Introdução
Um surto de COVID-19, iniciado em Wuhan, capital e maior cidade da província de Hubei, China, em dezembro de 2019, espalhou-se rapidamente pelo planeta. O aumento explosivo de casos afetou 5.934.936 pessoas e levou a 376.166 óbitos no mundo, de dezembro de 2019 até o final de maio de 2020.1 O primeiro caso de COVID-19 no Brasil foi identificado em 26 de fevereiro e, até o final de maio, haviam sido registrados 514.200 casos e 29.310 mortes no país.2
Em 30 de janeiro de 2020, a Organização Mundial da Saúde (OMS) declarou a epidemia de COVID-19 ‘emergência de importância internacional’ (ESPII), e, em 11 de março de 2020, foi declarada a pandemia.3 Diante da constatação de que as estratégias adotadas não eram suficientes para conter a proliferação da doença, medidas mais severas de Saúde Pública, incluindo o diagnóstico oportuno, o isolamento dos casos e a quarentena nas comunidades, foram recomendadas pela OMS aos países.4
A quarentena já fora adotada no controle das epidemias da síndrome respiratória aguda grave (SARS) e da síndrome respiratória do Médio Oriente (MERS), enquanto vilas inteiras, em muitos países da África Ocidental, foram colocadas em quarentena durante a ESPII de Ebola de 2014.5
Intervenções visando restringir os contatos com outras pessoas e conter o avanço da disseminação da epidemia são conhecidas como medidas de restrição de contato físico ou social.
Para evitar a sobrecarga dos sistemas de saúde6 e retardar a disseminação da COVID-19, vários países têm implementado medidas de restrição ao contato físico ou social, desde o fechamento de escolas e estabelecimentos comerciais até quarentenas de alcance nacional.7 As primeiras medidas de restrição de contato físico foram adotadas na China, onde foi imposta quarentena para cidades inteiras, de caráter maciço, portanto.8 Até maio de 2020, grande parte da população mundial se encontrava sob alguma forma de restrição, com o propósito de se evitar a aglomeração de pessoas.9
Intervenções visando restringir os contatos com outras pessoas e conter o avanço da disseminação da epidemia são conhecidas como medidas de restrição de contato físico ou social. ‘Quarentena’ consiste no isolamento de indivíduos saudáveis que tiveram contato com pacientes infectados ou estiveram em regiões com surtos da doença, e dura o período máximo de incubação de COVID-19. Lockdown (bloqueio total) é a medida mais rigorosa, imposta pelo Estado, e consiste em restringir ao máximo a circulação da população em lugares públicos, sendo permitido sair da residência apenas por motivos essenciais, como ir a uma consulta médica, farmácia ou supermercado.10
Em fevereiro de 2020, a chegada ao Brasil da pandemia provocada pela COVID-19 levou, igualmente, a uma série de iniciativas e recomendações para a proteção das pessoas. Tão logo registraram-se os primeiros óbitos pela doença, escolas e comércios não essenciais foram fechados, trabalhadores orientados a desenvolver suas atividades em casa, e algumas cidades e estados cerraram limites e divisas, respectivamente.
Em abril de 2020, elaborou-se um inquérito para a web, a ‘ConVid – Pesquisa de Comportamentos,’ com a finalidade de descrever as mudanças na vida dos brasileiros durante a pandemia do novo coronavírus. O presente artigo teve com o objetivo analisar a adesão da população às medidas de restrição de contato físico e disseminação da COVID-19 no Brasil.
Métodos
A ‘ConVid – Pesquisa de Comportamentos’11 foi realizada em âmbito nacional, pela Fundação Instituto Oswaldo Cruz (Fiocruz), em parceria com a Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e a Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), entre 24 de abril e 24 de maio de 2020. Trata-se de um inquérito de saúde, mediante apresentação de um questionário virtual, autopreenchido por celular ou computador com acesso à internet (https://convid.fiocruz.br/),11 para avaliar as mudanças ocorridas na vida dos brasileiros após a chegada da pandemia de COVID-19 ao país.
