Introdução
O envelhecimento está associado a mudanças na composição corporal, reveladas pela redução da massa magra, aumento da massa gorda e redistribuição destes tecidos no corpo, com maior acúmulo de gordura intra-abdominal e intramuscular.1 Dados do Framingham Heart Study (2002-2005) mostram que tanto o tecido adiposo subcutâneo quanto o intra-abdominal/visceral estão correlacionados com fatores de risco cardiometabólicos, especialmente nas mulheres; considerando-se a gordura subcutânea, verificou-se forte correlação com a circunferência da cintura (CC) ( r =0,87 e r =0,88) e com o índice de massa corporal (IMC) ( r =0,88 e r =0,83) em mulheres e homens, respectivamente.3
Diferentes medidas antropométricas são utilizadas na prática clínica e em estudos epidemiológicos para se avaliar a adiposidade corporal, por sua praticidade e baixo custo, como a CC, a IMC e a razão cintura/estatura (RCE). Apontamos, no parágrafo seguinte, algumas características dessas medidas.
O IMC não diferencia massa magra de massa gorda, nem avalia a distribuição da gordura corporal; além disso, a perda de tecido muscular afeta sua validade como indicador de adiposidade em idosos, independentemente de mudanças no peso.4 A CC representa o acúmulo de gordura abdominal, sendo fortemente correlacionada com o tecido adiposo visceral, avaliado por métodos de imagem, a exemplo da tomografia computadorizada.4 A RCE foi proposta como indicador de adiposidade central mais robusto do que a CC, por resultar em estimativa não enviesada pela estatura.6
O uso dessas medidas na população idosa demanda a definição de pontos de corte (PC) que considerem as mudanças na composição corporal decorrentes do envelhecimento. Diversos critérios são utilizados para classificar o estado nutricional de idosos a partir do IMC, não havendo consenso na literatura quanto aos PC adotados.7 Quanto à CC, o Ministério da Saúde não apresenta PC específicos para idosos, somente para adultos em geral.8 Em relação à RCE, em 2017 foi proposto um PC como marcador de excesso de peso em idosos brasileiros (idade ≥60 anos), usando-se duas classificações de IMC como referência antropométrica.11 Utilizando informações de uma coorte iniciada em 2008, pesquisadores propuseram PC de CC para o diagnóstico de obesidade em idosos (≥60 anos) usuários do Sistema Único de Saúde (SUS), de Goiânia/GO.12 Apesar da relevância, são raros os estudos na literatura que definiram PC específicos para idosos para relacionar com o excesso de peso.
Considerando-se as mudanças na composição corporal, o objetivo deste estudo foi identificar pontos de corte para CC e RCE com melhor sensibilidade, especificidade e acurácia para discriminar idosos com excesso de peso por sexo, utilizando três critérios de índice de massa corporal como referência antropométrica.
Métodos
Estudo transversal multicêntrico sobre Fragilidade em Idosos Brasileiros (Fibra, 2008/2009). O estudo Fibra foi conduzido com idosos da comunidade, residentes nas áreas urbanas de sete cidades brasileiras, a saber: Campinas/SP, Belém/PA, Poços de Caldas/MG, Ermelino Matarazzo/SP, Campina Grande/PB, Parnaíba/PI e Ivoti/RS.
As cidades foram selecionadas por conveniência. Em cada cidade, as amostras foram obtidas por meio de conglomerados e em dois estágios: setor censitário e domicílio. Os critérios de elegibilidade foram: ter idade ≥65 anos; ser morador permanente no domicílio/setor censitário; e não ter comprometimentos graves de cognição, saúde física, comunicação e mobilidade (como os acamados e com sequelas graves de acidente vascular encefálico). A descrição e demais informações sobre amostragem, as cotas estimadas e obtidas por idade e sexo em cada cidade e a realização do campo da pesquisa encontram-se publicadas.13
As variáveis de interesse foram o sexo (masculino; feminino) e as medidas de peso, estatura e CC, aferidas conforme protocolos clássicos.14
Para a aferição do peso, estando com roupas leves, sem objetos nos bolsos, descalço, o idoso era posicionado em pé sobre a plataforma da balança, de frente para a escala, ereto, com o olhar fixo para a frente, com os pés paralelos e ligeiramente afastados. Para a estatura, o idoso deveria estar descalço, posicionado em pé, ereto, de costas para a escala, com os pés unidos e com a cabeça mantida no Plano de Frankfurt.
