Introdução
A carga da hanseníase no Brasil mantém-se em níveis de elevada endemicidade, especialmente nas regiões Norte, Centro-Oeste e Nordeste.1 Entre 2012 e 2016, taxas de detecção de casos novos (CN) consideradas hiperendêmicas foram registradas em estados como Mato Grosso (88,9/100 mil habitantes), Tocantins (69,13/100 mil hab.) e Maranhão (53,91/100 mil hab.).1Tamanha carga é evidenciada pela elevada detecção de CN na população geral e em menores de 15 anos de idade, e pelo registro de CN diagnosticados tardiamente, já com incapacidades físicas visíveis (de grau 2). Como característica agravante, destaca-se a maior expressão de casos em populações mais vulneráveis.1 Nas diretrizes para controle, tanto o Ministério da Saúde do Brasil como a Organização Mundial da Saúde (OMS) enfatizam a relevância do diagnóstico precoce e do tratamento oportuno como medidas estratégicas prioritárias para a redução da carga da doença.2
O Brasil enfrenta problemas para garantir a atenção integral a pessoas/famílias no contexto do Sistema Único de Saúde (SUS), inclusive na rede de atenção primária à saúde (APS).4Falhas operacionais de atenção e vigilância à saúde voltada para hanseníase são críticas e provavelmente respondem pelo subdimensionamento da carga da endemia.3 Inserem-se, nesta última perspectiva, a cobertura e a qualidade da avaliação de contatos.2
A vigilância de contatos de hanseníase, oficialmente vigente, inclui os exames dermatológico e neurológico, imunoprofilaxia com vacina BCG (composta pelo bacilo de Calmette-Guérin) e seguimento dos contatos por, no mínimo, cinco anos após o diagnóstico do caso-referência (CR).2Para monitorar essas ações, o indicador atualmente utilizado é a proporção de contatos examinados, entre os registrados, com monitoramento da cobertura em nível municipal e estadual.2 O Brasil tem conseguido avaliar, em média, 77% dos contatos registrados, considerado como padrão regular.1 Porém, não há indicadores oficiais disponíveis sobre a qualidade das ações que compõem o exame de contatos, tampouco sobre a continuidade da vigilância em anos seguintes após o diagnóstico.3
Na política de organização do SUS, as ações de prevenção, vigilância, controle e cuidado devem ser prioritariamente desenvolvidas em unidades de APS, com serviços de referência encarregados do apoio matricial.2 A contrarreferência, portanto, remete a uma oportunidade de educação permanente, quando bem desenvolvida. As situações prioritárias para serviços de referência incluiriam, entre outras, dúvidas diagnósticas, casos em crianças, incapacidades físicas complexas, casos de recidivas, de reações hansênicas e de efeitos adversos à poliquimioterapia (PQT).2No entanto, há dificuldades de operacionalização das ações na APS de modo contínuo, sistematizado e de qualidade.3
A vulnerabilidade ocorre em complexos processos de fragilização biossocial, expressivos de valores biológicos, existenciais e sociais,4 mostrando-se essencial captar as interferências entre as múltiplas dimensões no processo saúde-doença. Distintas situações de vulnerabilidade podem ser particularizadas, levando-se em conta três componentes interligados: (i) o individual; (ii) o social ou coletivo; e (iii) o programático ou institucional.12 A dimensão programática relaciona-se aos serviços de saúde e à forma como estes atuam para reduzir a vulnerabilidade, estando prevista a possibilidade de ampliá-los.4
A centralização da atenção, entretanto, pode gerar possíveis dificuldades de acesso e de atenção integral a pessoas acometidas pela doença, incluindo ações de prevenção e vigilância de contatos. Traduzem a dimensão de vulnerabilidade programática os aspectos relativos aos recursos sociais destinados a atender às necessidades de acesso e resolução de problemas sentidos e percebidos.11 Tal vulnerabilidade implicaria falhas operacionais no modo como se estabeleceriam ações para o controle da doença, envolvendo políticas, planejamento, gestão, monitoramento e avaliação à luz dos princípios do SUS: universalização do acesso; integralidade da atenção à saúde; equidade; descentralização da gestão e hierarquização dos serviços; e controle social.3
A vulnerabilidade programática, portanto, pode contribuir para a manutenção da hanseníase no território da APS, deixando de detectar oportunamente casos que se manteriam como “endemia oculta”.3Desta forma, a vulnerabilidade programática resultaria, muitas vezes, no acometimento de diferentes gerações e no número expressivo de casos em uma mesma rede de convívio domiciliar (RCD) e social, ao longo de anos consecutivos. Nestes contextos, amplia-se a possibilidade de os contatos tornarem-se CN da doença (casos coprevalentes).13
A escassez de trabalhos a partir dessa perspectiva analítica justifica a realização deste estudo, cujo objetivo foi analisar a vulnerabilidade institucional/programática de serviços de saúde no desenvolvimento das ações de cuidado aos casos de hanseníase e de vigilância de seus contatos, com ênfase em RCD com sobreposição da doença.