As questões propostas referiram-se às características sociodemográficas e às mudanças nos estilos de vida, nas atividades de rotina, no estado de ânimo e nas condições de saúde e acesso aos serviços de saúde durante a pandemia. Foram utilizadas questões validadas em inquéritos de saúde aplicados no Brasil anteriormente, como a Pesquisa Mundial de Saúde,12 a Pesquisa Nacional de Saúde (PNS)13 e estudo ‘Qualidade de Vida em Pacientes em Terapia Antirretroviral no Brasil’.14
Para a elaboração do referido questionário, utilizou-se o aplicativo Research Eletronic Data Capture (RedCap).15 As informações foram coletadas diretamente, pela internet, e armazenadas no servidor do Instituto de Comunicação e Informação Científica e Tecnológica em Saúde da Fiocruz. Os critérios de inclusão para participação na pesquisa foram ter 18 anos ou mais de idade e residir no território brasileiro durante a pandemia de COVID-19. Mais detalhes sobre a ‘ConVid – Pesquisa de Comportamentos’, bem como o questionário completo proposto, encontram-se no sítio eletrônico da pesquisa (https://convid.fiocruz.br/).11
O convite aos participantes seguiu um procedimento de amostragem em cadeia. Em uma primeira etapa desse processo, os pesquisadores do estudo escolheram um total de 200 outros pesquisadores, de diferentes estados do Brasil. Adicionalmente, cada pesquisador do estudo selecionou 20 pessoas da sua rede social, totalizando cerca de 500. As pessoas escolhidas na primeira etapa foram chamadas de “sementes”, ou seja, eram responsáveis por desencadear a rede de convidados. Após responder ao questionário, as “sementes” constituíram a primeira onda da cadeia de recrutamento. As “sementes” enviaram o link da pesquisa para pelo menos 12 pessoas de suas redes sociais, obedecendo a uma estratificação por sexo, faixa de idade (em anos: 18 a 39; 40 a 59; 60 ou mais) e grau de escolaridade (ensino médio incompleto ou menos; ensino médio completo ou mais); ou seja, convidaram ao menos três pessoas em cada um dos 12 estratos. As pessoas convidadas pelas “sementes” compuseram a segunda onda da cadeia de recrutamento. A cada pessoa da segunda onda foi solicitado que convidasse pelo menos outras três pessoas de suas redes sociais, e assim por diante. Ao final do período de coleta das informações – 24 de abril a 24 de maio de 2020 –, o tamanho total atingido da amostra foi de 45.161 pessoas.
O desfecho do estudo foi definido pela seguinte pergunta, apresentada no questionário:
Durante a pandemia de COVID-19, em que intensidade você fez (ou ainda está fazendo) restrição do contato com as pessoas?
Esta pergunta teve as seguintes opções (excludentes) de resposta:
Não fiz nada, levei vida normal.
Procurei tomar cuidados, ficar a distância das pessoas, reduzir um pouco o contato, não visitar idosos, mas continuei trabalhando e saindo.
Fiquei em casa, saindo só para compras em supermercado e farmácia.
Fiquei rigorosamente em casa, saindo só por necessidade de atendimento à saúde.
A intensidade da restrição de contato físico foi classificada nas seguintes categorias: (1) nenhuma restrição, (2) pouca restrição, (3) restrição intensa ou (4) restrição total, correspondentes às opções de resposta 1 a 4, descritas em epígrafe. Para caracterizar as pessoas que não aderiram às medidas de restrição de contato físico, considerou-se como desfecho a união das alternativas de resposta 1 e 2, qual seja, ‘Nenhuma ou pouca restrição de contato físico’.
