Introdução
A pandemia da COVID-19, em razão da velocidade da propagação da infecção e suas trágicas consequências, afetou a vida das pessoas e expôs as fragilidades dos sistemas de saúde em todo mundo, especialmente no Brasil. Até 31 de maio de 2020, foram notificados 514.849 casos e 29.314 óbitos pela doença no país, 13.690 casos e 604 óbitos correspondentes ao estado do Espírito Santo.(1) O primeiro caso no estado foi registrado em fevereiro de 2020.
Definido pela Constituição de 1988, o Sistema Único de Saúde (SUS) foi fundado nos princípios da Participação Social, Universalidade, Integralidade e Equidade no acesso dos cidadãos brasileiros aos serviços de saúde. Trata-se de princípios de matriz humanista, pautados nos valores do Estado Democrático de Direito. Em contrapartida vive-se, no mundo fático, uma realidade de subfinanciamento da Saúde Pública, somada à transferência de recursos públicos para a iniciativa privada, a qual, por sua vez, tem como referência o lucro e por conseguinte, a restrição/exclusão socioeconômica.(3)
Em situações de pandemia, países com sistemas universais de saúde deveriam apresentar melhores resultados, refletidos em menor número de infectados e mortos. Entretanto, no Canadá e no conjunto do Reino Unido, dotados de sistemas universais de saúde, a pandemia não atingiu a população de forma semelhante, e a desigualdade social mostrou-se um fator mais preponderante do que a universalidade. No País de Gales, por exemplo, as áreas socioeconômicas mais carentes acusaram uma taxa de mortalidade por COVID-19 de 44,6 mortes por 100 mil habitantes, quase o dobro da taxa correspondente à área menos carente, onde se observou mortalidade de 23,2/100 mil hab.(4)
Um dos marcadores de desigualdade é a distribuição proporcional de usuários do sistema conhecido como Saúde Suplementar, cujas carteiras de operadoras de saúde no Brasil incluem planos hospitalares do sistema privado. A distinção entre usuários do SUS e da Saúde Suplementar tem-se marcado pela condição de classe social, idade e estado de saúde. Segundo a última Pesquisa Mundial de Saúde (PMS), realizada em 2003, sobre amostra de 5 mil pessoas com 18 anos ou mais de idade, 24,0% dos entrevistados tinham seguro privado de saúde, ocorrência associada ao número de bens e à idade, ao nível de escolaridade, ter emprego formal e referir boa autoavaliação do estado de saúde. A PMS também revelou que esses indivíduos apresentam melhores condições de saúde e maior uso de serviços, comparados à população não coberta por seguro de saúde.(5)
A Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) monitora essa cobertura no Brasil, desde 2000. Em dados de 2019, a população do Espírito Santo atendida por planos de saúde era de 1.112.525 pessoas.
A presente investigação teve como objetivo analisar os fatores associados ao óbito em indivíduos internados por COVID-19 em hospitais públicos e privados do estado do Espírito Santo, Brasil.
Métodos
Realizou-se um estudo transversal, com pessoas cuja confirmação laboratorial de infecção pelo SARS-CoV-2 levou-as a internação nos hospitais públicos e privados do Espírito Santo, com desfecho da hospitalização para alta ou óbito.
O estado do Espírito Santo, localizado na região Sudeste do Brasil, apresentava em 2019 uma população de 4.018.650 hab., cujo rendimento mensal domiciliar per capita era de R$1.477,00 e o índice de desenvolvimento humano (IDH) de 0,740 (2010).(6)
No mesmo ano de 2019, 1.112.525 residentes no Espírito Santo, cerca de 27,7% da população do estado, eram cobertos por planos de saúde, tendo como base a estimativa populacional da fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).(8) Segundo dados do Cadastro Nacional dos Estabelecimentos de Saúde do Brasil (CNES), em abril de 2020, o Espírito Santo somava 223 estabelecimentos de saúde com atendimento de internação e destes, 85 próprios do SUS.(9)
No estudo foram incluídas todas as pessoas internadas com COVID-19 nos hospitais públicos e privados do estado, cujo desfecho da hospitalização fosse alta ou óbito e tivesse ocorrido até 14 de maio de 2020. Foram excluídos da análise 32 indivíduos hospitalizados sem informação sobre o desfecho do caso.
