Introdução
A tuberculose (TB) continua a ser a principal causa de morte entre as doenças infecciosas e uma das dez principais causas de morte em todo o mundo; em 2018, foram estimados 10 milhões de casos e 1,4 milhão de mortes diretamente relacionadas à TB. 1
Em 2018, as Américas contribuíram com 3% da carga global da TB, e o Brasil ocupou a primeira posição do continente, com 32% dos casos, seguido pelo Peru (13%) e México (10%). Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), o Brasil foi o único do continente americano listado entre os 30 países com alta carga de TB, que respondem por 87% de todos os casos notificados e apresentam uma taxa de incidência estimada em 45 casos por 100 mil habitantes. 1 No mesmo ano, o Sistema de Informação de Agravos de Notificação-TB (Sinan-TB) do Departamento de Doenças de Condições Crônicas e Infecções Sexualmente Transmissíveis do Ministério da Saúde do Brasil (DCCI/MS), registrou 75.717 novos casos de TB (36,2 casos por 100 mil hab.), sendo 423 casos notificados após o óbito. 2
A TB é uma doença de notificação obrigatória no Brasil. 3 Existe uma rede de grande capilaridade para a vigilância e controle da doença, presente em todos os municípios brasileiros, que implementam diferentes estratégias e tecnologias para prevenir novos casos e reduzir a carga da doença. 2 Porém, uma situação merecedora de preocupação resiste em permanecer: parte da população com TB não é captada pelos serviços de vigilância e atenção dessa rede.
A não detecção de casos de TB é um importante desafio a enfrentar, porque contribui para a manutenção da cadeia de transmissão, impede o tratamento efetivo e permite subestimar a magnitude do problema para a Saúde Pública. 4,5 A notificação pós-óbito de um caso de TB pode ser considerada ‘evento sentinela’ que denuncia falha no atendimento individual e compromete a efetividade do serviço de controle da doença.
Dessa forma, o objetivo deste estudo foi caracterizar os casos com notificação pós-óbito da TB no Brasil em 2014.
Métodos
Trata-se de um estudo descritivo dos casos de TB com notificação pós-óbito, encontrados a partir do relacionamento do Sinan-TB com o Sistema de Informações sobre Mortalidade (SIM), ambos do Ministério da Saúde, sobre dados referentes ao ano de 2014.
O Brasil é um país de dimensões continentais; ocupa uma área territorial de 8.510.820,623km2 e somava uma população estimada em 204,2 milhões de hab. em 2014. 6 Existe uma grande desigualdade social no país, especialmente desfavorável às regiões Norte e Nordeste, que apresentam a menor renda media per capita e maior índice de Gini entre as cinco grandes regiões brasileiras. 7,8 No mesmo ano de 2014, a TB foi considerada uma das doenças de maior importância para a Saúde Pública: 9 foram registrado 67.966 casos novos naquele período –com maiores coeficientes de incidência observados nos estados do Amazonas (68,4/100 mil hab.) e do Rio de Janeiro (60,9/100 mil hab.) –, 10 e, em nível nacional, uma mortalidade de 2,4 óbitos por 100 mil hab. 11
Cumpre lembrar que o sistema de saúde brasileiro – o Sistema Único de Saúde (SUS) – atende o maior contingente populacional do país, é público e gratuito, de cobertura universal. 12 Ainda em 2014, a rede de serviços da administração pública – federal, estadual e municipal – detinha cerca de 898.612 serviços vinculados ao SUS. 13
A população de estudo foi composta por todos os casos de TB com notificação pós-óbito no Brasil, em 2014. Os critérios de exclusão de casos foram: idade menor que 15 anos, para prevenir grande heterogeneidade na população de estudo; e ausência de informação sobre sexo.
A notificação pós-óbito foi definida como uma notificação do caso de TB exclusivamente realizada nas circunstâncias do óbito.
As informações referentes à população do estudo foram identificadas a partir de um banco de dados secundários, resultante de um processo de relacionamento do Sinan-TB com o SIM, disponível apenas para o ano de 2014. Para o presente estudo, foram somados os casos encontrados no Sinan-TB com tipo de entrada ‘pós-óbito’ àqueles encontrados exclusivamente no SIM, estes também considerados ‘pós-óbito’ no presente estudo. No SIM, a TB deveria constar como causa básica ou como condição contribuinte da morte – registrada na Parte I ou na Parte II de causas da morte, na Declaração de Óbito (DO), referida pelos códigos A15 a A19 da 10ª Revisão da Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde (CID-10).
