Introdução
Estamos vivenciando a pandemia do novo coronavírus (SARS-CoV-2), causador da COVID-19, cujas evidências e experiências mundiais acrescem conhecimento diariamente, auxiliando a tomada de decisões de âmbito coletivo em prol da saúde e das vidas humanas. 1 Até 27 de junho de 2020, segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), houve aproximadamente 9,8 milhões de infectados no mundo, com mais de 495 mil mortes em decorrência da COVID-19. 2
Medidas de controle foram adotadas na maioria dos países, de maneiras e em tempos diversos, resultando em desfechos desiguais em termos de incidência e letalidade da doença. 3 Entre as estratégias implementadas, medidas de restrição de contato social somaram-se ao isolamento de casos e rastreamento de contatos, além da divulgação à população de informações sobre o novo coronavírus, quanto aos aspectos epidemiológicos e preventivos. 3
Seguindo as orientações e preocupações mundiais, o Governo Federal do Brasil, por meio do Ministério da Saúde, declarou Emergência em Saúde Pública de Importância Nacional. 5 A Lei nº 13.979, de 6 de fevereiro de 2020, dispôs sobre as medidas para enfrentamento da emergência declarada. 6
No país, os primeiros casos confirmados foram divulgados em fevereiro de 2020. Trata-se de indivíduos que retornaram de viagens internacionais, principalmente da Europa. A mídia passou a informar diariamente o surgimento de novos casos suspeitos e foram recomendadas medidas de controle, de acordo com a situação epidemiológica local. 7 Em Santa Catarina, dois primeiros casos importados foram confirmados em 12 de março 8 e, no dia seguinte, houve o primeiro caso suspeito em Tubarão, no Sul do estado. 9 Nos dias subsequentes, já foi possível identificar transmissão comunitária na região de Laguna, a qual chegou a ser relacionada, no início de abril, como a sexta em maior incidência de casos no país. 10
Em 20 de março, a transmissão comunitária do SARS-CoV-2 foi declarada em todo o território nacional. 11 Apesar de nem todas as regiões apresentarem, ao mesmo tempo, as fases da epidemia e o mesmo nível de transmissão, medidas protetivas foram recomendadas para toda a população do país, em um esforço coletivo para conter o avanço da pandemia. O Ministério da Saúde solicitou que todos os estados e municípios adotassem medidas para promover o distanciamento social e evitar aglomerações, conhecidas como intervenções não farmacológicas. 7
Diante desse cenário, o presente artigo foi elaborado com o objetivo de descrever o processo de tomada de decisão local para o enfrentamento da COVID-19 em Tubarão e região, a partir de uma parceria estabelecida entre setor público, privado e universidade, traduzida em uma experiência de vigilância, prevenção e controle da epidemia do novo coronavírus.
Contextualização
O município de Tubarão, localizado 144km ao sul da capital de Santa Catarina, Florianópolis, é polo regional de comércio e serviços, e de atendimento em saúde; conta, ademais, como uma cidade universitária – espaço institucional com grande fluxo de pessoas de diversos estados brasileiros e de municípios vizinhos –, seccionada pela BR-101, rota entre o Aeroporto Humberto Bortoluzzi de Jaguaruna e o Porto de Imbituba. Dadas essas características, Tubarão foi um dos primeiros municípios do estado com registro de transmissão comunitária do SARS-CoV-2 e, no início da epidemia no país, chegou a ser considerada o terceiro epicentro da COVID-19 no Brasil. 12
Tubarão é sede da Associação dos Municípios da Região de Laguna (Amurel), 13 composta por 18 cidades e um total de aproximados 370 mil habitantes. Com base nas projeções do Imperial College 4 para diversos países, incluindo o Brasil, foi feita para a Amurel a seguinte estimativa: considerando-se que 80% da população (296 mil hab.) entrará em contato com o vírus em algum momento, 10% (29.600 hab.) serão sintomáticos, e destes, 16% 14 (4.736 hab.) com sintomas graves, muitos com necessidade de hospitalização e utilização de cuidados intensivos; assim é possível que os sistemas de saúde local sofram uma sobrecarga de demanda em seus serviços. Tubarão conta com 50 leitos em unidades de terapia intensiva (UTI), reservados a pacientes críticos, para atender a toda a região. Pela história natural da doença, o tempo de estada de um paciente em UTI é estimado em 15 a 21 dias, a depender de fatores do paciente e sua evolução clínica. 15 Portanto, se o adoecimento da população fosse simultâneo, seria impossível atender a todos. Além da escassez de leitos, vagas em UTI, respiradores e equipamentos de proteção individual (EPIs), faltam profissionais capacitados para lidar com tal morbidade.