Os dados utilizados foram obtidos e disponibilizados pelo Núcleo Interinstitucional de Estudos Epidemiológicos (NIEE), criado com o objetivo de subsidiar as ações governamentais de resposta à emergência da COVID-19.(2) Coordenado pelo Instituto Jones dos Santos Neves (IJSN) da Secretaria de Estado de Economia e Planejamento do Espírito Santo, o NIEE conta com a participação, além da Secretaria de Estado da Saúde (SESA), do Corpo de Bombeiros Militar do Espírito Santo (CBMES) e do Laboratório de Epidemiologia da Universidade Federal do Espírito Santo (LabEpi UFES).
As variáveis sociodemográficas analisadas foram: sexo (masculino; feminino); idade (em anos: até 30; 31 a 40; 41 a 50; 51 a 60; mais de 60); raça/cor da pele (preto/pardo; não preto/pardo); e município de residência (região metropolitana de Vitória; interior do estado). A região metropolitana de Vitória é composta por 7 municípios: Capital Vitória, Vila Velha, Serra, Cariacica, Fundão, Guarapari e Viana. Os demais 71 municípios do estado foram agrupados na categoria ‘interior’.
Foi avaliada a presença (não; sim) de doenças/agravos possivelmente associados ao desfecho do caso: doenças pulmonares; doenças cardíacas; doenças renais; hepatites; diabetes mellitus; doenças imunológicas; infecção pelo vírus da imunodeficiência humana (human immunodeficiency virus, HIV); neoplasias; tabagismo; cirurgia bariátrica; obesidade; tuberculose; e doenças neurológicas crônicas. Foi incluída a variável ‘número de comorbidades’, estratificada entre 0 e 4 ou mais comorbidades presentes em cada caso.
Dado o interesse do estudo pelo caráter do local de internação, incluiu-se a variável ‘instituição notificadora do caso’ (pública; privada). As instituições particulares e as filantrópicas foram categorizadas como ‘instituição notificadora privada’, e as unidades de pronto-atendimento (UPAs) e hospitais públicos, como ‘instituição notificadora pública’.
A variável definida como desfecho do estudo, descrita no início desta seção de métodos, tem como categorias ‘alta’ hospitalar e ‘óbito’ por COVID-19.
Realizaram-se análises estatísticas descritivas de percentuais para as variáveis categóricas, calculou-se a média e o desvio-padrão para a variável ‘idade’ e verificou-se possível associação entre as variáveis estudadas e o desfecho – alta ou óbito – pelo teste qui-quadrado de Pearson; para a variável ‘idade’, aplicou-se o teste t de Student. Posteriormente, foram calculados as odds ratios (OR), brutas e ajustadas, e estimados os intervalos de confiança de 95% (IC95%) pelo modelo de regressão logística. Todas as variáveis com nível de significância até 10% foram incluídas no modelo. Foram construídos dois modelos ajustados: o modelo A, com a inclusão da variável ‘instituição notificadora’, e o modelo B, não a incluindo, por ser considerada uma possível variável de confusão na análise do desfecho ‘óbito’ ou ‘alta’. O nível de significância adotado no estudo foi de 5%.
Considerando-se o tamanho da amostra, a razão de 1,1 entre indivíduos internados com desfecho ‘alta’ ou ‘óbito’, uma diferença de 20% na ocorrência do desfecho entre os dois grupos e a admissão de um nível de significância de 5%, o poder para as associações estudadas foi calculado em 98%.
As análises dos dados foram conduzidas pelo programa Statistical Package for the Social Sciences (SPSS), versão 20.0.
O projeto do estudo foi submetido ao Comitê de Ética em Pesquisa do Centro de Ciências da Saúde da Universidade Federal do Espírito Santo (CEP/CCS/UFES) e aprovado sob o Parecer nº 3.908.434, emitido em 20 de maio de 2020. Como se trata de um estudo baseado em dados secundários, houve dispensa de obtenção do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE).