As variáveis independentes consideradas foram:
sexo (masculino; feminino);
faixa etária (em anos: 18 a 29; 30 a 39; 40 a 49; 50 a 59; 60 ou mais);
raça/cor da pele (branca; não branca);
escolaridade (ensino médio incompleto; ensino médio completo; ensino superior completo);
situação de trabalho durante a pandemia (não trabalhou; trabalhou; trabalhou em sistema de home office); e
macrorregião.
Os dados foram analisados quanto à presença de duplicidades (quando todas as respostas eram exatamente iguais) e dados faltantes. Tanto as duplicidades como os questionários com dados faltantes nas variáveis consideradas para calibração (4,3%), isto é, sem informação sobre Unidade da Federação (UF), sexo, idade, raça/cor da pele ou escolaridade, foram excluídos da base de dados.
A amostra foi calibrada tendo por referência os dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) de 2019,16 realizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), para obter a mesma distribuição proporcional por UF, sexo, faixa etária, raça/cor da pele e escolaridade da população brasileira.
Para testar as associações com o desfecho ‘Nenhuma ou pouca restrição de contato físico’, foram estimadas razões de chances (OR: odds ratio) e respectivos intervalos de confiança de 95% (IC95%), por regressão logística. Os efeitos das categorias das covariáveis foram verificados pelo teste estatístico da OR, no nível de significância de 5%. As análises foram realizadas com uso do software Statistical Package for the Social Sciences (SPSS), versão 2.17
Para se verificar o crescimento do número de casos no Brasil, foi descrito o número acumulado de casos de COVID-19 registrados desde 26 de fevereiro de 2020, data da primeira notificação de infecção no país, até o final de maio deste mesmo ano. A fonte de informações consultada foi o sistema MonitoraCovid-19.2
Foram elaborados gráficos, em escala logarítmica, da série temporal do número acumulado de casos registrados de COVID-19, por dia, de 26 de fevereiro até 30 de maio de 2020, no conjunto do Brasil e em cada uma de suas macrorregiões. A transformação logarítmica possibilita visualizar a desaceleração da expansão da epidemia. Caso não haja diminuição na velocidade de crescimento, a curva logarítmica é linear, representada por uma reta. Entretanto, se há redução na taxa de crescimento da epidemia, ocorre uma inclinação ou “achatamento” na curva epidêmica.
Também foram calculadas as taxas percentuais de crescimento do número acumulado de casos de COVID-19, por dia, em cada semana do período de 4 de março a 26 de maio de 2020. Para o cálculo da taxa de crescimento percentual/dia, em cada semana, estimou-se o coeficiente angular (β) da regressão linear entre o logaritmo do número acumulado de casos e o dia da semana (variação de 1 a 7). A taxa de crescimento percentual por dia, semana após semana, foi calculada da seguinte forma:
O projeto do estudo foi aprovado pela Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (CONEP), do Conselho Nacional de Saúde (CNS), em 19 de abril de 2020: Parecer nº 3.980.277. Todas as respostas foram anônimas, sem qualquer identificação dos participantes. Após lerem o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, os sujeitos respondiam se aceitavam ou não participar da pesquisa. Os dados do Sistema MonitoraCovid-19 são de livre acesso.2
Resultados
Ao todo, 47.184 pessoas aceitaram participar da pesquisa. Após a exclusão dos questionários com dados faltantes nas variáveis utilizadas para calibração (4,3%), chegou-se a um total de 45.161 questionários aptos à análise.
Na Tabela 1, apresentam-se os resultados relativos à intensidade da restrição de contatos com pessoas, de acordo com o sexo e o grupo de idade. Da totalidade da amostra, 1,5% levou vida normal, sem qualquer restrição de contato físico, enquanto 24,2% fizeram pouca restrição, 59,2% fizeram intensa restrição e 15,1% adotaram restrição total de contatos com outras pessoas. Observou-se maior adesão entre as mulheres, comparadas aos homens; e entre os mais jovens (18-29 anos) e os idosos (60 anos ou mais), independentemente do sexo, comparados aos indivíduos das faixas etárias medianas. O maior percentual de restrição total de contato físico (sair de casa apenas por necessidade de atendimento à saúde) foi encontrado entre as mulheres idosas (39,1%), e o menor, entre os homens de 30 a 59 anos (8,2%). Intensa adesão à restrição de contato físico apresentou maior proporção entre mulheres de 18 a 29 anos de idade (71,3%). Os maiores percentuais daqueles que não fizeram ou fizeram pouca restrição de contatos com outras pessoas corresponderam aos homens de 30 a 49 anos de idade, cujas estimativas foram superiores a 40,0%.