Métodos
A pesquisa foi desenvolvida em municípios brasileiros selecionados segundo padrões de endemicidade e estruturação da rede de APS. Foram incluídos dois municípios do estado da Bahia (Vitória da Conquista e Tremedal), um do Piauí (Floriano) e um de Rondônia (Cacoal) Figura 1).
Quanto aos municípios baianos, a população estimada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) para o ano de 2017 foi de 348.718 mil hab. em Vitória da Conquista e 17.700 mil hab. em Tremedal. No Piauí, a base populacional atribuía 58.969 mil hab. para Floriano, e em Rondônia, 88.507 mil hab. para Cacoal. A cobertura populacional da Estratégia Saúde da Família (ESF) em 2016 era de 100% em Tremedal e Floriano, ao passo que em Vitória da Conquista era de 48%, e em Cacoal, 78,2%.15Em 2017, Floriano era o município de maior endemicidade (69,7 casos/100 mil hab.), e Vitória da Conquista aquele com a menor taxa de detecção (17,2 casos/100 mil hab.), ambas taxas consideradas altas.17
Trata-se de estudo transversal analítico, realizado como parte dos projetos IntegraHans Norte-Nordeste (coordenado pela Universidade Federal do Ceará [UFC]) e IntegraHans Piauí (sob coordenação da Universidade Federal do Piauí [UFPI] em parceria com a UFC).18 Estes projetos foram desenvolvidos entre 2014 e 2015.
A população do estudo envolveu 899 CN de hanseníase notificados entre 2001 e 2014, residentes nos quatro municípios do estudo, sem restrição de idade. A amostra do estudo foi constituída por pessoas com hanseníase (caso de referência [CR]) que fazem parte de uma RCD com sobreposição de casos da doença.
Conceituou-se como CR o primeiro caso de hanseníase diagnosticado em uma RCD, e como caso coprevalente (CCP), o contato dentro da RCD que se tornou caso novo (CN). A RCD inclui, além do CR de hanseníase, todos os contatos domiciliares e sociais, conforme definição do Ministério da Saúde,2 assim como os contatos domiciliares e sociais que se tornaram casos (casos coprevalentes – CCP). O reconhecimento de, no mínimo, 2 casos de hanseníase em uma RCD definia a existência de “sobreposição” da doença, um indicador de risco acrescido.14
Para os CR localizados no território e que concordaram em participar do estudo, foi aplicado instrumento estruturado, elaborado pelo autor principal deste artigo e por pesquisadora colaboradora, os dois formados em Enfermagem e em Saúde Coletiva. Ambos se envolveram no treinamento conduzido pelos coordenadores dos projetos. Os dados foram coletados por instrumentos físicos, posteriormente consolidados pelo software Epi Info versão 7.1.5 (Centers for Disease Control and Prevention [CDC], Atlanta, USA).
As variáveis incluídas na análise consistiram de: cadastro anterior do domicilio pelo agente comunitário de saúde (ACS) (sim; não); local do primeiro atendimento, na suspeita da hanseníase (unidade básica de saúde [UBS]; unidade de referência municipal; outro); local do diagnóstico (UBS; unidade de referência municipal; outro); local de tratamento da hanseníase, poliquimioterapia (unidade de referência municipal; outro); e conhecimento da doença antes do diagnóstico (sim; não).
Para os CCP, foram acrescidas informações sobre atividades de vigilância: realização do exame dermatológico; realização do exame neurológico; recebimento da vacina BCG; orientações sobre aplicação da vacina BCG; orientações sobre mobilização de outros contatos; e orientação para retornar ao serviço de saúde.2
Além de identificar o percentual de contatos de casos de hanseníase avaliados entre os registrados (indicador de cobertura), considerou-se necessário o reconhecimento de indicadores de qualidade das ações desenvolvidas para a vigilância. Nesse sentido, foi utilizado o escore IntegraHans, construído pelo projeto para esse fim.