Resultados
Até 14 de maio de 2020, internaram-se nos hospitais do Espírito Santo 889 pessoas com confirmação do diagnóstico para COVID-19, sendo a primeira internação ocorrida em 26 de fevereiro, e o primeiro óbito em 20 de março. Os dados de internação por COVID-19 nos hospitais públicos e privados do estado são apresentados na Figura 1. No estudo, foram analisadas as pessoas cujos desfechos se encerraram até 14 de maio de 2020: 200 indivíduos que receberam alta e 220 indivíduos que foram a óbito.
A Tabela 1 apresenta o perfil das pessoas internadas: 57,1% eram do sexo masculino, 46,4% tinham mais de 60 anos de idade e 81,7% residiam na região metropolitana de Vitória. Em 33,5% das pessoas com COVID-19 internadas, faltava a informação da raça/cor da pele, 57,9% foram notificados por instituição privada e 61,7% apresentaram pelo menos uma comorbidade.
Variável | Totala | Grupo ‘alta’ | Grupo ‘óbito’ | p-valorb | |||
---|---|---|---|---|---|---|---|
| |||||||
n | % | n | % | n | % | ||
Sexo | |||||||
Feminino | 180 | 42,9 | 82 | 45,6 | 98 | 54,4 | 0,463 |
Masculino | 240 | 57,1 | 118 | 49,2 | 122 | 50,8 | |
Faixa etária (anos) | |||||||
≤30 | 40 | 9,5 | 33 | 82,5 | 7 | 17,5 | 0,001 |
31-40 | 44 | 10,5 | 36 | 81,8 | 8 | 18,2 | |
41-50 | 58 | 13,8 | 38 | 65,5 | 20 | 34,5 | |
51-60 | 83 | 19,8 | 42 | 50,6 | 41 | 49,4 | |
>60 | 195 | 46,4 | 51 | 26,2 | 144 | 73,8 | |
Raça/cor da pele | |||||||
Preto/pardo | 158 | 37,6 | 63 | 39,9 | 95 | 60,1 | 0,509 |
Não preto/pardo | 121 | 28,8 | 53 | 43,8 | 68 | 56,2 | |
Sem informação | 141 | 33,5 | |||||
Município de residência | |||||||
Região metropolitana de Vitória | 343 | 81,7 | 165 | 48,1 | 178 | 51,9 | 0,674 |
Interior | 77 | 18,3 | 35 | 45,5 | 42 | 54,5 | |
Instituição notificadora | |||||||
Pública | 175 | 41,7 | 35 | 20,0 | 140 | 80,0 | 0,001 |
Privada | 243 | 57,9 | 165 | 67,9 | 78 | 32,1 | |
Doenças pulmonares | |||||||
Sim | 35 | 8,3 | 12 | 34,3 | 23 | 65,7 | 0,094 |
Não | 381 | 90,7 | 187 | 49,1 | 194 | 50,9 | |
Doenças cardiológicas | |||||||
Sim | 188 | 44,8 | 66 | 35,1 | 122 | 64,9 | 0,001 |
Não | 227 | 54,0 | 134 | 59,0 | 93 | 41,0 | |
Doenças renais | |||||||
Sim | 19 | 4,5 | 3 | 15,8 | 16 | 84,2 | 0,004 |
Não | 396 | 94,3 | 196 | 49,5 | 200 | 50,5 | |
Hepatites | |||||||
Sim | 7 | 1,7 | – | 0,0 | 7 | 100,0 | 0,011 |
Não | 408 | 97,1 | 198 | 48,5 | 210 | 51,5 | |
