Introdução
Em 1916, Georges Guillain, J. A. Barré e A. Strohi descreveram uma síndrome caracterizada por paralisia aguda e perda de reflexos, em soldados do exército francês. Na ocasião foi descrita, pela primeira vez, a ocorrência da dissociação albumino-citológica no líquido cefalorraquidiano. A participação de Strohi foi limitada à eletrofisiologia. Passadas aproximadamente quatro décadas, em honra a seus investigadores, a doença recebeu a denominação de síndrome de Guillain-Barré (SGB).1
A SGB é uma polineuropatia periférica, caracterizada pelo início agudo de fraqueza bilateral e simétrica dos membros com reflexos miotáticos diminuídos ou ausentes. A doença é progressiva e atinge seu ápice entre 12 horas e 28 dias, seguido por platô e melhora subsequente nos sobreviventes. Geralmente, a SGB é desencadeada por um processo infeccioso agudo ocorrido dias ou semanas antes dos sintomas neurológicos.2
Diversas infecções prévias foram identificadas em pacientes com SGB. C jejuni é o agente infeccioso prévio identificado em maior frequência. Outras infecções associadas à síndrome são aquelas causadas por citomegalovírus (CMV), vírus Epstein-Barr, vírus influenza A, Mycoplasma pneumoniae e Haemophilus influenzae.3 Uma relação emergente entre a SGB e as infecções agudas por arbovírus, incluindo aquelas pelos vírus chikungunya e Zika, está sendo monitorada e é assunto de grande interesse.5
Estudos mostram que a doença é mais frequente em homens. A explicação para a diferença entre ambos os sexos é desconhecida. Não existe relato de sazonalidade na ocorrência da síndrome.5
Cerca de 25% dos casos de SGB desenvolvem insuficiência respiratória e muitos apresentam sinais de disfunção autonômica na fase aguda da doença. Aproximadamente 5% dos casos evoluem para óbito e 20% sofrem incapacidade significativa definitiva.3
O diagnóstico geralmente é clínico, porém a dissociação albumino-citológica no liquido cefalorraquidiano e estudos eletrofisiológicos podem auxiliar o diagnóstico e diferenciar os subtipos desmielinizantes e axonais da SGB.3 O tratamento específico da SGB visa, primordialmente, acelerar o processo de recuperação, diminuindo as complicações associadas à fase aguda e reduzindo os déficits neurológicos residuais no longo prazo. O manejo terapêutico inclui o uso de plasmaférese e imunoglobulina humana intravenosa, ambos disponibilizados pelo Sistema Único de Saúde (SUS).7
A incidência de SGB em muitas partes do mundo é desconhecida, todavia. Algumas evidências sugerem que a epidemiologia do SGB pode ser diferente entre regiões distintas. Um estudo realizado para obter estimativas da incidência de SGB na América do Norte e na Europa utilizou publicações de 1973 a 2009, e encontrou uma mediana de 1,1 caso por 100 mil habitantes/ano.8
Um estudo realizado no estado brasileiro do Rio Grande do Norte, no período de 1994 a 2007, mostrou uma incidência de 0,3 caso por 100 mil hab./ano.9 No estado de São Paulo, outro estudo, este realizado em um hospital terciário, encontrou uma incidência de 0,6 caso por 100 mil hab./ano.10
Em 2015, o Programa Nacional de Controle da Dengue do Ministério da Saúde do Brasil registrou um aumento do número de internações por SGB no SUS, especialmente nos estados nordestinos de Pernambuco e Bahia.11 Esse aumento de casos foi detectado pelo Sistema de Informações Hospitalares do SUS (SIH/SUS), cuja finalidade é registrar todos os atendimentos provenientes de internações hospitalares financiadas pelo sistema, em hospitais públicos e conveniados.
Tendo em vista o registro crescente de hospitalizações por SGB no país, principalmente após a introdução do vírus chikungunya e a rápida propagação do vírus Zika, justifica-se a realização de estudos que contribuam para o conhecimento do cenário epidemiológico da síndrome, como também para servir de subsídio à tomada de decisões e planejamento de políticas públicas em saúde, em um momento em que estudos são realizados para melhor compreensão da circulação dos arbovírus e suas complicações.
O objetivo deste estudo foi descrever as características demográficas e a dinâmica espaço-temporal das internações por síndrome de Guillain-Barré no Brasil, no período de 2008 a 2017.
Métodos
Realizou-se estudo ecológico do tipo desenho misto, das internações por SGB financiadas pelo SUS no período de 2008-2017, tendo como unidades de análise as Unidades da Federação (UFs) e as regiões do Brasil.