Esse escore está baseado em seis componentes, de pesos diferentes: realização de exame dermatológico completo em toda a superfície corporal (peso 6); realização de exame neurológico completo (peso 5); vacinação da BCG quando indicada (peso 4); orientação para retornar à unidade de saúde, se apresenta sintomas ou consulta previamente agendada (peso 3); orientações sobre BCG (peso 2); e orientações para busca de outros contatos (peso 1). O escore possui três classificações: ruim (0-6), regular (7-14) e ótimo (15-21). Considerando-se a importância de monitorar essa vigilância, o escore possibilita a composição de um indicador de fácil interpretação, a ser utilizado na rede de atenção à saúde.
Na avaliação de diferença entre os grupos, utilizou-se o teste do Qui-Quadrado (Χ2) de Pearson para valores de observações iguais ou superiores a cinco, e o teste exato de Fisher para os demais. Na análise bruta, buscou-se verificar a existência de associação entre o escore IntegraHans e o acometimento de duas ou mais gerações na RCD, como também de 3 ou mais casos de hanseníase na mesma RCD. Foram calculadas razões de prevalências (RP) e seus respectivos intervalos de confiança de 95% (IC95%). Foram considerados significativos os valores de p<0,05. Para análise dos dados, utilizou-se o programa Stata 11.2 (Stata Corporation, College Station, USA).
Foram incluídas variáveis que avaliam aspectos operacionais das ações de controle da hanseniase. Para o CR, foram analisadas as variáveis ‘domicílio cadastrado por ACS’, ‘primeiro local acessado mediante suspeita’, ‘local de diagnóstico’ e ‘local de tratamento’ (todas com três alternativas de resposta: UBS; unidade de referência; outro); e mais uma, ‘ter ouvido falar da hanseníase antes’ (sim; não). Para os contatos, foram analisadas as variáveis ‘exame dermatológico’, ‘exame neurológico’, ‘orientação para BCG’, ‘aplicação da vacina BCG’, ‘orientação para mobilizar outros contatos’ (para avaliação) e ‘orientação para retornar aos serviços de saúde’ (definidas pela mesma dualidade: sim; não); e mais o ‘escore Integrahans’ (ótimo; regular; ruim). Para variáveis numéricas quantitativas discretas, calculou-se a média, com respectivo IC95%.
Os projetos foram submetidos e aprovados pelo Comitês de Ética em Pesquisa (CEP) da UFC (Parecer no 544.962, de 28 de fevereiro de 2014) e da UFPI (Parecer no 1.115.818, de 17 de julho de 2015). Respeitou-se a Resolução do Conselho Nacional de Saúde (CNS) no 466, de 12 de outubro de 2012. Todos os casos de hanseníase convidados a participar foram orientados sobre o estudo antes de assinarem o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) como decisão informada de sua participação. Para os menores de 18 anos de idade, além do responsável legal, as crianças acima de 12 anos de idade tiveram acesso ao TCLE e ao Termo de Assentimento Livre e Esclarecido (TALE).
Resultados
Nos municípios selecionados, foram identificados 405 (45,1%) casos de hanseníase que apresentavam pelo menos mais de um caso em sua RCD. Foram alcançados 233 (57,5%) casos, a maioria na faixa etária de 41-60 anos (n=98; 42,1%) e raça/cor da pele parda (n=147; 63,1%) Tabela 1). Houve 169 (41,7%) perdas em virtude de mudança de endereço e 3 (0,7%) por recusa à participação.