Diabetes mellitus | |||||||
Sim | 101 | 24,0 | 33 | 32,7 | 68 | 67,3 | 0,001 |
Não | 314 | 74,8 | 166 | 52,9 | 148 | 47,1 | |
Doenças imunológicas | |||||||
Sim | 14 | 3,3 | 2 | 14,3 | 12 | 85,7 | 0,010 |
Não | 401 | 95,5 | 197 | 49,1 | 204 | 50,9 | |
HIVc | |||||||
Sim | 4 | 1,0 | – | 0,0 | 4 | 100,0 | 0,054 |
Não | 411 | 97,9 | 199 | 48,4 | 212 | 51,6 | |
Neoplasias | |||||||
Sim | 15 | 3,6 | 2 | 13,3 | 13 | 86,7 | 0,006 |
Não | 401 | 95,5 | 197 | 49,1 | 204 | 50,9 | |
Tabagismo | |||||||
Sim | 28 | 6,7 | 8 | 28,6 | 20 | 71,4 | 0,032 |
Não | 386 | 91,9 | 191 | 49,5 | 195 | 50,5 | |
Cirurgia bariátrica | |||||||
Sim | 2 | 0,5 | 1 | 50,0 | 1 | 50,0 | 0,945 |
Não | 408 | 97,1 | 194 | 47,5 | 214 | 52,5 | |
Obesidade | |||||||
Sim | 36 | 8,6 | 12 | 33,3 | 24 | 66,7 | 0,073 |
Não | 374 | 89,0 | 183 | 48,9 | 191 | 51,1 | |
Tuberculose | |||||||
Sim | 1 | 0,2 | 1 | 100,0 | – | – | 0,296 |
Não | 415 | 98,8 | 198 | 47,7 | 217 | 52,3 | |
Neurológicas crônicas | |||||||
Sim | 18 | 4,3 | 2 | 11,1 | 16 | 88,9 | 0,001 |
Não | 398 | 94,8 | 197 | 49,5 | 201 | 50,5 | |
Número de comorbidades | |||||||
0 | 161 | 38,3 | 108 | 67,1 | 53 | 32,9 | 0,001 |
1 | 111 | 26,4 | 54 | 48,6 | 57 | 51,4 | |
2 | 93 | 22,1 | 27 | 29,0 | 66 | 71,0 | |
3 | 39 | 9,3 | 8 | 20,5 | 31 | 79,5 | |
≥4 | 16 | 3,9 | 3 | 18,8 | 13 | 81,2 |
a) A soma total pode não fechar em 100% por não considerar os dados faltantes.
b) p-valor do teste qui-quadrado de Pearson.
c) HIV: vírus da imunodeficiência humana (human immunodeficiency virus, HIV).
Revelaram-se fatores associados ao óbito (i) a faixa etária mais alta, (ii) ser notificado por instituição pública, (iii) o número de comorbidades e (iv) a existência de algumas das doenças/agravos específicas (cardíacas, renais, hepatites, diabetes mellitus, imunológicas, infecção pelo HIV, neoplasias, tabagismo, neurológicas crônicas).
A média de idade foi de 47,4 anos (DP=18,8) para o grupo das pessoas que receberam alta, e de 66,5 anos (DP=17,2) para o grupo de pessoas que foram a óbito (teste t de Student; p=0,001). Foram observadas maiores idades no grupo ‘óbito’ (Figura 2).
Na Tabela 2, constata-se a associação, estatisticamente significante, entre a instituição notificadora, a faixa etária e diversas comorbidades: indivíduos notificados por instituições públicas eram mais velhos (mais de 60 anos) e apresentavam mais comorbidades.