Sexo | Faixa de idade(em anos) | n | Intensidade da restrição de contato físico (%) | |||
---|---|---|---|---|---|---|
Nenhuma restriçãoa | Pouca restriçãob | Restrição intensac | Restrição totald | |||
Total da amostra | 44.914 | 1,5 | 24,2 | 59,2 | 15,1 | |
Masculino | 18-29 | 5.511 | 2,8 | 19,5 | 64,8 | 12,9 |
30-39 | 4.383 | 2,8 | 40,0 | 49,0 | 8,2 | |
40-49 | 3.782 | 1,7 | 43,2 | 46,5 | 8,6 | |
50-59 | 3.207 | 2,0 | 30,8 | 57,3 | 9,9 | |
≥60 | 3.960 | 2,8 | 16,2 | 60,7 | 20,3 | |
Feminino | 18-29 | 5.601 | 0,4 | 16,3 | 71,3 | 12,0 |
30-39 | 5.006 | 0,4 | 30,5 | 59,8 | 9,3 | |
40-49 | 4.373 | 1,3 | 27,6 | 60,2 | 10,9 | |
50-59 | 3.950 | 0,9 | 21,0 | 62,0 | 16,1 | |
≥60 | 5.142 | 0,8 | 6,1 | 54,0 | 39,1 | |
Total | 18-29 | 11.112 | 1,6 | 17,9 | 68,1 | 12,4 |
30-39 | 9.389 | 1,5 | 34,9 | 54,8 | 8,8 | |
40-49 | 8.154 | 1,5 | 34,8 | 53,9 | 9,8 | |
50-59 | 7.157 | 1,4 | 25,4 | 59,9 | 13,3 | |
≥60 | 9.102 | 1,7 | 10,5 | 56,9 | 30,9 |
a)Nenhuma restrição: não fez nada, levou vida normal.
b)Pouca restrição: procurou tomar cuidados, manter distância das pessoas, reduzir um pouco o contato, não visitar idosos, mas continuou saindo.
c)Restrição intensa: ficou em casa, saindo só para compras em supermercado ou farmácia.
d)Restrição total: ficou rigorosamente em casa, saindo só por necessidade de atendimento à saúde.
*Excluídos os casos com valores faltantes.
Na Tabela 2, são apresentadas as diferenças na adesão às medidas de restrição de contato físico por região nacional. Considerando-se a restrição intensa e a restrição total de contatos com outras pessoas, as maiores proporções ocorreram na a região Sudeste, com 60,1% (59,4;60,8) e 15,7% (15,2;16,2) respectivamente. Entre todas as macrorregiões, as maiores proporções foram relacionadas às pessoas que fizeram intensa restrição de contato físico, variando de 57,0% (55,3;58,6), na região Norte, a 60,1% (59,4;60,8) na região Sudeste. O menor percentual de restrição total de contato físico foi apresentado pela região Centro-Oeste: 12,3% (11,1;13,5).