As principais medidas adotadas, aqui relatadas, tiveram como objetivo diminuir a velocidade de propagação do vírus, de forma a preparar os serviços de saúde para o atendimento da demanda. 16 Deve-se considerar, ainda, que a região Sul do Brasil conta com o maior percentual de idosos, e cerca de 40% de sua população adulta apresenta alguma doença crônica. 17 Não obstante os dados de outros países revelarem maior mortalidade em pessoas idosas e/ou com comorbidades associadas, a falta de atendimento médico poderá revelar um cenário diferenciado no Brasil, dada sua desigualdade social. 18
Desde antes do registro do primeiro caso suspeito de COVID-19 em Santa Catarina, a Fundação Municipal de Saúde (FMS) de Tubarão tem articulado, junto a lideranças municipais e regionais, de organizações públicas e privadas, a criação de planos de ação e contingência para o enfrentamento da epidemia, com o objetivo de prevenir a projeção descrita.
A Figura 1 sumariza, temporalmente, as decisões tomadas no início da epidemia de COVID-19 em Tubarão e região.
Plano de ação
Atento ao cenário estadual, o município de Tubarão editou o Decreto nº 4.979 no dia 16 de março de 2020. Neste decreto, além da suspensão de atividades não essenciais, foram estabelecidas medidas específicas da FMS, como a criação do Comitê de Monitoramento da COVID-19, do Centro de Operações de Emergências Municipais em Saúde (COEMS) e do Plano de Contingência da Doença. Entre outras medidas, o município determinou:
- Suspensão das aulas presenciais na rede pública e privada.
- Limitação dos atendimentos eletivos nas unidades básicas de saúde (UBS), priorizando o atendimento dos casos suspeitos de COVID-19.
- Suspensão dos atendimentos presenciais da Administração Municipal, excetuados os essenciais.
- Cadastramento de cidadãos voluntários no enfrentamento à pandemia, incluindo alunos e professores da área de saúde da Universidade do Sul de Santa Catarina (Unisul).
- Criação de um centro de triagem de COVID-19 junto à Policlínica Municipal Centro.
- Disponibilização do Programa de Proteção e Defesa do Consumidor (Procon), Guarda Municipal, Defesa Civil e Departamento de Comunicação, entre outros, para serviços da Saúde Pública.
- Distribuição de cestas básicas para famílias carentes.
- Sanitização dos locais de acesso aos serviços de saúde.
- Alojamento no Centro de Treinamento do Clube Atlético Tubarão para profissionais de saúde.
- Cadastro e organização de doações recebidas por diferentes entidades e pessoas físicas.
- Esforço concentrado na aquisição de EPIs e álcool gel, e confecção própria de máscaras e aventais.
- Ampliação de atendimento a famílias carentes e moradores de rua pela Fundação Municipal de Desenvolvimento Social.
- Aquisição de mais de 7.600 testes rápidos para detecção de anticorpos contra a infecção do SARS-CoV-2, para os casos suspeitos da doença.
- Criação de sistema educacional especial para os alunos da rede municipal, on-line e com entrega de atividades.
- Planejamento para a criação de um hospital de campanha.
- Suspensão, por 60 dias, da cobrança de tarifa de água para a população de baixa renda.
Cabe ressaltar que essas medidas foram adotadas precocemente, pois, em alguns setores, a suspensão das atividades aconteceu antes da determinação do Decreto Estadual.
Comitê de Monitoramento da COVID-19
O Comitê de Monitoramento da COVID-19 é composto por profissionais e especialistas em saúde do município, com a responsabilidade de debater o assunto e orientar os gestores municipais nas questões relativas à pandemia. Sua equipe é formada por membros da FMS, representantes de hospitais e clínicas privadas e pesquisadores da Unisul.