Variáveis | Contatos | Casos de referência | Total |
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n (%) | n (%) | n (%) | |
Sexo | |||
| |||
Masculino | 56 (50,9) | 59 (48,0) | 115 (49,4) |
Feminino | 54 (49,1) | 64 (52,0) | 118 (50,6) |
| |||
Faixa etária (em anos) | |||
| |||
≤14 | 5 (4,5) | 1 (0,8) | 6 (2,6) |
15-40 | 35 (31,8) | 29 (23,6) | 64 (27,5) |
41-60 | 49 (44,5) | 49 (39,8) | 98 (42,1) |
>60 | 21 (19,1) | 44 (35,8) | 65 (27,9) |
| |||
Raça/cor da pele | |||
| |||
Branca | 14 (12,7) | 18 (14,6) | 32 (13,7) |
Parda | 70 (63,6) | 77 (62,6) | 147 (63,1) |
Negra/preta | 23 (20,9) | 24 (19,5) | 47 (20,2) |
Amarela | 3 (2,7) | 4 (3,3) | 7 (3,0) |
| |||
Estado civil | |||
| |||
Solteiro | 22 (20,0) | 14 (11,4) | 36 (15,5) |
Casado | 60 (54,5) | 64 (52,0) | 124 (53,2) |
Não casado (em união estável) | 10 (9,1) | 8 (6,5) | 18 (7,7) |
Separado/divorciado | 10 (9,1) | 23 (18,7) | 33 (14,2) |
Viúvo | 8 (7,3) | 14 (11,4) | 22 (9,4) |
| |||
Escolaridade | |||
| |||
Não alfabetizado | 21 (19,1) | 28 (22,8) | 49 (21) |
Alfabetizado | 7 (6,4) | 14 (11,4) | 21 (9,0) |
1ª a 3ª série | 13 (11,8) | 20 (16,3) | 33 (14,2) |
4ª a 7ª série | 31 (28,2) | 23 (18,7) | 54 (23,2) |
Ensino fundamental completo | 4 (3,6) | 3 (2,4) | 7 (3,0) |
1º ou 2º ano do ensino médio | 15 (13,6) | 4 (3,3) | 19 (8,2) |
Ensino médio completo | 14 (12,7) | 21 (17,1) | 35 (15) |
Ensino superior incompleto | 3 (2,7) | 4 (3,3) | 7 (3,0) |
Ensino superior completo | 2 (1,8) | 6 (4,9) | 8 (3,4) |
| |||
Total | 110 (47,2) | 123 (52,8) | 233 (100,0) |
Do total de 233 casos de hanseníase incluídos no estudo, observou-se que 66,1% (n=154) pertenciam a RCD com 3 ou mais casos de hanseníase diagnosticados, sendo a média geral de 4,1 casos por RCD, com desvio-padrão de 3,3 casos. Em 53,2% dos casos, (n=124), a doença atingiu duas gerações, e em 20,2% dos casos (n=47), três gerações.
Verificou-se maior proporção de domicílios cadastrados por ACS (n=197; 84,5%); porém, serviços especializados foram os mais procurados, mediante suspeita da doença (n=167; 71,7%), confirmação do diagnóstico (n=200; 85,8%) e realização de tratamento da hanseníase (n=178; 76,4%) Tabela 2).
Variáveis | Total | Duas ou mais gerações | p-valor | RPa | IC95%b | p-valorc | |
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Não | Sim | ||||||
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n (%) | n (%) | ||||||
Casos de referência e contatos | |||||||
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Domicílio cadastrado por ACSe | |||||||
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Sim | 197 (84,5) | 47 (23,9) | 150 (76,1) | 0,026c | 1,31 | 0,98;1,74 | 0,026 |
Não | 36 (15,5) | 15 (41,7) | 21 (58,3) | 1,00 | – | – | |
| |||||||
Primeiro local acessado mediante suspeita | |||||||
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UBSf | 49 (21,0) | 12 (24,5) | 37 (75,5) | 0,679c | 1,00 | – | – |
Serviço de referência municipal | 167 (71,7) | 44 (26,3) | 123 (73,7) | 0,97 | 0,81;1,17 | 0,794 | |
Outros | 17 (7,3) | 6 (35,3) | 11 (64,7) | 0,86 | 0,58;1,26 | 0,389 | |
| |||||||
Local de diagnóstico | |||||||
| |||||||
UBSf | 27 (11,6) | 9 (33,3) | 18 (66,7) | 0,220d | 1,00 | – | – |
Unidade de referência | 200 (85,8) | 50 (25,0) | 150 (75,0) | 1,12 | 0,85;1,49 | 0,354 | |
Outros | 6 (2,6) | 3 (50,0) | 3 (50,0) | 0,75 | 0,32;1,74 | 0,443 | |
| |||||||
Local de tratamento | |||||||
| |||||||
UBSf | 55 (23,6) | 15 (27,3) | 40 (72,7) | 0,899c | 1,00 | – | – |
Unidade de referência | 178 (76,4) | 47 (26,4) | 131 (73,6) | 1,01 | 0,84;1,21 | 0,899 | |
| |||||||
Ter ouvido falar da hanseníase antes | |||||||
| |||||||