O país está dividido em cinco regiões geopolíticas – Norte, Nordeste, Centro-Oeste, Sudeste e Sul –, de diferentes características demográficas, econômicas e sociais. São 26 estados e o Distrito Federal. O Brasil é o maior país da América do Sul (8.515.767km2).12
Foi utilizada a base de dados do SIH/SUS. As populações residentes, por região e UF, nos anos de 2008 a 2017, foram estimadas pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), com base no Censo Demográfico de 2010; para os demais anos, foram utilizadas as projeções estimadas pelo IBGE.
Foram incluídas todas as internações cujo diagnóstico principal foi registrado com o código G61.0 da Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde – 10a revisão (CID-10).
Construiu-se uma série histórica de dez anos das internações por SGB (2008 a 2017). Para descrição dos dados, foram utilizadas frequências e medidas de tendência central e dispersão. As variáveis demográficas e também relativas à doença foram analisadas segundo a contribuição proporcional para o total de casos em cada ano da série temporal, permitindo visualizar as possíveis alterações ao longo do período selecionado. Da mesma forma, as UFs tiveram sua distribuição proporcional calculada, permitindo uma leitura de quanto cada uma contribuiu para o total de internações por SGB. A taxa de internações foi calculada para as 27 UFs, considerando-se o número de internados por SGB como numerador e a população do período como denominador, multiplicada por 100 mil habitantes. A letalidade foi calculada dividindo-se o número de óbitos por SGB no Brasil em cada ano pelo número total de internações por SGB no Brasil em cada ano, vezes 100.
Para calcular o tempo de permanência hospitalar, considerou-se o número de diárias. A diária é a permanência de um paciente por um período indivisível de até 24 horas em uma instituição hospitalar. A hora do início e fim do período considerada para contagem pelo SIH/SUS é a meia-noite.13
O diagrama de controle utilizou o método de Cullen e foi construído visando a detecção de epidemia na série histórica das internações por SGB. O diagrama de controle abrange dois conjuntos de informações: um gráfico de controle, representativo do canal endêmico; e um gráfico de acompanhamento. O período observado foi de 2014 a 2017, e a faixa endêmica construída, que teve como referência os anos anteriores tornou-se a mesma para os três anos.14 Obteve-se um valor mensal esperado para cada mês, através do coeficiente de incidência das internações por SGB (C.I méd. mês), com base nos anos anteriores. Em seguida, foi calculado o desvio-padrão (DP) das taxas mensais. O limite máximo esperado foi calculado da seguinte forma: (C.I méd. mês) + (desvio-padrão mês x 1.96). Procedeu-se da mesma forma para os meses seguintes.
Para a demonstração gráfica da distribuição espacial das taxas de incidências nas UFs, foram considerados intervalos de quebras naturais dos dados: 0,00-0,13; 0,14-0,45; 0,45-0,65; 0,66-0,85; 0,86-1,10; 1,11-1,90; 1,91 ou mais internações/100 mil hab.
Para análise dos dados, foram utilizados os softwares Epi Info™ 7.2.2, Tabwin™ 3.6 e Microsoft Office® 2010. Para a elaboração dos mapas, utilizou-se o programa QGIS versão 2.1.8.
Resultados
No período de 2008 a 2017, foram registradas 15.512 internações por SGB no Brasil. De maneira geral, houve aumento nas internações a partir de 2015 (Tabela 1). No período de 2008 a 2014, observou-se uma estabilidade e média de 1.344 internações por ano. No ano seguinte (2015), foram registradas 1.953 internações por SGB, representando um incremento de 45%. Destaca-se o ano de 2016, com o maior número de internações: N=2.216 (Tabela 1).
