Introdução
A hanseníase ainda é um problema de Saúde Pública em vários países do mundo, entre eles o Brasil. 1 Causada pelo bacilo Mycobacterium leprae , manifesta-se na forma de lesões na pele, mucosas e nervos e, quando em estado avançado, pode afetar outros órgãos. 1 A doença atinge pessoas de qualquer sexo ou idade, de crianças a idosos, e tem alto potencial para causar incapacidades e deformidades físicas, bem como intercorrências durante o tratamento. 2
No Brasil, de 2014 a 2018, foram notificados 140.578 casos novos de hanseníase, 55,2% deles entre indivíduos do sexo masculino. 2 Naquele período, a Organização Mundial da Saúde (OMS) informou a detecção de novos casos em 23 países, com o Brasil em segunda posição – com 28.660 casos novos –, apenas atrás da Índia, com 120.334 casos novos, apesar das políticas de controle adotadas. 3
No estado de Mato Grosso, a ocorrência da hanseníase é histórica, com agravamento a partir da década de 1970, 4 resultante das modificações sociais decorrentes da ocupação desordenada. Atualmente, Mato Grosso apresenta o maior número de casos novos e ocupa a segunda posição entre os estados, com uma taxa de detecção geral de 62 casos por 100 mil habitantes. Sua capital, Cuiabá, registrou taxa de 46,28 casos por 100 mil hab. em 2019. 2
Segundo a OMS, na definição da Estratégia Global para Hanseníase 2016-2020, 5 o efetivo controle da doença será alcançado mediante estratégias de ação que não se limitem à detecção de casos novos, tão somente, e sim contemplem, além de um componente médico assistencial mais sólido, políticas com maior visibilidade e peso aos aspectos humanos e sociais, relacionados à redução de estigmas e promoção da inclusão dessas pessoas. 1
Entre as recomendações da OMS 1 e do Ministério da Saúde 5 para o controle da hanseníase, destaca-se o aparecimento das intercorrências clínicas, entre elas reações adversas ao tratamento, reações hansênicas, recidivas, necessidade de reabilitação cirúrgica, e dúvidas no diagnóstico, situações em que o indivíduo deve ser encaminhado aos serviços de referência.
Tanto o diagnóstico quanto a presença de intercorrência devido à hanseníase podem causar sentimento de fragilidade, medo de exclusão social e problemas mentais. 1 Em Bangladesh, 6 no período de 2002 a 2003, constatou-se, entre pessoas acometidas pela hanseníase, alta prevalência de problemas psiquiátricos quando comparadas à população geral, com maior frequência de depressão e estigma associados ao estado depressivo. Pessoas com hanseníase atendidas em um centro de referência de Bauru, município do estado de São Paulo, apresentaram, na proporção de 43,1%, sintomas depressivos moderados e graves. 7
No contexto brasileiro, há expressiva produção científica sobre a hanseníase, inclusive referentes ao estado de Mato Grosso. 8 Contudo, a saúde mental da população mato-grossense, com intercorrências 5 atribuídas à hanseníase, é pouco conhecida.
O estudo teve por objetivo analisar a ocorrência e fatores associados aos transtornos mentais comuns em pessoas acometidas por hanseníase com intercorrências, no estado de Mato Grosso, Brasil, em 2018.
Métodos
Estudo transversal, integrante de pesquisa para estudar a qualidade de vida de pessoas com hanseníase, realizado no período de janeiro a maio de 2018 10 , com base em estudo prévio. 11
Em 2010, a população de Mato Grosso constituía-se de 3.035.122 habitantes distribuídos por 141 municípios, com índice de desenvolvimento humano (IDH) de 0,725. 12 No ano de 2016, foram diagnosticadas 2.550 pessoas com hanseníase em Mato Grosso 10 , 30,0% delas (765) com intercorrências no tratamento, segundo critérios do Planejamento e Programação de Ações e Serviços de Saúde no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS). 13
Sobre este estudo, os participantes procediam das 16 regiões de saúde do estado, 12 com diagnóstico confirmado e encaminhados ao Hospital Universitário Júlio Müller da Universidade Federal de Mato Grosso (HUJM/UFMT), uma unidade de referência estadual para o tratamento da hanseníase e atendimento das intercorrências 2 apresentadas pela doença.