Sim | 178 (76,4) | 48 (27,0) | 130 (73,0) | 0,825c | 1,00 | – | – |
Não | 55 (23,6) | 14 (25,5) | 41 (74,5) | 1,02 | 0,85;1,22 | 0,824 | |
| |||||||
Contatos (n=110) | |||||||
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Exame dermatológico | |||||||
| |||||||
Sim | 48 (43,6) | 4 (8,3) | 44 (91,7) | 0,005d | 1,00 | – | – |
Não | 62 (56,4) | 19 (30,6) | 43 (69,4) | 1,32 | 1,10;1,59 | 0,004 | |
| |||||||
Exame neurológico | |||||||
| |||||||
Sim | 47 (42,7) | 4 (8,5) | 43 (91,5) | 0,008d | 1,00 | – | – |
Não | 63 (57,3) | 19 (30,2) | 44 (69,8) | 1,31 | 1,09;1,57 | 0,006 | |
| |||||||
Orientação para BCGg | |||||||
| |||||||
Sim | 77 (70,0) | 22 (28,6) | 55 (71,4) | 0,002d | 1,36 | 1,16;1,58 | 0,003 |
Não | 33 (30,0) | 1 (3,0) | 32 (97,0) | 1,00 | – | – | |
| |||||||
Aplicação da vacina BCGg | |||||||
| |||||||
Sim | 28 (25,5) | 1 (3,6) | 27 (96,4) | 0,007d | 1,00 | – | – |
Não | 82 (74,5) | 22 (26,8) | 60 (73,2) | 1,32 | 1,14;1,53 | 0,009 | |
| |||||||
Orientação para mobilizar outros contatos | |||||||
| |||||||
Sim | 68 (61,8) | 19 (27,9) | 49 (72,1) | 0,029d | 1,26 | 1,05;1,50 | 0,021 |
Não | 42 (38,2) | 4 (9,5) | 38 (90,5) | 1,00 | – | – | |
| |||||||
Orientação para retornar aos serviços de saúde | |||||||
| |||||||
Sim | 53 (48,2) | 10 (18,9) | 43 (81,1) | 0,646c | 1,00 | – | – |
Não | 57 (51,8) | 13 (22,8) | 44 (77,2) | 1,05 | 0,87;1,27 | 0,612 | |
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Escore IntegraHans | |||||||
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Ótimo | 38 (34,5) | 3 (7,9) | 35 (92,1) | 0,017d | 1,00 | – | – |
Regular | 10 (9,1) | 1 (10,0) | 9 (90,0) | 0,98 | 0,78;1,22 | 0,830 | |
Ruim | 62 (56,4) | 19 (30,6) | 43 (69,4) | 1,33 | 1,10;1,61 | 0,008 |
a) RP: razão de prevalências.
b) IC95%: intervalo de confiança de 95%.
c) Teste do Qui-Quadrado de Pearson.
d) Teste exato de Fisher.
e) ACS: agente comunitário de saúde.
f) UBS: unidade básica de saúde.
g) BCG: bacilo de Calmette-Guérin.
n (%)
A maioria dos CCP informou que, à época do diagnóstico do CR, não teve seu exame dermatológico (n=62; 56,4%) e seu exame neurológico (n=63; 57,3%) realizados. Embora a orientação para aplicação da BCG (n=77; 70,0%) tenha sido frequente, a maioria não foi vacinada (n=82; 74,5%). Muitos CCP foram orientados a mobilizar outros contatos para avaliação (n=68; 61,8%); contudo, não foram orientados a retornar para nova avaliação nos anos subsequentes (n=57; 51,8%). Houve maior proporção de casos com escore IntegraHans classificado como ‘ruim’ (n=62; 56,4%) Tabela 2).
Verificou-se associação entre acometimento de duas ou mais gerações com: não realização do exame dermatológico dos contatos (RP=1,32 – IC95%1,10;1,59); ter recebido orientação para BCG (RP=1,36 – IC95%1,16;1,58), mas não ter recebido a vacina BCG (RP=1,32 – IC95%1,14;1,53); ter sido orientado(a) a mobilizar outros contatos, para avaliação (RP=1,26 – IC95%1,05;1,50); e ter tido escore IntegraHans ‘ruim’ (RP=1,33 – IC95%1,10;1,61) Tabela 2).
Quando o número de casos por RCD foi comparado à qualidade das ações de controle de contatos, verificou-se associação entre o desfecho de 3 ou mais casos por RCD e: não realização do exame dermatológico dos contatos (RP=1,29 – IC95%1,07;1,56); não realização do exame neurológico (RP=1,28 – IC95%1,06;1,55); falta de orientação para receber BCG (RP=1,38 – IC95%1,18;1,62); e não aplicação da BCG (RP=1,34 – IC95%1,15;1,56). Também verificou-se associação desse desfecho (3 ou mais casos por RCD) com falta de orientação para mobilizar outros contatos (RP=1,22 – IC95%1,02;1,47) e ter escore IntegraHans ‘ruim’ (RP=1,33 – IC95%1,10;1,61) Tabela 3).