Ano | Internações por síndrome de Guillain-Barré | Sexo | Idade | Tempo de permanência hospitalar, em dias | Unidade de terapia intensiva n (%) | Óbitos letalidade: n (%) | |
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Masculino: n (%) | Feminino: n (%) | Mediana (Q1-Q3) | Mediana (Q1-Q3) | ||||
2008 | 1.167 | 711 (60,9) | 456 (39,1) | 45 (28-59) | 6 (04-13) | 112 (9,6) | 33 (2,8) |
2009 | 1.350 | 796 (59,0) | 554 (41,0) | 42 (25-57) | 6 (04-12) | 133 (9,9) | 30 (2,2) |
2010 | 1.405 | 784 (55,8) | 621 (44,2) | 42 (25-57) | 7 (04-14) | 181 (12,9) | 33 (2,3) |
2011 | 1.364 | 833 (61,1) | 531 (33,9) | 41 (25-55) | 7 (04-14) | 189 (13,9) | 48 (3,5) |
2012 | 1.218 | 698 (57,3) | 520 (42,7) | 39 (21-55) | 8 (04-15) | 210 (17,2) | 46 (3,8) |
2013 | 1.449 | 832 (57,4) | 617 (42,6) | 39 (22-54) | 8 (04-16) | 254 (17,5) | 47 (3,2) |
2014 | 1.455 | 805 (55,3) | 650 (44,7) | 38 (20-54) | 8 (04-14) | 259 (17,8) | 38 (2,6) |
2015 | 1.953 | 1.111 (56,8) | 842 (43,2) | 40 (25-56) | 8 (04-14) | 380 (19,5) | 59 (3,0) |
2016 | 2.216 | 1.294 (58,4) | 922 (41,6) | 40 (25-56) | 8 (04-15) | 433 (19,5) | 97 (4,4) |
2017 | 1.935 | 1.141 (59,0) | 794 (41,0) | 39 (22-55) | 8 (04-14) | 369 (19,1) | 71 (3,7) |
Q1: 1º quartil.
Q3: 3º quartil.
Houve predomínio do sexo masculino durante todo o período: 58,0%. A idade mediana dos pacientes internados ficou em torno de 40 anos; exceto no ano de 2008, quando foi registrada mediana de 45 anos.
Entre 2008 e 2017, foi observado aumento gradativo no tempo de permanência hospitalar em dias. Entretanto, no período de 2012 a 2017, a mediana da permanência hospitalar permaneceu em 8 dias. Também foi observado aumento gradual na proporção de pacientes assistidos em unidade de terapia intensiva (UTI): em 2008, 9,6%, alcançando 19,5% em 2015. O número de óbitos por ano no período variou de 30 a 97, destacando-se o ano de 2016 com a maior letalidade (4,4%).
A Tabela 2 apresenta a série temporal das internações por SGB nos estados e regiões, e seus respectivos gráficos de linha, nos quais se observa um aumento de internações a partir de 2015, na comparação com o ano anterior, nas regiões Nordeste, Sudeste, Centro-Oeste e Sul, com incrementos de 78,3%, 35,0%,18,5% e 7,7% respectivamente.
Os estados nordestinos do Ceará e da Bahia registraram o maior número de internações por SGB em 2015, relativamente a todo o período estudado, com 115 e 162 registros, respectivamente. Embora tenha havido um aumento de internações no estado de Pernambuco em 2015, o maior número de casos nesse estado foi registrado no ano de 2017: 189 internações.
Na região Sudeste, o ano de 2016 se destacou por nele ter-se registrado o maior número de internações por SGB no período estudado (2008-2017), com 909 registros. Ainda em 2016, observou-se o mesmo comportamento em Minas Gerais, com 311 internações; Rio de Janeiro, com 192; e São Paulo, com 377 internações.
Embora tenha registrado o maior número de internações por SGB nos anos de 2008 e 2009 (457 e 395 casos, respectivamente), a região Sul apresentou um aumento gradativo posterior a esse período, destacando-se o ano de 2016, com 348 internações.
Na região Centro-Oeste, foi observado aumento de internações por SGB a partir de 2015, destacando-se o ano de 2016, com 236 registros, e o estado de Goiás, com um aumento de 69,2% quando comparado ao ano anterior.
O diagrama de controle de internações por síndrome de Guillain-Barré, realizado por região (Figura 1), demostrou picos epidêmicos nos quatros anos observados para a região Norte, destacando-se o primeiro semestre de 2016. A região Nordeste apresentou nível acima do canal endêmico a partir de abril de 2015, com pico no mês de julho, e também no primeiro semestre de 2016 e em abril de 2017. Na região Sudeste, as internações por SGB estiveram presentes em nível epidêmico de setembro de 2015 a junho de 2016, como também no primeiro trimestre de 2017. Na região Sul, as internações se mantiveram em nível endêmico ao longo do período. A região Centro-Oeste apresentou nível epidêmico de internações por SGB de dezembro de 2015 a abril de 2016.
Na análise espaço-temporal, foi possível observar um aumento gradativo da taxa de internações por SGB a partir de 2015, registrando-se 28,4 internações por 100 mil hab. Em 2015, destacaram-se, na região Norte, os estados de Roraima e Amapá, e na região Nordeste, Rio Grande do Norte, Pernambuco e Alagoas (Figura 2). Evidenciou-se, no ano de 2016, um deslocamento para as regiões Centro-Oeste e Sudeste.
