) e elementos de vulnerabilidade social (baixa escolaridade). Reforçando-se que os aspectos psicossociais seguem sendo desafios relacionados ao controle da hanseníase para o Sistema Único de Saúde (SUS), para além dos aspectos físicos.
A classificação da limitação de atividade varia em diferentes cenários.17 Segundo Bezerra et al., as pessoas afetadas pela hanseníase não se percebem como limitadas, mantendo-se envolvidas na sociedade, apesar do estigma que envolve a doença. Estudos realizados em Fortaleza e Sobral/CE, em 2006, Araguaína/TO, em 2010, e Uberaba/MG, em 2014, apresentaram resultados semelhantes,17 com indivíduos demonstrando mais limitação de atividade do que restrição à participação social. Por seu turno, nos estudos desenvolvidos em Vitória da Conquista/BA, em 2014, e Cajazeiras/PB, em 2011, aproximadamente 25% e 57% das pessoas com hanseníase, respectivamente, apresentavam algum grau de restrição.21
A maior ocorrência de limitação de atividade na faixa etária com pessoas acima de 60 anos tratou-se de uma associação já esperada, uma vez que o próprio manual da escala SALSA indica que o escore tende a aumentar com a idade, não havendo diferença entre homens e mulheres da mesma idade e com as mesmas incapacidades físicas.15
A incapacidade física é uma característica existente na doença pelo dano neural subjacente em decorrência da ação do bacilo.16 Reforça-se a importância da avaliação do GIF no diagnóstico, no tratamento e no momento pós-alta. Como identifica fator de risco para deficiência e incapacidade, essa avaliação deve ser integrada à análise específica do OMP para uma abordagem mais ampliada.23
Pessoas com diminuição de sensibilidade acabam por evitar atividades de vida que podem gerar alguma lesão, bem como por modificar o modo de realizá-las.22 O estudo de Sousa et al., realizado em Aracaju/SE em 2014, também verificou que o GIF está significativamente associado a limitações de atividade nessa população.24
A baixa escolaridade foi identificada como fator para a existência de algum grau de limitação de atividade. Este fato pode estar relacionado à precária condição social, que tende a ampliar a vulnerabilidade e diminuir a busca por conhecimento sobre as ações preventivas da doença e suas consequências.25 Há, assim, prejuízo no seguimento adequado do tratamento, bem como nas medidas de autocuidado, o que pode gerar ou agravar as incapacidades físicas.18 Profissionais de saúde devem estar atentos para os determinantes sociais da doença, realizando atividades de promoção e prevenção, bem como de desenvolvimento inclusivo e reabilitação social.27
Na Índia, em 2014, observou-se associação entre a restrição à participação social e a classificação operacional da hanseníase e GIF, demonstrando que houve maior restrição entre pessoas com classificação multibacilar e com deficiências visíveis (GIF 2).28 A classificação operacional é uma medida importante para estabelecimento da duração do tratamento. A categoria multibacilar indica formas mais tardias e graves, sabidamente relacionadas a incapacidades físicas e deformidades e possibilidade de desencadear restrição à participação social.14
O escore OMP possibilita evidenciar, durante a avaliação, a existência de sobreposição de comprometimento em segmentos corporais, sendo mais apropriado do que o grau de incapacidade, consagrado pelo uso, para simplificação de registros e sistemas de monitoramento, bem como para descrição de extensão das incapacidades físicas.14 Estudos realizados em Araguaína/TO, em 2010, e em Nova Iguaçu/RJ, entre 2010 e 2011, também verificaram correlação entre limitação de atividade, restrição à participação social e escore OMP. Por sua vez, Barbosa et al., em Fortaleza e Sobral/CE, no ano de 2006, não demonstraram correlação definida entre limitação de atividade e escore OMP.17
A maior parte das pessoas com algum grau de incapacidade apresentava limitação de atividade, fato não verificado em relação à restrição à participação social, apesar da associação observada em ambos os casos. A ocorrência de uma alteração física ou funcional pode modificar a rotina de realização de atividade diária, mas não necessariamente levar à exclusão do indivíduo nas ações sociais. Em contrapartida, o estigma e o preconceito em decorrência da história cultural da doença podem levar à exclusão, mesmo sem lesões visíveis.16
Apesar da relevância das análises realizadas com a utilização de instrumentos já aplicados e validados, o estudo apresenta algumas fragilidades a serem discutidas. A necessidade de busca dos participantes em uma longa série histórica acarretou uma considerável perda da amostra, podendo ocasionar a subestimação das prevalências encontradas, o que deve ser levado em consideração por ocasião da interpretação dos achados. Considera-se ainda que pode ter ocorrido um viés de seleção e amostragem, no sentido de que aqueles indivíduos que não participaram da pesquisa, considerados perdas (não localizados e recusas), poderiam apresentar diferenças em relação às variáveis estudadas nos participantes do estudo. Destaca-se também a abordagem estatística, que não incluiu análises ajustadas, de modo que não foi avaliado o potencial confundimento de variáveis estudadas nas associações apresentadas; dessa forma, a magnitude dessas associações pode estar superestimada.
A limitação de atividade e a restrição à participação social foram dimensões com alta prevalência no contexto analisado, e aspectos como gravidade da doença, idade avançada e vulnerabilidade social estiveram associados a esses desfechos. Os achados sugerem, portanto, a influência dessas dimensões nas condições de transcendência e cronicidade da doença, reforçando a necessidade de acompanhamento longitudinal e multiprofissional na elaboração de plano terapêutico adequado à pessoa com hanseníase. Nesse contexto, o diagnóstico precoce pode garantir a prevenção de incapacidades.