Variáveis | Total | Três ou mais casos por RCD | p-valor | RPa | IC95%b | p-valorc | |
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Não | Sim | ||||||
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n (%) | n (%) | n (%) | |||||
Casos de referência e contatos | |||||||
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Domicílio cadastrado por ACSe | |||||||
| |||||||
Sim | 197 (84,5) | 65 (33,0) | 132 (67,0) | 0,492c | 1,09 | 0,83;1,44 | 0,492 |
Não | 36 (15,5) | 14 (38,9) | 22 (61,1) | 1,00 | – | – | |
| |||||||
Local de diagnóstico | |||||||
| |||||||
UBSf | 27 (11,6) | 7 (25,9) | 20 (74,1) | 0,465d | 1,00 | – | – |
Unidade de referência | 200 (85,8) | 69 (34,5) | 131 (65,5) | 0,88 | 0,69;1,13 | 0,376 | |
Outros | 6 (2,6) | 3 (50,0) | 3 (50,0) | 0,67 | 0,29;1,55 | 0,246 | |
| |||||||
Local de tratamento | |||||||
| |||||||
UBSf | 55 (23,6) | 17 (30,9) | 38 (69,1) | 0,591c | 1,00 | – | – |
Unidade de referência | 178 (76,4) | 62 (34,8) | 116 (65,2) | 0,94 | 0,77;1,16 | 0,591 | |
| |||||||
Contatos (n=110) | |||||||
| |||||||
Exame dermatológico | |||||||
| |||||||
Sim | 48 (43,6) | 5 (10,4) | 43 (89,6) | 0,011c | 1,00 | – | – |
Não | 62 (56,4) | 19 (30,6) | 43 (69,4) | 1,29 | 1,07;1,56 | 0,011 | |
| |||||||
Exame neurológico | |||||||
| |||||||
Sim | 47 (42,7) | 5 (10,6) | 42 (89,4) | 0,014c | 1,00 | – | – |
Não | 63 (57,3) | 19 (30,2) | 44 (69,8) | 1,28 | 1,06;1,55 | 0,014 | |
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Orientação para BCGg | |||||||
| |||||||
Sim | 33 (30,0) | 1 (3,0) | 32 (97,0) | 0,001d | 1,00 | – | – |
Não | 77 (70,0) | 23 (29,9) | 54 (70,1) | 1,38 | 1,18;1,62 | 0,002 | |
| |||||||
Aplicação da vacina BCGg | |||||||
| |||||||
Sim | 28 (25,5) | 1 (3,6) | 27 (96,4) | 0,007d | 1,00 | – | – |
Não | 82 (74,5) | 23 (28,0) | 59 (72,0) | 1,34 | 1,15;1,56 | 0,007 | |
| |||||||
Orientação para mobilizar outros contatos | |||||||
| |||||||
Sim | 42 (38,2) | 5 (11,9) | 37 (88,1) | 0,048c | 1,00 | – | – |
Não | 68 (61,8) | 19 (27,9) | 49 (72,1) | 1,22 | 1,02;1,47 | 0,048 | |
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Orientação para retornar aos serviços de saúde | |||||||
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Sim | 53 (48,2) | 9 (17,0) | 44 (83,0) | 0,236c | 1,00 | – | – |
Não | 57 (51,8) | 15 (26,3) | 42 (73,7) | 1,13 | 0,93;1,37 | 0.236 | |
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Escore IntegraHans | |||||||
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Ótimo | 38 (34,5) | 3 (7,9) | 35 (92,1) | 0,020d | 1,00 | – | – |
Regular | 10 (9,1) | 2 (20,0) | 8 (80,0) | 1,15 | 0,83;1,59 | 0,265 | |
Ruim | 62 (56,4) | 19 (30,6) | 43 (69,4) | 1,33 | 1,10;1,61 | 0,008 |
a) RP: razão de prevalências.
b) IC95%: intervalo de confiança de 95%.
c) Teste do Qui-Quadrado de Pearson.
d) Teste exato de Fisher.
e) ACS: agente comunitário de saúde.
f) UBS: unidade básica de saúde.
g) BCG: bacilo de Calmette-Guérin.
Discussão
Os contextos analisados, das regiões Norte e Nordeste do Brasil, reforçam expressiva vulnerabilidade programática relativa à oferta e qualidade das ações de vigilância de contatos para hanseníase. Trata-se de um problema complexo, sobretudo ao se ter considerado a abordagem de RCD com sobreposição de CN, denotando risco acrescido para a doença. A descentralização dessas ações na APS, todavia, não está suficientemente implementada nos municípios em estudo. Os altos percentuais de CCP que não realizaram exames dermatológico/neurológico oportunamente, não foram orientados e tampouco vacinados com BCG, e não receberam orientação para retorno às UBS, muito provavelmente, contribuem para a manutenção da hanseníase nesses territórios. A verificação de associação entre escore IntegraHans ‘ruim’ na abordagem dos contatos e (i) o acometimento de duas ou mais gerações ou (ii) a existência de 3 ou mais casos na RCD reforça a vulnerabilidade programática e a necessidade de reestruturação das ações de vigilância.