O diagnóstico confirmatório de hanseníase foi realizado segundo as recomendações da OMS, 3 e baseou-se na presença de pelo menos um dos três sinais característicos da enfermidade: (i) perda definitiva de sensação em uma mancha de pele pálida (hipopigmentada) ou avermelhada; (ii) nervo periférico espessado ou ampliado, com perda de sensação e/ou fraqueza dos músculos fornecidos por esse nervo; ou (iii) presença de bacilos ácido-rápidos em mancha de pele de fenda. Durante o período do tratamento, é possível que haja intercorrências, cujos casos são encaminhados às unidades de referência, devidamente estruturadas para prestar esse atendimento. 2
Dada a falta de previsão dos encaminhamentos para a assistência no ambulatório de infectologia do HUJM/UFMT, adotou-se amostragem por conveniência. Dessa forma, os casos presentes para atendimento em consulta foram convidados a participar da pesquisa até que o tamanho da amostra fosse alcançado. A coleta dos dados aconteceu no período de janeiro a maio de 2018.
Foram incluídas, como participantes da pesquisa, pessoas maiores de 18 anos de idade, com diagnóstico de hanseníase, agendadas para atendimento médico no ambulatório de infectologia do HUJM/UFMT; foram excluídas aquelas que apresentaram incapacidade cognitivo-comportamental ou alguma complicação clínica que as impedisse de responder ao instrumento utilizado na consulta.
O desfecho do estudo foi a presença de transtornos mentais comuns (TMCs), apresentado como variável dicotômica (sim; não) e avaliado pelo SRQ-20, sigla para self-report-questionnaire . O SQR-20, desenvolvido pela OMS, adaptado e validado para a população brasileira por Mari e Williams em 1986, 14 é adotado para identificar os melhores pontos de corte entre homens e mulheres, visando detectar transtornos mentais. Composto por um total de 20 questões, das quais quatro sobre sintomas físicos e 16 sobre distúrbios psicoemocionais, o SQR-20 teve, como pontos de corte adotados neste estudo, 7 ou mais respostas afirmativas para o sexo feminino e 6 ou mais respostas afirmativas para o sexo masculino.
As demais variáveis estudadas incluíram as características sociodemográficas: sexo (masculino; feminino); idade (em anos: 18 a 25, 26 a 45, 46 a 60, 61 ou mais); raça/cor da pele (branca; negra; parda; amarela/indígena); escolaridade (em anos de estudo: ≤9; >9); estado civil (solteiro; casado/separado/viúvo/outros); renda familiar (em salários mínimos [SM], ao valor de R$ 954,00: ≤1 SM; >1 SM); se trabalhava antes do diagnóstico de hanseníase (sim; não); e a situação de trabalho após o diagnóstico de hanseníase (desempregado; empregado; autônomo; do lar; aposentado; afastamento do trabalho, pelo Instituto Nacional do Seguro Social [INSS]).
Entre as características relacionadas ao histórico de saúde, a qualidade de vida foi avaliada por meio de instrumento abreviado de avaliação da qualidade de vida, desenvolvido pela OMS, World Health Organization Quality of Life-bref (WHOQOL-bref), 15 de acordo com os domínios físico, psicológico, de relações sociais e de meio ambiente. O WHOQOL-bref é composto por 26 questões, com opções de resposta likert que variam de 1 a 5, conforme o grau de satisfação em relação à percepção da qualidade de vida: percepção ‘insatisfatória’, para os escores de 1 a 3,9; e ‘satisfatória’, para os escores de 4 a 4,9.
O uso de substâncias psicoativas foi avaliado pelo instrumento denominado ‘Teste de triagem do envolvimento com álcool, tabaco e outras substâncias’ (ASSIST), 16 composto de oito questões: as sete primeiras são referentes ao uso de tabaco, álcool, maconha, cocaína, estimulantes, inalantes, hipnóticos/sedativos, alucinógenos e opiáceos; a oitava e última refere-se ao uso de drogas injetáveis, causadoras de dependência. Dessa forma, perguntou-se: Durante os três últimos meses, com que frequência você teve um forte desejo ou urgência em consumir alguma das drogas citadas acima? , com as seguintes alternativas de resposta: nunca; mensalmente; semanalmente; diariamente. Atribuiu-se escore zero às negativas ao desejo em consumir qualquer substância (não); e escore acima de zero, ao desejo em consumir alguma substância (sim).