O banco de dados relacionado, SIM + Sinan-TB, foi disponibilizado pelo Ministério da Saúde após solicitação realizada via Sistema Eletrônico de Informações ao Cidadão (e-SIC), no sítio virtual http://esic.cgu.gov.br/sistema/site/index.aspx (Protocolo n° 25820.004488/2019-30, emitido em 6 de junho de 2019).
As variáveis de interesse do estudo foram:
-
Características individuais
Sexo (masculino; feminino);
Faixa etária (anos: 15 a 19; 20 a 39; 40 a 59; 60 ou mais);
Escolaridade (anos de estudo: nenhum; 1 a 8; mais de 8; ignorada);
Raça/cor da pele (branca; preta ou parda; indígena; ignorada);
Forma clínica da tuberculose (pulmonar [pulmonar; pulmonar + extrapulmonar]; extrapulmonar ou SOE [sem menção da confirmação bacteriológica ou histológica]);
Causa básica de morte (TB; aids; outras);
Presença (não; sim) de outras doenças mencionadas na DO – doenças crônicas selecionadas (diabetes mellitus [E10-14], hipertensão [I10-15], doenças do aparelho respiratório [J00-99], entre outras) e doenças que tiveram maior número de menções nas notificações pós-óbito.
-
Características do município de residência
Índice de desenvolvimento humano (IDHM) (baixo [menos de 0,6]; médio [0,6 a 0,7]; alto [mais de 0,7]);
Porcentagem de pobreza (baixa [menos de 10%]; média [10 a 20%], alta [20 a 45%]; muita alta [mais de 45%]); a porcentagem de pobreza foi definida como a proporção de indivíduos com renda domiciliar per capita igual ou inferior a R$ 140,00 mensais, em agosto de 2010;
Porte populacional (número de habitantes: pequeno [menos de 20 mil]; médio [20 a 100 mil]; grande [mais de 100 mil]);
Macrorregião nacional (Norte; Nordeste; Sudeste; Sul, Centro-Oeste);
Município de residência (foram descritos os dez municípios com mais casos de notificação pós-óbito).
-
Características do tipo de serviço
Assistência médica para a doença que causou o óbito (não; sim);
Tipo de serviço de saúde que notificou o óbito (público; privado; sem fins lucrativos; não especificado);
Cobertura da Estratégia Saúde da Família (ESF) (baixa [até 50%]; média [50 a 75%]; alta [acima de 75%]) no município de residência;
Cobertura de Atenção Básica (AB) (baixa [até 50%]; média [50 a 75%]; alta [acima de 75%]) no município de residência.
As variáveis referentes às características do município de residência foram retiradas do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) e do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) (2013), e as referentes às características dos serviços de saúde, do Tabnet (e-Gestor). 6,14,15 Todas as demais variáveis são originadas do SIM.
A equipe técnica do DCCI/MS efetuou o relacionamento probabilístico, pelo software livre Reclink III, 16 aplicando uma rotina de múltiplos passos, cada um deles empregando uma determinada chave de blocagem. 4 O relacionamento probabilístico é composto por uma etapa de padronização, cujo objetivo é uniformizar os arquivos para posterior utilização. A etapa seguinte, propriamente chamada de ‘relacionamento’, é composta por dois processos, blocagem e pareamento dos registros, os quais auxiliam na otimização do processo de comparação, dividindo as bases de dados em blocos lógicos, e na construção de escores, a partir de uma determinada estratégia de blocagem empregada. No estudo em tela, os parâmetros de relacionamento foram estimados mediante aplicação de algoritmos Expectation-Maximization (EM). A última etapa, de combinação dos dados, propõe-se à criação de um novo arquivo, baseado em dois outros, sendo os pares considerados “verdadeiros” identificados segundo o escore definido, mediante conferência dos nomes completos da pessoa, da mãe, e da data de nascimento. A cada passo de blocagem, fez-se uma revisão manual. Os registros duvidosos foram classificados como ‘não pares’.
Foram descritas as frequências absolutas e relativas das variáveis de interesse, com auxílio dos softwares Stata versão 11.0 e Microsoft Office Excel 2013.