Macrorregião | n | Intensidade da restrição de contato físico (%) | |||
---|---|---|---|---|---|
Nenhuma restriçãoa | Pouca restriçãob | Restrição intensac | Restrição totald | ||
Total da amostra | 44.914 | 1,5 | 24,2 | 59,2 | 15,1 |
Norte | 3.431 | 0,6 | 27,5 | 57,0 | 15,0 |
Nordeste | 11.205 | 1,5 | 24,7 | 58,5 | 15,2 |
Sudeste | 20.494 | 1,5 | 22,8 | 60,1 | 15,7 |
Sul | 6.752 | 1,6 | 25,7 | 58,5 | 14,2 |
Centro-Oeste | 3.032 | 3,3 | 25,2 | 59,2 | 12,3 |
a)Nenhuma restrição: não fez nada, levou vida normal.
b)Pouca restrição: procurou tomar cuidados, manter distância das pessoas, reduzir um pouco o contato, não visitar idosos, mas continuou saindo.
c)Restrição intensa: ficou em casa, saindo só para compras em supermercado ou farmácia.
d)Restrição total: ficou rigorosamente em casa, saindo só por necessidade de atendimento à saúde.
*Excluídos os casos com valores faltantes.
Na Tabela 3, analisam-se as associações entre as características sociodemográficas e o desfecho ‘Nenhuma ou pouca restrição de contato físico’. A variável mais associada à variável-desfecho foi a situação de trabalho: entre os que trabalharam durante a pandemia, 81,3% não aderiram às medidas de restrição de contato físico, enquanto para os que não trabalharam esse percentual foi de apenas 10,4%. Na comparação entre essas duas categorias da situação de trabalho, a razão de chances (OR) foi de 37,2 (34,8;39,7). Quanto à escolaridade, as pessoas com ensino médio incompleto respeitaram menos as medidas de restrição do que as de nível superior (OR=1,9 [1,8;2,1]). Em relação às faixas de idade, os indivíduos de 30 a 39 e 40 a 49 anos tiveram chance quatro vezes maior de não fazer restrição de contato físico, quando comparados aos idosos. Os homens, comparados às mulheres, tiveram quase o dobro de chances (OR=1,8 [1,7;1,8]) de não fazer qualquer restrição ou pouco restringir o contato físico. No tocante à raça/cor da pele, as diferenças foram menores. Entretanto, as pessoas que se declararam brancas mostraram adesão significativamente maior à restrição de contato físico.
Características sociodemográficas | Categoria | Na | % | Nenhuma/pouca adesão (%) | ORb | IC95%c | Valor de pd |
---|---|---|---|---|---|---|---|
Total da amostra | 44.914 | – | 25,8 | – | – | – | |
Sexo | Masculino | 20.842 | 46,4 | 31,7 | 1,79 | 1,69;1,85 | <0,001 |
Feminino | 24.072 | 53,6 | 20,6 | 1,00 | – | – | |
Faixa de idade | 18-29 | 11.112 | 24,7 | 19,5 | 1,74 | 1,61;1,88 | <0,001 |
30-39 | 9.389 | 20,9 | 36,4 | 4,12 | 3,82;4,45 | <0,001 | |
40-49 | 8.154 | 18,2 | 36,3 | 4,01 | 3,79;4,43 | <0,001 | |
50-59 | 7.157 | 15,9 | 26,8 | 2,63 | 2,43;2,86 | <0,001 | |
≥60 | 9.102 | 20,3 | 12,2 | 1,00 | – | – | |
Raça/cor da pele | Branca | 20.408 | 45,4 | 23,6 | 0,81 | 0,78;0,85 | <0,001 |
Não branca | 24.506 | 54,6 | 27,6 | 1,00 | – | – | |
Grau de escolaridade | Ensino médio incompleto | 4.909 | 11,0 | 33,0 | 1,91 | 1,76;2,08 | <0,001 |
Ensino médio completo | 32.574 | 72,5 | 25,9 | 1,36 | 1,28;1,44 | <0,001 | |
Ensino superior completo | 7.431 | 16,5 | 20,5 | 1,00 | – | – | |
Situação de trabalho durante a pandemia | Não trabalhou | 24.121 | 54,3 | 10,4 | 1,00 | – | – |
Trabalhou | 9.269 | 20,8 | 81,3 | 37,17 | 34,78;39,73 | <0,001 | |
Trabalhou (home office) | 11.047 | 24,9 | 13,1 | 1,29 | 1,21;1,39 | <0,001 | |
Macrorregião | Norte | 3.431 | 7,7 | 28,1 | 1,22 | 1,13;1,33 | <0,001 |
Nordeste | 11.205 | 24,9 | 26,2 | 1,11 | 1,05;1,17 | <0,001 | |
Sudeste | 20.494 | 45,6 | 24,2 | 1,00 | – | – | |
Sul | 6.752 | 15,0 | 27,3 | 1,17 | 1,10;1,25 | <0,001 | |
Centro-Oeste | 3.032 | 6,8 | 28,5 | 1,24 | 1,15;1,36 | <0,001 |
a)Excluídos os casos com valores faltantes (missing values).