A presença de outra morbidade foi medida pela pergunta “ Possui outra morbidade? ” com as alternativas de resposta ‘sim’ ou ‘não’; se sim, qual a morbidade presente?
Realizou-se um teste-piloto com cinco pessoas que aguardavam atendimento no ambulatório, para se verificar a compreensão das questões, treinar os entrevistadores, prevenir vieses e adequar a abordagem aos princípios éticos em pesquisa com seres humanos.
Como a amostra do estudo original 10 não foi determinada para o desfecho TMCs, foi calculado, a posteriori , o poder da amostra para investigar os fatores associados à TMCs. Dessa forma, com a definição do tamanho da amostra de 206 pessoas, a razão entre expostos e não expostos de 0,4, prevalências de 0,8 e 0,6 nos expostos e não expostos, respectivamente, e o alfa de 0,05, o poder foi de 79%.
A análise estatística foi realizada com uso do programa SPSS versão 20.0; iniciou-se com análises descritivas, mediante o cálculo de frequências absolutas e relativas para as variáveis categóricas e de média e desvio-padrão (DP) para as variáveis contínuas. Em seguida, foram calculadas as razões de prevalências não ajustada (RP não ajustada ) e ajustada (RP ajustada ), e estimados seus respectivos intervalos de confiança de 95% (IC 95% ), por meio do modelo de regressão de Poisson com estimativa robusta da variância. Todas as variáveis que apresentaram valor de p<0,20 na análise bivariada foram incluídas na análise de regressão múltipla; construiu-se um modelo com todas as variáveis e, em seguida, retirou-se uma variável de cada vez, a começar com a menos significante. Mantiveram-se, no modelo final, as variáveis com p<0,05.
O projeto do estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos do Hospital Universitário Júlio Müller, da Universidade Federal de Mato Grosso: Parecer nº 2.038.402/CEP/HUJM, de 28 de abril de 2017. Todos os participantes foram informados sobre os objetivos da pesquisa e assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE), antes de atender à entrevista.
Resultados
A amostra foi composta por 206 pessoas com intercorrência no tratamento de hanseníase, primeiramente assistidas em sua região de saúde no estado de Mato Grosso, referenciadas para o Hospital Universitário Júlio Müller da Universidade Federal de Mato Grosso, unidade credenciada pelo Ministério da Saúde para o atendimento especializado ( Figura 1 ). Todos os convidados aceitaram participar da pesquisa e ninguém foi excluído. Verificou-se uma prevalência de TMCs de 70,4% (IC 95% 61,10;76,67) na amostra ( Figura 2 ).
A idade média dos casos consultados foi de 49 anos (DP±14). A maior proporção dos participantes pertencia à macrorregião de saúde Centro-Norte mato-grossense (59,7%), era do sexo masculino (52,4%), da faixa etária de 46 a 60 anos (43,2%), de raça/cor da pele parda (53,4%), com até 9 anos de estudo (56,3%), casados ou vivendo em outros arranjos conjugais (68,0%) e com renda familiar de até um salário mínimo (55,3%); 75,7% trabalhavam antes de receber o diagnóstico de hanseníase, e, desde então, 28,6% (dos participantes) ficaram desempregados, 15,5% se aposentaram e 14,1% entraram com pedido de afastamento junto ao INSS ( Tabela 1 ).