O estudo respeitou os preceitos éticos para condução de pesquisa com seres humanos. Uma vez que foram utilizados, exclusivamente, dados secundários não nominais, de acesso público, não houve a necessidade da aprovação de um Comitê de Ética em Pesquisa (CEP).
Resultados
Identificou-se um total de 7.268 óbitos com menção a TB em 2014 ( Figura 1 ). Deles, foram excluídos 4.447 casos de TB notificados regularmente no Sinan, 59 casos com idade menor que 15 anos e 59 casos sem informação sobre sexo ( Figura 1 ). As notificações pós-óbito (2.703) foram resultantes da soma de 2.506 (93%) casos registrados exclusivamente no SIM e 197 (7%) oriundos do Sinan-TB com tipo de entrada ‘pós-óbito’. A TB, como causa básica, contribuiu com 64,9% de todas as mortes; e a aids, como causa básica, com 19,7%.
A maioria dos casos com notificação pós-óbito de TB como causa básica foi de pessoas do sexo masculino (73,5%), com mais de 39 anos de idade (80,8%), de baixa escolaridade (8 anos ou menos de estudo, 66,5%), de raça/cor da pele preta ou parda (62,8%) e com a forma clínica pulmonar da infecção (75,2%) ( Tabela 1 ). Diferentemente das duas outras causas básicas destacadas no estudo, pessoas coinfectadas com aids + TB (aids como causa básica do óbito) apresentaram proporções menos expressivas do sexo masculino (68,6%), idade superior a 39 anos (53,9%), baixa escolaridade (60,8%) e menor contribuição da forma clínica pulmonar da TB (57,2%) ( Tabela 1 ).
Características | TB, causa básica do óbito | TB, causa contribuinte de óbito | Total | ||
---|---|---|---|---|---|
Aids, causa básica do óbito | Outras causas básicas do óbito | ||||
N (%) | N (%) | N (%) | N | ||
Sexo | |||||
Feminino | 465 (26,5) | 167 (31,4) | 108 (25,9) | 740 | |
Masculino | 1.290 (73,5) | 365 (68,6) | 308 (74,1) | 1.963 | |
Faixa etária (anos) | |||||
15-20 | 19 (1,1) | 3 (0,6) | 6 (1,4) | 28 | |
20-39 | 317 (18,1) | 242 (45,5) | 63 (15,2) | 622 | |
40-59 | 676 (38,5) | 250 (47,0) | 154 (37,0) | 1.080 | |
≥60 | 743 (42,3) | 37 (6,9) | 193 (46,4) | 973 | |
Escolaridade (anos de estudo) | |||||
0 | 311 (17,7) | 48 (9,1) | 59 (14,2) | 418 | |
1-8 | 857 (48,8) | 275(51,7) | 221 (53,1) | 1.353 | |
>8 | 212 (12,1) | 101 (18,9) | 56 (13,5) | 369 | |
Ignorada | 375 (21,4) | 108 (20,3) | 80 (19,2) | 563 | |
Raça/cor da pele | |||||
Branca | 567 (32,3) | 173 (32,5) | 144 (34,6) | 884 | |
Preta ou parda | 1.101 (62,8) | 333 (62,6) | 253 (60,8) | 1.687 | |
Indígena | 18 (1,0) | 2 (0,4) | 2 (0,5) | 22 | |
Ignorada | 69 (3,9) | 24 (4,5) | 17 (4,1) | 110 | |
Forma clínica da tuberculose | |||||
Pulmonar | 1.320 (75,2) | 304 (57,2) | 280 (67,3) | 1.904 | |
SOE a | 259 (14,8) | 115 (21,6) | 100 (24,1) | 474 | |
Extrapulmonar | 176 (10,0) | 113 (21,2) | 36 (8,6) | 325 | |
Total | 1.755 (100,0) | 532 (100,0) | 416 (100,0) | 2.703 |
Legenda:
Aids: síndrome da imunodeficiência adquirida (sigla em inglês, para acquired immunodeficiency virus ).
SIM: Sistema de Informações sobre Mortalidade.
TB: tuberculose.
a)SOE: forma clínica da tuberculose sem menção de confirmação bacteriológica ou histológica.