b)OR: razão de chances (em inglês: odds ratio).
c)IC95%: intervalo de confiança de 95%.
d)Teste estatístico da razão de chances (OR) ser significativamente maior do que 1,00,
Na comparação entre as macrorregiões brasileiras, o Sudeste foi a região com a menor proporção de pessoas que não aderiram ou pouco aderiram às medidas de restrição de contato físico (24,2%), enquanto as maiores estimativas foram encontradas nas regiões Centro-Oeste e Norte, ambas superiores a 28,0%. Quando comparadas ao Sudeste, todas as demais regiões mostraram diferenças positivas, significativamente maiores (Tabela 3).
A Figura 1 mostra a curva epidêmica (em escala logarítmica) do número de casos acumulados de COVID-19, do início da pandemia até o final de maio. Percebe-se, claramente, o achatamento da curva após a adoção das medidas de restrição de contato físico no Brasil. Em relação às regiões, o Sudeste e o Nordeste detinham o maior número de casos. Embora a pandemia tenha se iniciado um pouco mais tarde no Nordeste, a maior desaceleração no Sudeste fez com que o número acumulado de casos se aproximasse, entre as duas regiões. As regiões Sul e Centro-Oeste detinham o menor número de casos acumulados, enquanto o Sul, particularmente, apresentava menor ritmo de crescimento. A região Norte, onde a pandemia chegou (ou foi detectada) mais tarde, mostrava o menor achatamento na curva epidêmica.
A Tabela 4 mostra as taxas percentuais de crescimento do número de casos acumulados por dia, em cada semana do período de 4 de março a 26 de maio, no Brasil e em suas macrorregiões específicas. No país como um todo, a taxa de crescimento diário diminuiu de 45,4%, na semana de 4 a 10 de março, para 5,0% na semana de 20 a 26 de maio. O maior decréscimo foi observado na região Sudeste, que apresentou, igualmente, a menor taxa percentual de crescimento, de 4,0% na última semana de maio; na mesma semana, as maiores taxas de crescimento corresponderam às regiões Norte e Centro-Oeste, ambas com taxas próximas de 6,0%.