O peso e a estatura foram usados para calcular o IMC [peso (kg)/altura2(m)]. Para a avaliação do excesso de peso (sobrepeso/obesidade), os valores de IMC foram dicotomizados segundo os PC dos critérios: NSI (IMC >27 kg/m2 ),7 preconizado pelo Ministério da Saúde/Sisvan;8 OPAS (IMC ≥28kg/m2);9 e OMS (IMC ≥25kg/m2).10
Para aferir a CC, o avaliado deveria estar em pé. Posicionado de frente para o idoso, o entrevistador passava a fita métrica em volta do corpo do participante, no ponto médio entre a borda inferior da última costela e a crista ilíaca.14
A RCE foi determinada pela divisão do valor da CC pela estatura, em centímetros. Uma revisão sistemática detectou PC de 0,5 para RCE como marcador de risco cardiometabólico para adultos em geral.15 O presente estudo se propôs a estabelecer PC de RCE específicos para idosos de ambos os sexos, considerando-se as alterações que ocorrem na composição corporal por fatores fisiológicos, metabólicos, socioeconômicos e psicológicos.16
Para as análises, foram utilizados gráficos de curvas ROC para definir os PC para CC e RCE correspondentes à condição de excesso de peso, segundo três critérios de classificação do IMC. A sensibilidade (proporção de teste diagnóstico positivo entre os indivíduos que apresentaram a condição de interesse), a especificidade (proporção de teste diagnóstico negativo entre os indivíduos que não apresentaram a condição) e a acurácia (a proporção de acertos de um teste diagnóstico) foram obtidas utilizando-se o software Stata. Considerou-se como condição de interesse o sobrepeso/obesidade. Também foram feitas comparações de proporções por meio do teste do qui-quadrado de Pearson, considerando-se nível de significância de 5% e calculados intervalos de confiança de 95% (IC95%). As análises estatísticas foram feitas com uso do programa Stata, versão 14.0.
O Estudo Fibra foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Estadual de Campinas em 22 de maio de 2007 e registrado na Plataforma Brasil (Parecer: 208/2007; Certificado de Apresentação para Apreciação Ética – CAAE: 39547014.0.1001.5404). Os idosos assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido.
Resultados
Os dados referem-se a 3.477 idosos, dos quais 67,7% eram mulheres (n=2.353). As idades variaram entre 65 e 97 anos com média de 73,3 anos nos idosos, e entre 65 e 101 anos com média de 72,8 anos nas idosas. Os homens tiveram média de IMC de 26,2kg/m2 (IC95%26,0-26,5), e as mulheres, de 27,4 kg/m2 (IC95%27,2-27,6). Em relação à proporção de excesso de peso, observou-se diferença significativa entre os sexos: as proporções entre as mulheres foram de 51,4%, 42,9% e 67,7%, e entre os homens, de 40,0%, 31,0% e 60,3%, de acordo com os critérios NSI, OPAS e OMS, respectivamente (p<0,001).
Os PC obtidos para CC, utilizando-se os critérios da OMS, NSI e OPAS, foram iguais a 86,5cm, 88,7cm e 91,5cm nas mulheres, e iguais a 93,0cm, 96,0cm e 97,5cm nos homens. Para ambos os sexos, o critério da NSI resultou em estimativas pontuais mais elevadas para a sensibilidade, os quais corresponderam aos PC de 88,7cm para as idosas e de 96,0cm para os idosos ( Tabela 1 ), sem diferença estatisticamente significativa, com sobreposição dos IC95%. Quanto à RCE, os PC foram de 0,57, 0,58 e 0,59 no sexo feminino, e 0,56, 0,58 e 0,59 no sexo masculino, considerando-se os critérios OMS, NSI e OPAS. Nas mulheres, a especificidade e o valor preditivo positivo (VPP) foram maiores pela classificação da OMS. Nos homens, o critério da OPAS apresentou maior sensibilidade, e o da OMS, maior VPP ( Tabela 1 ).
Sexo | Ponto de corte | Sensibilidade (%) | Especificidade (%) | Área sob a curva (IC95%) | Valor preditivo positivo (%) |
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Circunferência da cintura (CC) | |||||
| |||||
Feminino | ≥86,5a | 79,39 | 79,02 | 0,87 (0,86;0,89) | 88,82 |
≥88,7b | 83,00 | 76,69 | 0,87 (0,85;0,88) | 79,03 | |
≥91,5c | 75,71 | 82,12 | 0,87 (0,85;0,88) | 76,10 | |
| |||||
Masculino | ≥93,0a | 80,42 | 82,39 | 0,89 (0,87;0,91) | 87,41 |
≥96,0b | 83,72 | 83,16 | 0,90 (0,88;0,92) | 76,85 | |
≥97,5c | 81,55 | 84,05 | 0,90 (0,88;0,92) | 69,72 | |
| |||||
Razão cintura/estatura (RCE) | |||||
| |||||
Feminino | ≥0,57a | 79,03 | 81,54 | 0,87 (0,85;0,88) | 89,99 |
≥0,58b | 80,42 | 78,28 | 0,87 (0,86;0,89) | 79,67 | |
≥0,59c | 79,49 | 79,06 | 0,87 (0,86;0,87) | 74,06 | |
| |||||
Masculino | ≥0,56a | 82,63 | 81,94 | 0,90 (0,88;0,92) | 87,43 |
≥0,58b | 82,26 | 85,84 | 0,91 (0,89;0,93) | 79,50 | |
≥0,59c | 88,02 | 83,66 | 0,92 (0,91;0,94) | 70,81 |
a) Ponto de corte considerando a categoria de sobrepeso/obesidade proposto pela OMS (IMC ≥25 Kg/m2).
b) Ponto de corte considerando a categoria de sobrepeso proposto pela NSI/Lipschitz (IMC >27 Kg/m2).
c) Ponto de corte considerando a categoria de sobrepeso/obesidade proposto pela OPAS (IMC ≥28 Kg/m2).