As mortes por TB como causa básica, com notificação pós-óbito, ocorreram, principalmente, em residentes de municípios com alto IDHM (66,6%), grande porte populacional (59,6%), baixa ou média porcentagem de pobreza (72,9%), situados nas regiões Sudeste (46,4%) e Nordeste (32,6%) do país ( Tabela 2 ).
Características | TB, causa básica do óbito | TB, causa contribuinte do óbito | Total | ||
---|---|---|---|---|---|
Aids, causa básica do óbito | Outras causas básicas do óbito | ||||
N (%) | N (%) | N (%) | N | ||
IDHM | |||||
Ignorado | 21 (1,2) | 6 (1,1) | 2 (0,5) | 29 | |
Baixo (<0,6) | 192 (10,9) | 22 (4,2) | 43 (10,3) | 257 | |
Médio (0,6-0,7) | 373 (21,3) | 105 (19,7) | 70 (16,8) | 548 | |
Alto (>0,7) | 1.169 (66,6) | 399 (75,0) | 301 (72,4) | 1.869 | |
Pobreza (%) | |||||
Ignorado | 21 (1,2) | 6 (1,1) | 2 (0,5) | 29 | |
Baixa (<10) | 831 (47,4) | 307 (57,7) | 216 (51,9) | 1.354 | |
Média (10-20) | 448 (25,5) | 142 (26,7) | 108 (25,9) | 698 | |
Alta (20-45) | 271 (15,4) | 54 (10,2) | 49 (11,8) | 374 | |
Muita alta (>45) | 184 (10,5) | 23 (4,3) | 41 (9,9) | 248 | |
Porte populacional (por mil hab.) | |||||
Ignorado | 21 (1,2) | 6 (1,1) | 2 (0,5) | 29 | |
Pequeno (<20 mil) | 268 (15,3) | 46 (8,6) | 61 (14,7) | 375 | |
Médio (20-100 mil) | 420 (23,9) | 120 (22,6) | 98 (23,5) | 638 | |
Grande (>100 mil) | 1.046 (59,6) | 360 (67,7) | 255 (61,3) | 1.661 | |
Região de residência | |||||
Norte | 208 (11,8) | 59 (11,1) | 40 (9,6) | 307 | |
Nordeste | 572 (32,6) | 121 (22,7) | 147 (35,4) | 840 | |
Sudeste | 815 (46,4) | 244 (45,9) | 174 (41,8) | 1.233 | |
Sul | 87 (5,0) | 78 (14,7) | 33 (7,9) | 198 | |
Centro-Oeste | 73 (4,2) | 30 (5,6) | 22 (5,3) | 125 | |
Municípios de residência | |||||
Rio de Janeiro | 199 (11,3) | 54 (10,2) | 41 (9,9) | 294 | |
São Paulo | 144 (8,2) | 31 (5,8) | 25 (6,0) | 200 | |
Porto Alegre | - | 7 (1,3) | 5 (1,2) | 12 | |
Recife | 21 (1,2) | 9 (1,7) | 4 (1,0) | 34 | |
Manaus | 27 (1,5) | 9 (1,7) | 6 (1,4) | 42 | |
Salvador | 43 (2,5) | 16 (3,0) | 15 (3,6) | 74 | |
Fortaleza | 26 (1,5) | 6 (1,1) | 20 (4,8) | 52 | |
Belém | 47 (2,7) | 12 (2,3) | 10 (2,4) | 69 | |
Demais capitais/municípios a | 96 (5,5) | 46 (8,6) | 27 (6,5) | 169 | |
Demais municípios | 1.152 (65,6) | 342 (64,3) | 263 (63,2) | 1.757 | |
Total | 1.755 (100,0) | 532 (100,0) | 416 (100,0) | 2.703 |
Legenda:
Aids: síndrome da imunodeficiência adquirida (sigla em inglês, para acquired immunodeficiency virus).
IDHM: Índice de Desenvolvimento Humano Municipal.
TB: tuberculose.
a)Demais municípios que também são capitais.
Entre as principais enfermidades contribuintes, quando a TB era a causa básica do óbito, foram identificadas doenças do aparelho respiratório (52,7%), transtornos mentais e comportamentais, causados por uso de psicoativo (10,0%), doenças do sistema circulatório (8,9%), desnutrição (6,4%), doenças do aparelho digestivo (5,1%), hipertensão (4,4%), diabetes mellitus (4,0%) e doenças do aparelho geniturinário (3,9%) ( Figura 2 ). Entre as doenças respiratórias, destacaram-se as crônicas do trato respiratório inferior. Quando a TB aparecia como causa associada, as neoplasias malignas figuraram entre as mais frequentes causas básicas de óbito, entretanto, com menor frequência como causas associadas (2,1%) ( Figura 2 ).