Semana | Período | BRASIL | Taxas (%) de crescimento diário | |||||
---|---|---|---|---|---|---|---|---|
Início | Fim | Norte | Nordeste | Sudeste | Sul | Centro-Oeste | ||
2 | 4/mar | 10/mar | 45,4 | – | 29,7 | 40,7 | – | – |
3 | 11/mar | 27/mar | 33,6 | – | 31,8 | 31,3 | 38,0 | 62,0 |
4 | 18/mar | 24/mar | 31,5 | 92,9 | 42,7 | 28,0 | 35,2 | 30,8 |
5 | 25/mar | 31/mar | 14,1 | 19,3 | 14,6 | 14,0 | 12,6 | 12,9 |
6 | 1°/abr | 7/abr | 11,9 | 19,6 | 16,0 | 10,6 | 11,3 | 7,9 |
7 | 8/abr | 14/abr | 7,6 | 11,6 | 10,4 | 6,4 | 6,5 | 5,8 |
8 | 15/abr | 21/abr | 7,3 | 9,3 | 11,2 | 6,1 | 3,8 | 5,0 |
9 | 22/abr | 28/abr | 7,8 | 10,1 | 9,6 | 6,9 | 4,4 | 5,3 |
10 | 29/abr | 5/maio | 6,3 | 10,2 | 8,0 | 4,6 | 4,1 | 4,9 |
11 | 6/maio | 12/maio | 5,9 | 7,7 | 7,2 | 4,5 | 4,1 | 5,5 |
12 | 13/maio | 19/maio | 6,0 | 6,6 | 7,0 | 5,0 | 4,6 | 7,3 |
13 | 20/maio | 26/maio | 5,0 | 6,3 | 5,1 | 4,0 | 4,7 | 5,9 |
Fonte: Fundação Instituto Oswaldo Cruz (Fiocruz) – MonitoraCovid-19.(2)
Discussão
Os resultados mostraram que grande parte da população brasileira aderiu às medidas de restrição de contato físico. Cerca de 60,0% relataram ter feito intensa restrição de contatos com outras pessoas, ao passo que 15,0% adotaram a restrição total de contato físico, só saindo de casa por necessidade de atendimento à saúde. Estas medidas foram adotadas em todas as macrorregiões do país, com maior intensidade no Sudeste, e menos rigor no Norte e Centro-Oeste.
Entretanto, um quarto da população brasileira não fez ou fez pouca restrição de contato com outras pessoas. Esse grupo é caracterizado pela predominância de homens, de 30 a 49 anos de idade, com baixa escolaridade, e que continuaram trabalhando durante a pandemia de COVID-19.
A orientação de confinamento doméstico para as pessoas que não exercem ocupações essenciais teve impacto importante no contexto socioeconômico, com perdas importantes no rendimento familiar dos brasileiros.11 Em situações de crise econômica, esse impacto tende a acometer, com maior intensidade, os indivíduos em condições de vida precárias e que, provavelmente, tiveram de trabalhar durante a pandemia, para evitar a perda do emprego e dos rendimentos.18
Pôde-se observar os efeitos benéficos da quarentena no acompanhamento da série temporal do número de casos acumulados, tanto no Brasil como em cada uma de suas grandes regiões. As taxas de crescimento diário, por semana, do início de março ao fim de maio, tiveram visível redução. É mister notar que a análise dos dados de duas fontes independentes, (i) a ‘Convid – Pesquisa de Comportamentos’, com resultados gerados pelas respostas dos participantes, referentes à intensidade da restrição de contato físico, e (ii) o registro dos casos de COVID-19 monitorados no Brasil,2 levaram a conclusões similares. A região Sudeste, com a maior proporção de adesão às medidas de restrição de contato físico, também mostrou a maior desaceleração do ritmo de crescimento da epidemia, enquanto as regiões Norte e Centro-Oeste, onde foram encontradas as maiores proporções de pessoas que não fizeram restrição de contato físico, apresentaram menor desaceleração da taxa de crescimento diário por semana, no período analisado.
Outros países relataram a diminuição na taxa de reprodução do vírus, atribuída, principalmente, às medidas de restrição de contato físico.19,20 Na China, mais de 1,4 milhão de infecções e 56 mil mortes foram – provavelmente – evitadas por conta dessas medidas, impostas no final de janeiro.8
Contudo, é importante determinar se algumas das medidas de restrição de contato físico podem ser relaxadas sem que isso resulte em uma segunda onda de disseminação da COVID-19. Para compensar as rigorosas medidas de distanciamento físico, são exemplares as iniciativas adotadas em outros países, como o aprimoramento na detecção de casos.21 Por meio de um modelo matemático, Tang et al.22 mostraram que a expansão na capacidade de testagem e a rapidez em prover o diagnóstico, além do subsequente monitoramento e isolamento dos casos, são elementos-chave para o relaxamento das medidas mais rígidas de restrição de contato físico.