Embora expressivos para ambos os sexos, os valores da área sob a curva (acurácia global) não são estatisticamente diferentes, com sobreposição dos IC95% ( Tabela 1 , Figura 1 ). Para a RCE, a acurácia global foi de 0,87 para os três critérios de classificação de IMC nas mulheres e, entre os homens, variou de 0,90 (OMS) a 0,92 (OPAS). Por sua vez, para a CC, os valores de acurácia global foram de 0,87 nas mulheres e em torno de 0,90 nos homens. Em ambos os sexos, não foram detectadas diferenças significativas para os resultados de área sob a curva, dada a sobreposição dos IC95% ( Tabela 1 , Figura 2 ).
Discussão
Os principais achados foram: verificar PC de CC e RCE para o diagnóstico do excesso de peso em idosos segundo três critérios de classificação do IMC; os valores de corte obtidos com os critérios da NSI e da OPAS mostraram-se maiores comparados ao da OMS, mas sem diferenças significativas.
O excesso de peso foi superior nas mulheres, em todas as referências de IMC, resultado amplamente descrito na literatura,18 explicado por diferenças fisiológicas que determinam o acúmulo e a redistribuição de gordura no envelhecimento.1 Para ambos os sexos, os critérios de IMC produziram valores de CC e RCE similares. Os PC detectados para CC foram superiores aos estabelecidos pela OMS para a população adulta (homens ≥94cm; mulheres ≥80cm).10 Analisando uma amostra de idosos usuários do SUS de Goiânia/GO, com idade ≥60 anos, Silveira et al.12 propuseram PC de CC de 98,8cm no sexo masculino e 90,5cm no sexo feminino. Os PC obtidos neste estudo ficaram entre 6,5cm e 11,5cm superiores ao recomendado pela OMS para mulheres, e entre menos 1cm e mais 3,5cm do PC estabelecido para homens adultos, em geral. Em relação ao PC proposto por Silveira et al.,12 este estudo identificou diferenças em torno de 1cm para homens e mulheres, considerando-se o PC de CC resultante do critério da OPAS.
Quanto à RCE, foram identificados PC que se aproximaram do 0,55 encontrado por Corrêa et al.11 em 2008/2009, em uma amostra representativa da população brasileira (≥60 anos), com características sociodemográficas semelhantes àquelas dos idosos incluídos nesta pesquisa. O estudo de Corrêa et al.11 foi o primeiro no Brasil a detectar o PC da RCE para identificação do excesso de peso em idosos, utilizando os critérios de classificação do IMC da NSI e OMS como referência antropométrica. O presente estudo agrega informações à literatura e pode contribuir para ampliar a discussão científica sobre o uso dessas medidas antropométricas em idosos.
Comparada ao IMC, a CC é um preditor mais robusto de mortalidade e risco de doença cardiovascular.2 Dados de coortes prospectivas detectaram maior incidência de doença cardíaca em indivíduos com excesso de peso (IMC ≥25kg/m2) e com CC aumentada (≥94cm; ≥80cm),4 e maior risco de mortalidade geral e por causas específicas com o aumento da CC e do IMC.21 O uso da RCE tem sido recomendado em substituição às medidas de CC e IMC (isoladas ou combinadas), por apresentar superioridade na predição de fatores de risco cardiometabólicos.5
Como limitação, deve-se considerar um possível viés de seleção. O Estudo Fibra fez opção por idosos que compareceram aos locais de coleta de dados por seus próprios meios, tornando provável a participação majoritária do estrato com maior competência física, excluindo os idosos acamados e com sequelas graves de acidente vascular encefálico.
Conclui-se que, independentemente do critério de IMC usado para a definição de excesso de peso, os PC para CC e RCE foram similares. Na avaliação antropométrica dos idosos, devem-se considerar PC mais adequados ao seu perfil nutricional. Avanços neste campo da ciência podem contribuir para o melhor diagnóstico de doenças crônicas relacionadas à obesidade no âmbito populacional e ambulatorial. Entre as implicações para os serviços de saúde, destaca-se a aplicação de PC mais acurados para o diagnóstico e a vigilância de idosos com risco cardiometabólico.