Variável | Instituição notificadora | ||||
---|---|---|---|---|---|
| |||||
Pública | Privada | p-valora | |||
| |||||
n | % | n | % | ||
Sexo | |||||
Feminino | 72 | 41,1 | 106 | 43,6 | 0,613 |
Masculino | 103 | 58,9 | 137 | 56,4 | |
Faixa etária (anos) | |||||
≤30 | 13 | 7,4 | 27 | 11,1 | 0,001 |
31-40 | 7 | 4,0 | 37 | 15,2 | |
41-50 | 20 | 11,4 | 37 | 15,2 | |
51-60 | 36 | 20,6 | 47 | 19,3 | |
>60 | 99 | 56,6 | 95 | 39,1 | |
Raça/cor da pele | |||||
Preto/pardo | 90 | 60,4 | 67 | 52,3 | 0,177 |
Não preto/pardo | 59 | 39,6 | 61 | 47,7 | |
Município de residência | |||||
Região metropolitana de Vitória | 143 | 81,7 | 199 | 81,9 | 0,963 |
Interior | 32 | 18,3 | 44 | 18,1 | |
Doenças pulmonares | 21 | 12,1 | 14 | 5,8 | 0,024 |
Doenças cardiológicas | 96 | 55,5 | 90 | 37,5 | 0,001 |
Doenças renais | 13 | 7,5 | 6 | 2,5 | 0,017 |
Hepatites | 7 | 4,0 | – | 0,0 | 0,002 |
Diabetes mellitus | 55 | 31,8 | 44 | 18,3 | 0,002 |
Doenças imunológicas | 10 | 5,7 | 3 | 1,3 | 0,010 |
HIVb | 3 | 1,7 | 1 | 0,4 | 0,177 |
Neoplasias | 4 | 2,3 | 11 | 4,6 | 0,220 |
Tabagismo | 21 | 12,2 | 7 | 2,9 | 0,001 |
Cirurgia bariátrica | 1 | 0,6 | 1 | 0,4 | 0,833 |
Obesidade | 15 | 8,6 | 20 | 8,5 | 0,979 |
Tuberculose | 1 | 0,6 | – | 0,0 | 0,240 |
Neurológicas crônicas | 3 | 1,7 | 15 | 6,3 | 0,026 |
Número de comorbidades | |||||
0 | 53 | 30,3 | 108 | 44,4 | 0,001 |
1 | 39 | 22,3 | 72 | 29,6 | |
2 | 47 | 26,9 | 46 | 18,9 | |
3 | 26 | 14,9 | 11 | 4,5 | |
≥4 | 10 | 5,7 | 6 | 2,5 |
a) P-valor do teste qui-quadrado de Peason.
b) HIV: vírus da imunodeficiência humana (human immunodeficiency virus, HIV).
Foram calculadas as razões de chance (odds ratios: OR), brutas e ajustadas, mediante regressões logísticas, considerando-se a inclusão (modelo A) ou não inclusão (modelo B) da variável ‘instituição notificadora’. Os resultados desses cálculos são apresentados na Tabela 3.
Variável | Odds ratio bruta | Modelo A Odds ratio ajustadaª | Modelo B Odds ratio ajustadab | |||||
---|---|---|---|---|---|---|---|---|
| ||||||||
OR | IC95%c | OR | IC95%c | OR | IC95%c | |||
Faixa etária (anos) | ||||||||
≤30 | 1,00 | 1,00 | 1,00 | |||||
31-40 | 1,05 | 0,34;3,21 | 1,87 | 0,53;6,55 | 1,14 | 0,36;3,62 | ||
41-50 | 2,48 | 0,93;6,60 | 2,43 | 0,79;7,47 | 2,20 | 0,79;6,08 | ||
51-60 | 4,60 | 1,83;11,57 | 4,33 | 1,50;12,46 | 3,90 | 1,49;10,18 | ||
>60 | 13,31 | 5,54;31,96 | 11,84 | 4,31;32,54 | 9,67 | 3,87;24,16 | ||
Instituição notificadora | ||||||||
Pública | 8,46 | 5,35;13,38 | 8,23 | 4,84;13,99 | ||||
Privada | 1,00 | 1,00 | ||||||
Doenças cardiológicas | 2,66 | 1,79;3,97 | ||||||
Doenças renais | 5,23 | 1,50;18,22 | ||||||
Diabetes mellitus | 2,31 | 1,44;3,70 | ||||||
Doenças imunológicas | 5,79 | 1,28;26,22 | ||||||
Neoplasias | 6,28 | 1,40;28,17 | ||||||
Tabagismo | 2,45 | 1,05;5,69 | ||||||
Neurológicas crônicas | 7,84 | 1,78;34,55 | ||||||
Número de comorbidades | ||||||||
0 | 1,00 | 1,00 | ||||||
1 | 2,15 | 1,31;3,53 | 1,70 | 0,92;3,16 | 1,42 | 0,82;2,46 | ||
2 | 4,98 | 2,86;8,68 | 2,74 | 1,40;5,34 | 2,85 | 1,55;5,22 | ||
3 | 7,90 | 3,40;18,36 | 2,90 | 1,07;7,81 | 4,87 | 1,97;12,03 | ||
≥4 | 10,19 | 2,16;48,17 | 4,13 | 0,88;19,39 | 4,71 | 1,19;18,63 |
a) Incluídas todas as variáveis com p>0,10.