A despeito da tendência – nítida – de diminuição das taxas de crescimento (por dia) do número de casos de COVID-19, os dados devem ser vistos com a devida cautela. Em primeiro lugar, na última semana analisada (20 a 26 de maio), a taxa percentual de crescimento diário no Brasil foi de 5,0%. Isto significa que o número acumulado de casos cresceu mais de 30% naquela semana. Nas regiões Norte e Centro-Oeste, na mesma semana, o crescimento ultrapassou 40%. Vale notar que, embora se reconheça a subnotificação de casos de COVID-19 no Brasil,23 as taxas de crescimento diário permanecem inalteradas sob a suposição de subnotifição constante no período.
Outro aspecto importante é que, apesar de a avaliação considerar um recorte temporal estático, o período epidêmico varia segundo as diferentes unidades de análise. O processo de interiorização da doença é heterogêneo e pode estar relacionado às medidas de controle de cidades maiores, com impacto em cidades menores.24 Considerando-se períodos epidêmicos diferentes, é provável que a pandemia apresente uma situação ainda pior no Centro-Oeste, haja vista a região ter apresentado uma transmissão comunitária mais efetiva no mês de junho.2
Conforme as orientações baseadas em evidências de outros países, a flexibilização gradual das restrições de contato físico deve ser feita em regiões/países que atendam a critérios específicos de contenção da disseminação do vírus, juntamente com um sistema de vigilância cujo desempenho permita detectar surtos locais, monitorar casos, isolar indivíduos infectados e indivíduos expostos, e aumentar a testagem, seja para (i) o diagnóstico da COVID-19, seja para (ii) a identificação da presença de anticorpos, visando estabelecer o nível de desenvolvimento da imunidade comunitária.25 O uso de máscaras faciais com eficácia comprovada, em locais públicos, tem sido igualmente recomendado.26
Entre as limitações da ‘Convid – Pesquisa de Comportamentos’, observa-se que as pessoas de menor escolaridade, sem acesso à internet, não puderam participar da pesquisa. De acordo com os dados da PNAD Contínua 2018 relativos ao tema Tecnologia da Informação e Comunicação,27 79,1% dos domicílios tinham acesso à internet; e, entre as pessoas que não usavam a rede naquele ano, 41,6% justificaram como motivo não saber usá-la. Finalmente, a sub-representação das pessoas de baixa escolaridade pode ter subestimado a proporção de pessoas que não fizeram restrição de contato físico com outras pessoas.
As pesquisas de saúde via web são promissoras, sobretudo pela possibilidade de se adquirir conhecimento das condições de saúde em tempo real. Embora haja quem questione o alcance da diversidade das características populacionais na amostra, estudos têm revelado a grande diversidade das pessoas conectadas nas redes sociais, no que diz respeito a sua localização geográfica e características socioeconômicas.28 Provavelmente, a expansão da rede de alcance de participantes do estudo, em várias ondas de recrutamento, convergiu para a composição de uma amostra grande e abrangente das características sociodemográficas do país.29 Na amostra da ‘Convid – Pesquisa de Comportamentos’, tanto para as variáveis ‘sexo’, ‘faixa etária’ e ‘raça/cor da pele’, quanto para a distribuição geográfica, obteve-se a diversidade necessária à ponderação dos dados, de modo a se aproximar da representatividade da população brasileira.
Finalmente, cabe lembrar que a dependência das observações, que ocorre no recrutamento por amostragem em cadeia,30 pode ter levado a estimativas enviesadas das proporções de pessoas que adotaram as medidas de restrição de contato físico. Essas limitações, no entanto, foram minimizadas pelo grande tamanho e calibração da amostra.16
Diante da visível redução das taxas percentuais de crescimento diário de COVID-19, em cada semana do mês de maio, é possível concluir que a adesão da população brasileira às medidas de restrição de contato físico contribuiu para a redução da disseminação da infecção e da doença no Brasil.