Para a quase totalidade dos casos estudados (>90%), não foi possível identificar se a pessoa teve acesso a assistência médica para a condição que gerou o óbito ( Tabela 3 ). Casos atendidos no serviço público de saúde foram responsáveis por cerca da metade ou mais das notificações de TB pós-óbito, para os três grupos de causas básicas do óbito (TB; aids; outras). Finalmente, mais da metade dos casos foi notificada em municípios com baixa cobertura da ESF (54,2%), embora com média ou alta cobertura de AB, de 42,1% e 35,3% respectivamente ( Tabela 3 ).
Características | TB, causa básica do óbito | TB, causa contribuinte do óbito | Total | |||
---|---|---|---|---|---|---|
Aids, causa básica do óbito | Outras causas básicas do óbito | |||||
N (%) | N (%) | N (%) | N | |||
Nível individual | ||||||
Assistência médicaa | ||||||
Sim | 68 (3,9) | 13(2,4) | 5(1,2) | 86 | ||
Não | 23 (1,3) | 3(0,6) | 6(1,4) | 32 | ||
Ignorado | 1.664 (94,8) | 516(97) | 405 (97,4) | 2.585 | ||
Tipo de serviço de saúde que notificou o óbito | ||||||
Público | 1.011 (57,6) | 364 (68,4) | 204 (49,0) | 1.579 | ||
Privado | 85 (4,8) | 29 (5,4) | 39 (9,4) | 153 | ||
Sem fins lucrativos | 261 (14,9) | 95 (17,9) | 81 (19,5) | 437 | ||
Ignorado | 398 (22,7) | 44 (8,3) | 92 (22,1) | 534 | ||
Nível municipal | ||||||
Cobertura da ESFb | ||||||
Baixa (<50) | 952 (54,2) | 321 (60,3) | 226 (54,3) | 1.499 | ||
Média (50-75) | 324 (18,5) | 91 (17,1) | 61 (14,7) | 476 | ||
Alta (>75) | 479 (27,3) | 120 (22,6) | 129 (31,0) | 728 | ||
Cobertura da ABc | ||||||
Baixa (<50) | 397 (22,6) | 228 (42,9) | 85 (20,4) | 710 | ||
Média (50-75) | 739 (42,1) | 165 (31,0) | 170 (40,9) | 1.074 | ||
Alta (>75) | 619 (35,3) | 139 (26,1) | 161 (38,7) | 919 | ||
Total | 1.755 (100,0) | 532 (100,0) | 416 (100,0) | 2.703 |
a)Assistência médica para a doença que gerou o óbito, conforme notificado na Declaração de Óbito (DO).
b)ESF: Estratégia Saúde da Família.
c)AB: Atenção Básica em Saúde.
Legenda:Aids: síndrome da imunodeficiência adquirida (sigla em inglês, para acquired immunodeficiency virus ).TB: tuberculose.
Discussão
O estudo encontrou elevado número de casos de TB com notificação identificada apenas no pós-óbito, resgatados principalmente do SIM, não incluídos, portanto, nas estatísticas oficiais do DCCI/MS. Os casos de TB notificados após o óbito apresentaram a TB e a aids como as principais causas básicas do óbito. Observou-se, entre as notificações pós-óbito de TB, maiores proporções de pessoas do sexo masculino, de idade acima dos 39 anos, com oito anos ou menos de estudo, de raça/cor da pele preta ou parda, com a forma clínica pulmonar, e notificadas pelo serviço público de saúde. Além disso, seus municípios de residência referiam maior IDHM, baixa taxa de pobreza, grande porte populacional, baixa cobertura da Estratégia Saúde da Família e alta ou média cobertura da Atenção Básica.