Variáveis | n (%) | TMCs a | RP b bruta | p-valor c | RP b ajustada | p-valor c |
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n (%) | (IC 95% ) | (IC 95% ) | ||||
Região de saúde | ||||||
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Centro-Norte | 123 (59,7) | 84 (68,3) | 1,02 (0,93;1,13) | 0,661 | – | – |
Norte | 30 (14,6) | 21 (70,0) | 1,12 (0,77;1,61) | |||
Oeste | 22 (10,7) | 17 (77,3) | 1,29 (0,72;2,30) | |||
Sul | 24 (11,7) | 19 (79,2) | 1,32 (0,74;2,33) | |||
Leste | 7 (3,3) | 4 (57,1) | 1,00 | |||
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Sexo | ||||||
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Feminino | 98 (47,6) | 80 (81,6) | 1,86 (1,23;2,88) | <0,001 | 1,29 (1,09; 1,53) | 0,003 |
Masculino | 108 (52,4) | 65 (60,2) | 1,00 | 1,00 | ||
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Faixa etária (anos) | ||||||
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18-25 | 14 (6,8) | 5 (35,7) | 0,62 (0,24;1,61) | <0,001 | 0,67 (0,32;1,40) | 0,016 |
26-45 | 64 (31,1) | 51 (79,7) | 1,76 (1,13;2,75) | 1,52 (1,09;2,11) | ||
46-60 | 89 (43,2) | 69 (77,5) | 1,51 (1,09;2,09) | 1,40 (1,01;1,95) | ||
≥61 | 39 (18,9) | 20 (51,3) | 1,00 | 1,00 | ||
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Raça/cor da pele | ||||||
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Preta | 41 (19,9) | 31 (75,5) | 1,03 (0,60;1,77) | 0,389 | – | – |
Parda | 110 (53,4) | 73 (50,3) | 0,88 (0,70;1,09) | |||
Branca | 55 (26,7) | 41 (74,5) | 1,00 | |||
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Escolaridade (anos de estudo) | ||||||
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≤9 | 116 (56,3) | 83 (71,6) | 1,05 (0,80;1,36) | 0,678 | – | – |
>9 | 90 (43,7) | 62 (68,9) | 1,00 | |||
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Estado civil | ||||||
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Casado/separado/viúvo/outros | 140 (68,0) | 101 (72,1) | 1,08 (0,87;1,35) | 0,421 | – | – |
Solteiros | 66 (32,0) | 44 (66,7) | 1,00 | |||
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Renda familiar (em salários mínimos) | ||||||
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≤1 Salário mínimo | 114 (55,3) | 88 (77,2) | 1,42 (1,03;1,95) | 0,017 | 1,25 (1,05;1,49) | 0,011 |
>1 Salário mínimo | 92 (44,7) | 57 (62,0) | 1,00 | 1,00 | ||
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Trabalhava antes do diagnóstico de hanseníase | ||||||
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Sim | 156 (75,7) | 114 (73,1) | 0,83 (0,51;1,35) | 0,135 | – | – |
Não | 50 (24,3) | 31 (62,0) | 1,00 | |||
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Situação de trabalho após o diagnóstico de hanseníase | ||||||
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Desempregado | 59 (28,6) | 46 (78,0) | 1,17 (0,93;1,47) | 0,414 | – | – |
Autônomo | 16 (7,8) | 10 (62,5) | 0,94 (0,61;1,43) | |||
Do lar | 16 (7,8) | 12 (75,0) | 1,12 (0,80;1,58) | |||
Aposentado | 32 (15,5) | 19 (59,4) | 0,89 (0,63;1,25) | |||
Afastamento pelo INSS | 29 (14,1) | 22 (75,9) | 1,14 (0,86;1,50) | |||
Empregado | 54 (26,2) | 36 (66,7) | 1,00 |
a) TMCs: transtorno mental comum.
b) RP: razão de prevalências.
c) Teste de Wald – regressão de Poisson com variância robusta.
Identificou-se associação de TMCs com as variáveis sociodemográficas ( Tabela 1 ), significativamente maior com o sexo feminino (RP=1,86 – IC 95% 1,23;2,88), com indivíduos nas faixas etárias de 26-45 (RP=1,76 – IC 95% 1,13;2,75) e 46-60 anos (RP=1,51 – IC 95% 1,09;2,09), e com renda familiar menor ou igual a um salário mínimo (RP=1,42 – IC 95% 1,03;1,95).
Na Tabela 2 , observa-se que 20,4% afirmaram o uso de alguma substância psicoativa e 33,0% relataram ter outra morbidade. Quanto à qualidade de vida, para todos os domínios, verificou-se que a maioria das pessoas com hanseníase avaliou-a como insatisfatória. Observou-se associação da qualidade de vida com TMCs para todos os domínios, sendo maior a razão de prevalência para o domínio psicológico (RP=2,03 – IC 95% 1,49;1,77). Dos entrevistados, 73,8% daqueles com TMCs afirmaram uso de alguma substancia psicoativa e 77,9% afirmaram morbidade autorreferida; contudo, esses fatores não se associaram a TMCs.