Discussão
Houve incremento no número de internações por síndrome de Guillain-Barré no Brasil, a partir de 2015. As internações por SGB estiveram presentes em nível epidêmico na região Nordeste no primeiro semestre dos anos de 2015, 2016 e, com menor intensidade, 2017. Situação semelhante foi encontrada nas regiões Sudeste, Centro-Oeste e Norte.
Entre as internações por SGB no período estudado, houve predomínio do sexo masculino, tempo de permanência hospitalar em torno de uma semana, e um menor percentual submetido a cuidados intensivos. A necessidade de monitoramento em UTI é um dos indicadores para gravidade, e a proporção verificada nesta pesquisa foi semelhante à encontrada em outros estudos.2
A letalidade verificada para o Brasil no período revelou-se semelhante ou até abaixo da encontrada na América do Norte e na Europa.8 Possivelmente, a utilização oportuna de imunoglobulina humana intravenosa no Brasil, custeada para os doentes pelo SUS, refletiu-se no prognóstico.7
O vírus Zika foi identificado pela primeira vez no país em abril de 2015, na região Nordeste, onde foram observados os casos iniciais da epidemia. No ano seguinte, houve deslocamento da epidemia para as regiões Sudeste, Centro-Oeste e Sul.15 A análise espaço-temporal das internações por SGB demostrou um aumento da taxa de incidência a partir de 2015; e um aglomerado da síndrome nos estados da região Nordeste, com deslocamento posterior para outras regiões, coincidindo com a situação epidemiológica da doença aguda pelo vírus Zika.
Embora a SGB não tenha sazonalidade, observou-se, com frequência, um aumento das internações em nível epidêmico, no primeiro semestre do ano. Vale ressaltar que esse é o período sazonal das infecções por arbovírus.16 Investigações epidemiológicas, realizadas pela equipe do Programa de Treinamento em Epidemiologia Aplicada aos Serviços do SUS (EpiSUS-Avançado/SVS/MS) no estado da Bahia, identificaram um maior número de casos de SGB após a introdução do vírus Zika, demostrando uma associação temporal: a maioria dos pacientes entrevistados relataram sintomas sugestivos de febre aguda por vírus Zika seis semanas antes do início da doença neurológica.15
Alguns estudos relataram aumento de casos de SGB associados ao vírus Zika, como na Polinésia Francesa, onde os casos apresentaram marcadores IgM ou IgG e anticorpos neutralizantes contra o vírus Zika.18 Estudo realizado em Porto Rico identificou oportunamente casos de SGB associados à infecção pelo vírus Zika, confirmada por RT-PCR.19
A SGB também tem se mostrado associada a febre de chikungunya. Outro estudo realizado na Polinésia Francesa, entre 2014 e 2015, encontrou aumento na incidência da síndrome após um surto de chikungunya.20 Casos de SGB após infecção por chikungunya foram relatados na Ilha Reunião, onde o incremento na incidência da síndrome foi estimado em 22%.21 Estudo realizado na Martinica e em Guadalupe, no ano de 2014, apontou aumento da incidência durante o período do surto.22
Os dados do presente estudo foram agregados. Portanto, não significam que os mesmos achados tenham ocorrido no nível individual. As informações foram obtidas do grupo populacional como um todo. Foram utilizados dados secundários, e a taxa de internações por SGB foi calculada com dados do SIH/SUS, um sistema de informações que, em suma, tem como objetivo o registro para pagamento dos serviços de saúde prestados aos usuários do SUS durante a internação hospitalar. Ou seja, não foram incluídas as internações ocorridas no setor privado ou suplementar. Tampouco foram excluídas as possíveis duplicidades, uma vez que se trabalhou com o banco de dados não nominal.
Este estudo descreve um panorama das internações por SGB no Brasil, em suas diferentes regiões, ao longo de dez anos. O expressivo aumento de internações por síndrome de Guillain-Barré ocorreu a partir de 2015, coincidindo com a introdução do vírus chikungunya e com a identificação – e rápida propagação – do vírus Zika. Recomenda-se às autoridades de Saúde Pública considerarem e colocarem em pauta a vigilância das doenças neuroinvasivas por arbovírus, dada a magnitude da síndrome, potencial de transmissão pelo vetor responsável e, por conseguinte, de disseminação do vírus, e suas consequências irreparáveis para a população, entre óbitos, sequelas e incapacidades adquiridas.