A proporção de coinfecção aids + TB, seja como causa básica, seja como causa associada, corrobora estudos prévios, segundo os quais a aids aparece como a segunda causa de morte entre todas as pessoas com TB. 1,17 Esse resultado é preocupante, pois o protocolo adotado no país recomenda a testagem para TB de toda pessoa com HIV, assim como o inverso. 18
Foi observada maior proporção do sexo masculino entre os casos de TB com notificação pós-óbito. É sabido que homens são mais acometidos pela TB e morrem mais por essa causa, comparados às mulheres, o que pode estar relacionado ao fato de eles procurarem menos os serviços de saúde, aderirem menos ao tratamento e apresentarem mais fatores de risco, entre outras razões. 1,19 Estudos apontam que o sexo masculino também está mais sujeito a subnotificação de casos. Pinheiro et al. 20 avaliaram a subnotificação da TB em um município do Rio de Janeiro e identificaram maior subnotificação entre a população masculina.
Maior frequência de pessoas com 60 anos de idade ou mais foi identificada entre as notificações pós-óbito de TB, quando comparada à das demais faixas etárias. Muitos estudos demonstram que pessoas em idade produtiva tendem a apresentar elevada incidência da TB, apontando a maior efetividade do alerta para a detecção de casos nesse grupo etário. 4,17,21–23 Entretanto, a maior vulnerabilidade biológica dos idosos, especialmente relacionada à presença de outras doenças, incrementa o risco de morte por TB nessa idade, mascara sintomas da doença, reduz o alerta para o diagnóstico precoce e retarda o tratamento, dando oportunidade para subnotificação e notificação pós-óbito da TB.
Pessoas pretas ou pardas contribuíram com mais de 60% de todas as notificações pós-óbito de TB, segundo este estudo. Além de ser o grupo étnico-racial com maior contingente populacional no Brasil, a variável raça/cor da pele preta ou parda tem importante colinearidade com escolaridade e renda no país, e, portanto, associa-se com o padrão de busca por serviços de saúde. 6,24,25 Pessoas pretas e pardas estão, assim, mais expostas ao atraso do diagnóstico e tratamento, e da notificação oportuna da doença. O resultado do estudo corrobora essa hipótese e evidencia as barreiras enfrentadas por esse contingente no acesso à saúde de qualidade no Brasil, um dos países mais desiguais do mundo. 26
A forma clínica pulmonar da TB, a mais frequente no Brasil, 5 contribuiu com a maior parte dos casos notificados pós-óbito, como se verificou. Pessoas com TB pulmonar e notificação apenas no pós-óbito são ainda assim preocupantes, devido a seu potencial de transmissão, muito embora haja disponibilidade de testes diagnósticos acurados e tratamento efetivo gratuito, em todo o país, para prover melhor prognóstico que outras formas clínicas. 27
Contudo, os casos com TB extrapulmonar foram mais frequentes entre pessoas coinfectadas com HIV/aids. É conhecida a forte associação entre TB extrapulmonar e infecção por HIV. 6,28 Em geral, é maior a dificuldade do diagnóstico dessa forma clínica da TB, mais ainda em pessoas com HIV, o que favorece a subdetecção da TB nessa população e justifica, em parte, os resultados encontrados.
Os municípios com alto IDHM, grande porte populacional e baixa taxa de pobreza, principalmente aqueles situados nas regiões Sudeste e Nordeste, possuem grandes contingentes populacionais para justificar o maior número de casos de TB em todas as subcategorias, inclusive entre os casos com notificações pós-óbito. 6,29 Vale lembrar que, não obstante seus elevados IDHMs, esses grandes municípios também apresentam grandes desigualdades sociais e contingente elevado de populações vulneráveis, contribuindo sobremaneira com as demandas não atendidas pelos serviços de saúde e, por conseguinte, tendo maior possibilidade de casos com notificação pós-óbito.
Na população estudada, quando a TB foi uma causa associada, as principais causas básicas identificadas foram aids, doenças do aparelho respiratório, doenças circulatórias, neoplasias malignas, doenças do aparelho digestivo, transtornos mentais e comportamentais, hipertensão e diabetes mellitus , nesta ordem. Essa lista – é importante notar – apresenta doenças que demandam cuidados e acompanhamento contínuos dos profissionais de saúde. Esses achados confirmam a observação feita no estudo do Rocha et al. 17 ao caracterizarem as causas múltiplas de morte de uma coorte de casos notificados, esses autores encontraram doenças associadas semelhantes às supracitadas. Esse resultado permite inferir sobre falhas na integralidade do cuidado, e sobre perdas de oportunidades para o diagnóstico e manejo de pessoas com TB e seus contatos.