Variáveis | n (%) | TMCsª | RP b bruta | p-valor c | RP b ajusteda | p-valor c |
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n (%) | (IC 95% ) | (IC 95% ) | ||||
Qualidade de vida – domínio físico | ||||||
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Insatisfatório | 191 (92,7) | 142 (74,3) | 1,21 (1,07;1,38) | <0,001 | 3,03 (1,12;8,19) | 0,028 |
Satisfatório | 15 (7,3) | 3 (20,0) | 1,00 | 1,00 | ||
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Qualidade de vida – domínio psicológico | ||||||
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Insatisfatório | 146 (70,9) | 121 (82,9) | 2,03 (1,49;1,77) | <0,001 | 1,91 (1,40;2,61) | <0,001 |
Satisfatório | 60 (29,1) | 24 (40,0) | 1,00 | 1,00 | ||
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Qualidade de vida – domínio das relações sociais | ||||||
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Insatisfatório | 122 (59,2) | 96 (78,7) | 1,55 (1,13;2,12) | 0,001 | – | – |
Satisfatório | 84 (40,8) | 49 (58,3) | 1,00 | |||
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Qualidade de vida – domínio do meio ambiente | ||||||
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Insatisfatório | 187 (90,8) | 38 (73,8) | 1,18 (1,04;1,34) | <0,001 | – | – |
Satisfatório | 19 (9,2) | 7(36,8) | 1,00 | |||
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Uso de substancia psicoativa | ||||||
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Sim | 42 (20,4) | 31 (73,8) | 1,18 (0,63;2,20) | 0,570 | – | – |
Não | 164 (79,6) | 114 (69,5) | 1,00 | |||
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Outra morbidade | ||||||
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Sim | 68 (33,0) | 53 (77,9) | 1,48 (0,91;2,92) | 0,095 | – | – |
Não | 138 (67,0) | 92 (66,7) | 1,00 |
a) TMCs: transtorno mental comum.
b) RP: razão de prevalências.
c) Teste de Wald – regressão de Poisson com variância robusta.
No modelo de regressão ajustado ( Tabela 1 ), os valores mais altos de RP foram para as faixas etárias de 26-45 (RP=1,52 – IC 95% 1,09;2,11) e 46-60 anos (RP=1,40 – IC 95% 1,01;1,95), o sexo feminino (RP=1,29 – IC 95% 1,09;1,53), a baixa renda familiar (RP=1,25 – IC 95% 1,05;1,49) e a qualidade de vida insatisfatória para o domínio físico (RP=3,03 – IC 95% 1,12;8,19) e para o domínio psicológico (RP=1,91 – IC 95% 1,40;2,61), conforme apresenta a Tabela 2 .
Discussão
Entre pessoas com hanseníase em tratamento por intercorrência, em ambulatório de referência no estado de Mato Grosso, observou-se elevada frequência de TMCs associados ao sexo feminino, faixa etária, baixa renda familiar e qualidade de vida insatisfatória para os domínios físico e psicológico.
A etiologia dos TMCs é complexa, envolve fatores biológicos e psicológicos, 17 como também características do contexto socioeconômico. A prevalência de pessoas com TMCs neste estudo foi superior à observada entre trabalhadores 18 igualmente avaliados pelo SRQ-20. Correa et al., 7 embora utilizassem instrumento diferente, observaram, em um serviço de referência para hanseníase na América Latina, 43,1% dos atendidos com sintomas depressivos, sugerindo que a prevalência de problemas na saúde mental de pessoas com hanseníase é mais elevada do que em outros grupos. O preconceito, o estigma e as dores e incapacidades geradas pela doença ajudam a explicar a elevada prevalência de TMCs nesse contingente.
Estudo realizado em um ambulatório de infectologia concluiu que entre o sexo feminino, especialmente, a hanseníase esteve relacionada a alterações nas relações familiares e profissionais, além de afetar a imagem corporal. 19 Seus autores ainda acrescentam que sentimentos como medo, ansiedade e depressão podem afetar a evolução da doença, intensificando as reações hansênicas. 19
A maioria dos participantes do estudo se encontrava em idade produtiva. Em 2010, Lima et al. 20 consideraram a hanseníase como uma doença de adultos, pelo longo período de incubação, no entanto, os menores também eram suscetíveis, conclusão a que também chegaram outros estudos com a população brasileira. 8 A associação dos idosos com TMCs, possivelmente, deve-se ao processo de envelhecimento e consequente declínio nas condições físicas do indivíduo, 22 favorecendo a ocorrência de outras morbidades e complicando ainda mais o quadro clínico de uma doença como a hanseníase.