b) Não incluída a variável ‘instituição notificadora’.
c) IC95%: intervalo de confiança de 95%.
No modelo A, em que se incluiu a variável ‘instituição notificadora’, mostraram-se associadas as faixas etárias de 51 a 60 anos (OR=4,33 – IC95% 1,50;12,46) e mais de 60 anos (OR=11,84 – IC95% 4,31;32,54), a notificação por instituição pública (OR=8,23 – IC95% 4,84;13,99) e o número de comorbidades (duas [OR=2,74 – IC95% 1,40;5,34] e três [OR=2,90 – IC95% 1,07;7,81]). No modelo B, para o qual foi retirada a variável ‘instituição notificadora’, o risco entre as faixas etárias diminuiu, enquanto mantiveram-se significantes as associações com as idades de 51-60 (OR=3,90 – IC95% 1,49;10,18) e >60 anos (OR=9,67 – IC95% 3,87;24,16). Quanto ao número de comorbidades, o risco aumentou com a presença de duas (OR=2,85 – IC95% 1,55;5,22;), três (OR=4,87 – IC95% 1,97;12,03) e quatro ou mais comorbidades (OR=4,71 – IC95% 1,19;18,63), sugerindo uma mudança de efeito (no modelo A) por conta da inclusão dessa variável intermediária.
Discussão
No Espírito Santo, até 14 de maio de 2020, as pessoas internadas com COVID-19 e que tiveram desfecho de sua internação foram, majoritariamente, do sexo masculino, de idade acima de 50 anos, residentes da região metropolitana de Vitória, internadas em instituições privadas e com pelo menos uma doença/agravo associado. Entretanto, os óbitos foram mais frequentes nas instituições públicas.
Cumpre registrar as limitações ao estudo inerentes à utilização de dados secundários, dependentes da qualidade dos registros pelas unidades notificadores. Ademais, o estudo pode-se ressentir de algum confundimento residual, decorrente da limitação ou ausência de dados/variáveis: por exemplo, inexistência de registro do ‘tempo transcorrido até o acesso ao serviço de saúde’. Contudo, é importante salientar que foram incluídos todos os casos de internação por COVID-19 no período considerado, e que o desfecho do estudo, óbito ou alta, é robusto e dificilmente incorre em erros de classificação.