A despeito das diretrizes de controle estabelecidas pelo Ministério da Saúde, pautadas na estratégia global da OMS para 2020,2 a operacionalização das ações de vigilância do contato não se concretizou plenamente, nos contextos estudados. O processo de descentralização da atenção e do cuidado à saúde para a ESF ainda não está efetivado, considerando-se os elevados percentuais de casos que buscam serviços de referência para diagnóstico e tratamento. Em áreas endêmicas, é possível haver sobrecarga desses serviços, inclusive com dificuldades na efetivação de ações para as quais eles têm prerrogativa.2 Ademais, é preciso refletir sobre a abrangência das ações em municípios sem acesso a serviços especializados, gerando impactos, de diferentes ordens, entre as pessoas acometidas.
O processo de integração das ações de controle de hanseníase na APS tem ocorrido no Brasil desde os anos 1970, de modo gradual e progressivo, embora lento. Como consequência, a descentralização ainda é insuficiente, observando-se concentração da atenção em serviços especializados de municípios de médio e grande porte.3
Estudo realizado no município de São José do Rio Preto, SP, com o objetivo de avaliar serviços de saúde na detecção precoce da hanseníase, revelou que pessoas acometidas se deslocavam, em média, 9,2km desde suas residências até os locais de tratamento, confirmando a importância da descentralização para a melhoria do acesso, a precocidade do diagnóstico e o seguimento do tratamento.20Estudo conduzido com o propósito de caracterizar o fluxo de pessoas acometidas pela hanseníase, do município de residência para o município de diagnóstico, nos estados do Maranhão, Pará, Tocantins e Piauí, identificou lacunas nesse processo de descentralização. Ressaltam-se, em particular, as dificuldades e os desafios associados, no acompanhamento durante e após a poliquimioterapia (PQT).22
A realidade encontrada nos contextos em análise pode ser igual à de outras partes do país. Estudo realizado com indivíduos portadores de hanseníase em Salvador, BA, revelou que pessoas acometidas percorreram longo itinerário para serem cuidadas, com tempo médio para diagnóstico demasiado longo e, em muitos casos, apenas após seu encaminhamento a um centro de referência na capital do estado.10 Outro estudo, desenvolvido em município do estado de São Paulo, revelou a ausência da busca ativa dos casos – não obstante necessária –, para o real conhecimento da situação epidemiológica, bem como a ausência de ações de educação em saúde, apontando para a necessidade de redimensionamento do atendimento à hanseníase na rede de APS, em especial do diagnóstico e tratamento nesses espaços.23
Portanto, são complexos os desafios a serem superados para a integração das ações de controle por profissionais da APS, no sentido de ampliar o acesso de usuários aos serviços.20 Entre esses desafios, destacam-se algumas questões: (i) a qualidade da gestão em saúde, na perspectiva de redes regionalizadas; (ii) a educação permanente de profissionais de saúde; (iii) o não empoderamento das pessoas acometidas e suas famílias, quanto a seu direito à saúde; e (iv) a insuficiência de análises sistemáticas relativas aos indicadores epidemiológicos e operacionais, nos territórios.3
Os altos percentuais de CCP não abordados adequadamente, no momento do diagnóstico do CR, quando eram contatos, ilustram dificuldades reais para o diagnóstico oportuno e o seguimento dos contatos, além da imunoprofilaxia, medidas há tanto tempo difundidas no país.3 Consequentemente, mantém-se a circulação ativa de Mycobacterium leprae nas RCD, afetando indivíduos por mais de uma geração, o que pode favorecer o surgimento das incapacidades físicas e a permanência do estigma, fortemente associados à hanseníase.23
Um estudo de caso, sobre situações relacionadas à hanseníase em crianças, concluiu que a busca ativa em contatos revelou-se um importante método para diagnóstico precoce da doença na infância, principalmente porque os sinais clínicos nem sempre são facilmente identificados.26 Apesar de o exame dermatoneurológico constituir o principal meio para diagnóstico de casos, é essencial, outrossim, a promoção de habilidades e conhecimentos em torno da doença e suas diversas manifestações.3
Destaca-se, ainda, o fato de a maioria dos CCP abordados no momento do diagnóstico do CR não terem sido orientados a retornar aos serviços de saúde na presença de lesões cutâneas e neurológicas. Deste modo, a recomendação da vigilância de forma longitudinal, durante o período de cinco anos, pode se perder em meio à rotina dos serviços de saúde, ou como decorrência da fragilidade das ações de educação em saúde para pessoas e sua RCD.26
Outro estudo, direcionado a caracterizar padrões de abordagem envolvendo contatos domiciliares de casos de hanseníase residentes na região Norte do Brasil, revelou a não realização do exame dermatológico em 41,6% dos contatos, além da ausência do exame neurológico em 54,9%. No mesmo estudo, 56,0% dos contatos não foram orientados a retornar para nova avaliação/seguimento na unidade de saúde, e 40,5% não foram orientados para mobilização de outros contatos.29 Estes achados apontam possíveis fragilidades das instituições de saúde no cumprimento de sua função de prevenção da hanseníase,30 com possibilidade de ampliação da susceptibilidade de determinadas RCD e manutenção de focos de transmissão.