Pouca atenção têm merecido as características psicossociais relacionadas à hanseníase, que podem ser agravadas pelas sequelas, discriminação e baixa autoestima, comprometendo o tratamento e a reincidência da doença. 6 Chama a atenção, por exemplo, cerca de 20% das pessoas avaliadas afirmarem ter sentido, nos três últimos meses, forte desejo ou urgência em consumir alguma droga psicoativa. Chagas e Assis 23 sugerem que o consumo de tabaco diminui a hemoglobina, acarreta problemas pulmonares, risco de necrose (lesões da pele, nas mãos e/ou nos pés e/ou nos olhos) e o surgimento de úlceras periféricas deixadas pela doença. Contudo, é mister que se realizem estudos sobre o uso de drogas psicoativas para evitar o abandono do tratamento da hanseníase, por este motivo.
A qualidade de vida insatisfatória mostrou-se associada aos TMCs, no modelo final, para os domínios físico e psicológico. Em 2012, Simões et al., 24 ao observarem 29 pessoas com hanseníase no município de Uberaba, Minas Gerais, verificaram que o domínio que menos contribuiu para a qualidade de vida foi o físico. A literatura mostra que a hanseníase, geralmente, causa uma série de manifestações neurológicas, sendo a dor um sintoma manifesto quando nervos maiores são comprometidos. Sua presença como limitadora da qualidade de vida também é relatada em outros estudos. 25
A relação das condições ambientais com a qualidade de vida também foi observada em estudo comparativo entre indivíduos com hanseníase de diferentes ambientes: ribeirinhos do rio Purus, no estado do Amazonas; e morados de Santo André, município da região industrializada do ABC, área metropolitana de São Paulo. 11 Em 2010, 76,9% das pessoas avaliadas na Amazônia tinham a qualidade de vida comprometida, enquanto eram 19% das avaliadas em Santo André. 11 Distribuições tão distintas, possivelmente, atribuem-se às condições – mais ou menos precárias – das populações estudadas.
O domínio psicológico revela sua faceta mais explícita nos sentimentos negativos. Em 2008, entre 120 pessoas em tratamento para hanseníase na capital Belo Horizonte, Minas Gerais,a sobrevivência das pessoas, além da dor e do desconforto dos danos físicos, é marcada pela presença de sofrimento psicológico. 27 Atualmente, as pessoas em tratamento para a hanseníase podem contar com acompanhamento psicoterápico pelo SUS, realizado por a profissionais habilitados, o que contribui para a redução dos TMCs. 2
A menor associação ao TMCs coube à qualidade de vida insatisfatória no domínio das relações sociais, não corroborando outros estudos. Porém, tanto em Uberaba, em 2012, 24 como em Belo Horizonte, em 2008, 27 a qualidade de vida viu-se comprometida, devido, entre outros fatores, ao isolamento e às dificuldades sociais e econômicas frente às mudanças provocadas pela hanseníase.
Entretanto, os resultados desta pesquisa devem ser analisados com cautela. Seu delineamento transversal impossibilita o estabelecimento de uma temporalidade para as associações estudadas, e a causalidade reversa deve ser considerada. Outra restrição do estudo diz respeito à população-alvo, representada por amostra de conveniência do ambulatório de infectologia de um único hospital, o que limita a validade externa dos resultados. Não obstante, para as análises de associação, a amostra apresentou poder suficiente. Destaca-se, ademais, a existência de possíveis vieses de informação por respostas imprecisas, relacionadas ao estigma e ao preconceito, possivelmente vivenciados, bem como à ansiedade de quem está a aguardar atendimento para consulta médica no momento em que é abordado.
Conclui-se que a ocorrência de TMCs em pessoas com hanseníase mostrou-se associada ao sexo feminino, à faixa etária economicamente ativa, ao baixo nível socioeconômico e à qualidade de vida insatisfatória para os domínios físico e psicológico. Assim, destaca-se a necessidade de maior atenção dos profissionais de saúde na assistência social e psicológica às pessoas com hanseníase, apoiando-as e promovendo a melhoria de sua qualidade de vida, de forma a minimizar as adversidades impostas pela doença. Espera-se que o presente estudo contribua tanto para as políticas públicas quanto para as práticas de cuidado integral às pessoas com hanseníase.