O modelo A de regressão logística ajustado revelou que as pessoas internadas na rede pública hospitalar tiveram uma chance superior a 8 vezes de morrer, quando comparadas àquelas internadas na rede privada. Já o modelo B, com a não inclusão da variável ‘instituição notificadora’, permitiu observar que, de fato, acentuou-se a associação das comorbidades com o óbito, conforme relatos de outros estudos.(10)
Percebe-se que não foi o fato de estar internado em uma instituição pública ou privada que determinou o desfecho ‘óbito’ e sim as condições prévias à entrada no sistema de saúde, entre as quais as comorbidades associadas à COVID-19, como tabagismo, diabetes mellitus, hipertensão e obesidade, entre outras.(12) O tabagismo, por exemplo, enquanto um comportamento reconhecido como mais prevalente na população brasileira de baixa renda,(14)mostrou-se mais prevalente em indivíduos notificados por instituições públicas. É possível que o tabagismo contribua para uma pior evolução da COVID-19, uma vez que, além do dano pulmonar, o hábito de fumar está associado às doenças cardiovasculares, incluindo a predisposição para trombose.(15)
Da mesma forma, foi observado maior número de comorbidades e média de idade superior em casos atendidos por instituições públicas e que evoluíram para óbito. Se é razoável supor a presença de maior número de comorbidades entre pessoas de maior média de idade, também é preciso questionar se, de fato, indivíduos provenientes da rede pública chegaram em estado mais grave, se a prevenção e controle das comorbidades nas instituições públicas é menos adequada. Sob essa perspectiva, conclui-se que o SUS, dotado de capilarizada rede de Atenção Primária, tem papel fundamental na prevenção e controle dessas doenças.(16)
Em dezembro de 2019, cerca de 156 milhões de brasileiros (nada menos que 75% da população do país, de 208 milhões) eram assistidos pela Atenção Básica à Saúde. Na região Nordeste, essa cobertura compreendia 48 milhões (85%) dos 57 milhões de nordestinos.(18)Tais dados, per se, já corroboram a magnitude da população brasileira pobre, considerando-se que as classes média e alta contratam planos de saúde ou pagam diretamente por serviços de saúde privados. É importante, todavia, reconhecer que todos os brasileiros utilizam o SUS, alguns de forma exclusiva, outros como complementação aos planos privados por eles contratados.(19)
Diante desses dados e dos resultados do presente estudo, é importante salientar o impacto das desigualdades em saúde na população mais vulnerável, com mais dificuldade para perceber a importância do autocuidado, do acesso aos serviços de saúde e aos níveis de maior complexidade no SUS como seu direito adquirido.
Outrossim, as comorbidades reveladas pelas mortes por COVID-19 aprofundam ainda mais o imenso fosso entre ricos e pobres na efetivação da saúde como direito de todos. As desigualdades socioeconômicas geram impactos profundos na estrutura social. O estado do Espírito Santo, precisamente no auge de seu processo de urbanização, no período entre fins da década de 1970 e os primeiros anos 1980, sofreu da ausência de políticas sociais e de um planejamento territorial-urbano adequado. Segundo Lira & Monteiro,(20) esses seriam alguns dos possíveis fatores determinantes dos sérios problemas de ordem socioeconômica observados, especialmente no espaço das cidades: ocupação irregular do solo, aumento do desemprego e ineficiência dos serviços básicos de saúde e educação prestados a uma população urbana em crescimento acelerado, naquele período. O processo de urbanização capixaba indica que algumas de suas nuanças favoreceram o encadeamento de processos e fatores de aprofundamento da desigualdade territorial, da degradação urbana e da qualidade de vida e saúde na cidade.
No Brasil, o acesso a uma Saúde Pública de qualidade, integral e equânime, é reconhecido e garantido como um Direito Universal. Não obstante, condições outras como o desfinanciamento, da ordem de 1,7 bilhões de reais, promovido entre os anos de 2014 e 2015, agravado pela Emenda Constitucional (EC) no 95, publicada em 2016, que estabeleceu, entre outras medidas, o teto do gastos públicos com saúde, implicam evidentes restrições à consecução das atividades regulares do SUS,(21) dificultando ainda mais uma resposta adequada à pandemia, especialmente quando o sistema de saúde é demandado pela Opinião Pública a se apresentar como protagonista, único efetivamente compromissado com a garantia constitucional do Direito à Saúde. Dentro de um contexto e fenômeno social iníquo como o presente, a existência do SUS é fator determinante na medida em que, ao minimizar os riscos à saúde, pode evitar um impacto proporcionalmente maior e, em situação extrema, a extinção de contingentes socialmente mais vulneráveis. Neste momento de emergência em saúde provocado pela COVID-19, o SUS deve ser objeto de reflexão da sociedade e defesa de seu realinhamento com o espírito e as razões pelas quais foi criado com a Constituição de 1988, uma das principais bandeiras da Nova República democrática.
A pandemia enfatiza a necessidade de criar mecanismos legais, para pleno financiamento do Sistema Único de Saúde, de forma à Nação Brasileira estar mais preparada para as próximas situações de crise sanitária, previsíveis em um mundo cada vez mais globalizado. Certamente, uma questão de tempo.