O comitê atua em consonância com a Vigilância em Saúde do Município, incluindo a Vigilância Sanitária e Epidemiológica, que deverão, necessariamente, reportar quaisquer informações ao COEMS.
O comitê tem como função articular as ações do Plano de Contingência para a COVID-19 entre todos os serviços de saúde do município, construindo uma rede de atenção, prevenção e tratamento que propicie aos munícipes qualidade na prevenção, diagnóstico e suporte ambulatorial e hospitalar.
O comitê elaborou, em conjunto com os profissionais de clínicas e hospitais da região, um protocolo de uso de EPIs. Elaborado com base nas recomendações da OMS e da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), o comitê também levou em conta a disponibilidade de EPIs e a realidade dos serviços de saúde da cidade. Foram descritas as situações e profissionais que deveriam utilizá-los, e quais os tipos de proteção a serem utilizados por pacientes/acompanhantes dentro dos serviços de saúde. Também foi elaborado um protocolo de atendimento para as práticas clínicas, coleta de exames, definição de caso, classificação da gravidade da COVID-19 e condutas; este protocolo foi disponibilizado a todos os profissionais de saúde da região, mediante um aplicativo acessível na internet, possibilitando eventuais atualizações do protocolo simultaneamente, por todas as instituições participantes. O protocolo foi adotado por todos os serviços de saúde envolvidos, incluindo os dois hospitais da cidade, as UBS, o centro de triagem de COVID-19 e a maior clínica particular de Tubarão.
Capacitação da equipe e comunicação
Todos os funcionários da FMS e outros profissionais de saúde – médicos, enfermeiros e técnicos – de instituições do município foram capacitados para o manejo e prevenção do SARS-CoV-2. Os temas abordados nesse treinamento envolveram aspectos relativos à transmissão, diagnóstico e manejo clínico básico.
A capacitação na coleta de exames atendeu enfermeiros das unidades de saúde, clínicas e hospitais, de maneira a permitir a coleta descentralizada e oportuna dos exames, especialmente do teste de reação em cadeia da polimerase em tempo real (RT-PCR) para detecção do SARS-CoV-2. Aos demais funcionários, incluindo aqueles lotados nos setores administrativo, técnico, auxiliar e de serviços gerais, foram repassadas informações imprescindíveis para a segurança dos pacientes e dos próprios profissionais.
Quanto à forma de comunicação e transparência nas informações, com o objetivo de evitar fake news , a FMS criou um boletim informativo, com dados do monitoramento diário do COEMS e das internações hospitalares, em relatório consolidado, para divulgação pelo Departamento de Comunicação da prefeitura. Gravado pelo secretário municipal de saúde, o boletim diário informa a população e profissionais de saúde sobre casos e óbitos por COVID-19, além de outras orientações sobre a evolução da pandemia. Em parceria com a Unisul, foram realizadas entrevistas coletivas com a imprensa, em que foram apresentadas projeções estatísticas dos dados locais e regionais, a partir da análise diária dos casos e das ações realizadas, e prestados esclarecimentos à Opinião Pública. A transparência no repasse das informações resultou em um comportamento colaborativo entre os cidadãos, e na conscientização das mudanças necessárias à oferta de serviços essenciais e, posteriormente, não essenciais.
Durante a pandemia, foram elaborados materiais educativos sobre sinais e sintomas relacionados à infecção pelo novo coronavírus, protocolos de convivência com pessoas dos grupos de risco, cuidados ao chegar em casa, formas de prevenção, uso correto de EPIs e orientações sobre o isolamento social.
Centro de Operações de Emergências Municipais em Saúde (COEMS)
O COEMS é constituído por equipe de servidores da FMS, agentes da Vigilância em Saúde (Vigilância Sanitária e Epidemiológica) e da Atenção Básica (Estratégia Saúde da Família – ESF). Estes profissionais recebem informações clínicas e epidemiológicas de todos os casos suspeitos e confirmados de COVID-19 notificados no município, realizam seu monitoramento de forma regular e estão à disposição do público para esclarecimentos e solução de dúvidas, de segunda-feira a domingo, das 7 às 22 horas.