Algo que gera inquietação, no que toca à política nacional de controle da hanseníase, diz respeito à falta de indicadores que possibilitem o monitoramento não apenas da cobertura, mas também, da qualidade dessa abordagem de contatos.3 Nesta perspectiva, o escore IntegraHans se propôs a avaliar em que medida seis ações consideradas essenciais para a vigilância do contato ocorreram. De modo geral, menos de 50,0% dos CCP tiveram sua abordagem classificada como ‘ótima’; ou seja, quase a metade dos CCP deixaram de receber algum cuidado essencial para prevenção e/ou diagnóstico precoce em sua RCD, dentro das ações previstas nacionalmente.3
Processos de educação permanente, alinhados a sistemas de monitoramento e avaliação bem estabelecidos, favorecem o acompanhamento da descentralização das ações de controle da hanseníase na rede de atenção à saúde do SUS.2 São atividades com potencial de subsidiar o planejamento de uma atenção integral à pessoa com hanseníase e a sua RCD. A incorporação do escore, associada ao monitoramento de RCD com 3 ou mais casos de hanseníase e/ou ao acometimento de duas ou mais gerações, também deve ser pensada nos processos de priorização de cenários para vigilância integrada aos territórios de saúde.
O desenvolvimento de ações de vigilância em saúde pela APS e sua integração aos demais pontos de atenção na rede tornam-se estratégicos para a sustentabilidade das ações, sua distribuição mais justa e com maior qualidade.19 Os processos de comunicação e educação popular devem ser, portanto, (re)significados, para maior inclusão e empoderamento dos usuários do SUS.
Possíveis limitações deste estudo referem-se à possibilidade de viés recordatório dos CCP, quanto às ações de vigilância realizadas no momento do diagnóstico do CR, além de não ter sido possível abordar todos os CCP das RCD, muitos deles por conta de mudança de endereço ou recusa. O fato de o estudo ter partido de contextos com a existência mínima de 2 casos de hanseníase por RCD pode, de alguma maneira, ter concorrido para resultados piores, quando se consideram contextos mais gerais. Entretanto, a abordagem domiciliar de um número significativo de RCD em três estados de elevada endemicidade do país fortalece os achados.
As falhas operacionais identificadas no processo de vigilância de contatos de hanseníase reforçam o caráter de vulnerabilidade programática nos cenários estudados, mesmo entre contatos de RCD com sobreposição de casos. Reiteram-se aspectos críticos, relativos ao acesso à rede de atenção à saúde no SUS, como também ao desenvolvimento das ações de vigilância de forma longitudinal. Além da cobertura, torna-se fundamental desenvolver novas estratégias visando ampliar a qualidade dessas ações.
Ao contrário do preconizado pela política nacional de controle da hanseníase no Brasil, os serviços de referência mantiveram-se como principal espaço do SUS para desenvolvimento das ações de vigilância do contato, diagnóstico e tratamento da hanseníase. Nos municípios que foram objeto do presente estudo, a descentralização das ações para a atenção primária à saúde ainda não se configurou como prática no cotidiano dos serviços. A utilização do escore IntegraHans mostrou-se factível para avaliar a qualidade da abordagem dos contatos de hanseníase, e deve ser pensada como possibilidade nos serviços de saúde.
Como conclusão, ressalta-se a importância de processos estruturados, de apoio matricial e monitoramento das ações no território, especialmente nos cenários de RCD com sobreposição da doença.