Toda pessoa com suspeita de infecção pelo SARS-CoV-2, ao entrar em contato com o COEMS, seja por telefone, seja referenciado pela ESF, Policlínica, laboratórios clínicos privados ou hospitais, passa a ser monitorada diariamente. Ressalta-se que o município optou, dada a inespecificidade do quadro clínico, 19 pela supernotificação e monitoramento de todo cidadão que apresentar qualquer sintoma possivelmente indicativo da COVID-19. O rastreamento e isolamento do caso e de seus contactantes controla a transmissibilidade viral.
Em caso de sintomas leves, é indicado o isolamento e realizado o monitoramento diário por parte da equipe, mediante contato telefônico, mensagens e videochamada pelo aplicativo WhatsApp. Este monitoramento é feito por médicos e estudantes de medicina da Unisul. Quando se faz necessário o uso de medicação ou a emissão de atestado médico, recomenda-se ao paciente procurar a UBS do seu bairro ou a Policlínica.
Na presença de sintomas graves, como febre alta persistente há mais de três dias, sonolência, falta de ar, hipotensão ou piora do estado geral, orienta-se à pessoa que se dirija ao hospital imediatamente, para receber o tratamento adequado. O monitoramento é fundamental para a verificação oportuna de casos que evoluam para maior gravidade e necessitem de cuidados diferenciados, em nível hospitalar.
Cabe ressaltar que todas as ações e protocolos foram resultado da parceria com a Unisul. A universidade avaliou os dados existentes, desenhou modelos preditivos, além de selecionar as evidências científicas existentes até o momento, no sentido de embasar a tomada de decisão dos gestores municipais.
A Figura 2 sumariza o fluxograma de atendimento a um caso suspeito, em Tubarão e região.
Outras iniciativas
Também nesse período, foi utilizado o sistema drive-thru na Campanha de Vacinação contra Influenza, e também na realização dos testes rápidos sorológicos contra o SARS-CoV-2 adquiridos pelo município. Devido à ausência de testes rápidos para todos, eles foram aplicados nos casos confirmados de COVID-19 – diagnosticados por RT-PCR ou por vínculo epidemiológico (para validar o teste) – e foi feita randomização entre pacientes sintomáticos monitorados pelo COEMS. Em etapa subsequente, iniciou-se a testagem aleatória da população assintomática, para predizer a imunidade coletiva.
Resultados
Após 100 dias da epidemia de SARS-CoV-2, havia 5.979 casos notificados, disponibilizados publicamente pela FMS em plataforma eletrônica. Os casos foram monitorados pelo COEMS, entre 16 de março e 26 de junho de 2020, e 431 deles (7,2%) foram confirmados por RT-PCR ou por testes rápidos sorológicos ou por vínculo epidemiológico. Dos casos confirmados, 79,6% já estavam curados, 18,3% continuavam em monitoramento domiciliar, três se encontravam hospitalizados em UTI e um em enfermaria. Houve cinco óbitos, resultando em uma letalidade de 1,2%. A Figura 3 apresenta um resumo dos testes diagnósticos realizados no município.
Sobre a parceria com a UNISUL, 199 alunos do curso de Medicina e Enfermagem tiveram atuação direta no enfrentamento da pandemia, como voluntários, além de atividades de seleção de evidências científicas, assessorados por 27 professores da graduação e pós-graduação, os quais também foram voluntários na Campanha de Vacinação contra Influenza e na aplicação de testes rápidos para COVID-19.
Considerações finais
A parceria com a Unisul, tanto pela participação de alunos e professores voluntários como de pesquisadores do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Saúde, na avaliação das medidas indicadas no combate à pandemia, tem sido fundamental para a inovação em saúde, sustentada por uma rede solidária de assistência, além de subsidiar tomadas de decisão pautadas em evidências científicas.
As lideranças do município de Tubarão, incluídas no Comitê de Monitoramento da COVID-19, acompanham diariamente a incidência da doença no mundo, no Brasil e em Santa Catarina. Tubarão foi o primeiro município do estado a adotar medidas de quarentena e isolamento social, em decisões assertivas e antecipadas, o que resultou no baixo número de internações hospitalares, incluindo UTI, e de óbitos, em contraste com as respostas de outras cidades brasileiras à emergência do novo coronavírus. 20 Embora continue a vivenciar a pandemia, o município de Tubarão e a região têm logrado êxito no enfrentamento da COVID-19.