Pessoas atendidas em serviços de saúde públicos, no momento do óbito, foram responsáveis pela maior proporção de notificação pós-óbito de TB (sendo a TB a causa básica da morte ou não). Isto pode ser explicado pelo fato de o serviço público ser gratuito e sua cobertura nacional, e, consequentemente, abranger a maior parte da população. 11 Outrossim, pessoas atendidas nesses serviços possuem, em média, maior vulnerabilidade social, o que pode ter contribuído para a alta parcela de notificações de TB apenas após o óbito.
Casos residentes em municípios com baixa cobertura da Estratégia Saúde da Família e alta ou média cobertura da Atenção Básica contribuíram com alta proporção de notificação pós-óbito da TB. Essa situação pode refletir a população exposta a essas coberturas, uma vez que municípios maiores tendem a ter baixas coberturas desse tipo de atenção à saúde, especialmente da ESF. Além disso, esses resultados podem revelar territórios onde a porta de entrada no SUS não se dá, efetivamente, pela Atenção Primária à Saúde, comprometendo a ordenação do cuidado, assim como o adequado manejo e vigilância da TB. Fortalecer a Atenção Básica como estratégia de ordenação da atenção à saúde deve contribuir para o enfrentamento do problema e, possivelmente, reduzir a subdetecção e subnotificação de casos de TB nos municípios. De fato, segundo Rasella et al., 30 municípios com altas coberturas da ESF e da AB apresentam melhores indicadores de saúde.
A principal limitação deste trabalho está relacionada ao uso de dados secundários da rotina do sistema de vigilância em saúde. Dados incompletos, não acurados, e falta de padronização no preenchimento das notificações e Declarações de Óbito DO, entre outras falhas, podem favorecer vieses/erros de informação. Contudo, o SIM do Brasil é reconhecido como um sistema robusto, de cobertura acima de 95% dos óbitos estimados. 29 Outra limitação do estudo reside em ter considerado, como notificações pós-óbito, todos os casos notificados no Sinan com essa classificação e aqueles notificados exclusivamente no SIM, com base em pareamento probabilístico. O processo de relacionamento dos dois sistemas de informações pode ter falhado na identificação de todos os pares verdadeiros, permitindo a classificação errônea de caso como notificação pós-óbito. Isto poderia ter contribuído para uma superestimativa de casos. Finalmente, a população do estudo pode representar tanto (i) os indivíduos com acesso adequado ao diagnóstico e tratamento da TB, porém subnotificados pelo Sinan, quanto (ii) os indivíduos sem nenhum acesso à assistência em TB. Sendo assim, outra limitação consistiria na dificuldade em discriminar essas diferentes situações e melhor compreender os achados descritos. Todavia, o perfil de vulnerabilidade das pessoas identificadas nos leva a acreditar na segunda situação como a mais provável.
O estudo caracterizou pessoas que tiveram notificação pós-óbito da TB no Brasil, em 2014, seu perfil sociodemográfico e clínico, as características dos municípios de residência e outras variáveis selecionadas. A hipótese destas autoras é de que pessoas notificadas somente após o óbito são casos de TB subnotificados e, provavelmente, subdetectados, seja por dificuldade de diagnóstico, seja de acesso aos serviços de saúde. De qualquer forma, essas situações revelam uma fragilidade na qualidade da atenção recebida. Apesar de a TB ser uma doença tratável e evitável, em 2014, 2.703 pessoas foram diagnosticadas após o óbito e, provavelmente, não tiveram seus contatos alcançados pelos serviços de vigilância, o que confere relevância epidemiológica aos achados. É possível que esses casos reflitam importante perda de oportunidade, por parte do sistema de saúde, haja vista uma parcela relevante dos casos de TB notificados pós-óbito terem pelo menos uma condição crônica que, supostamente, demandasse acompanhamento contínuo.
Conclui-se, dos resultados apresentados, a necessidade de aperfeiçoamento da vigilância da TB no Brasil. É mister estimular o interesse pelo estudo dos fatores de risco associados ao diagnóstico e notificação pós-óbito dos casos de TB, com o objetivo de identificar como esses sujeitos se diferenciam daqueles que tiveram uma notificação regular. Esse tipo de abordagem pode auxiliar na formulação de estratégias e políticas de vigilância, visando aumentar a identificação oportuna de pacientes com tuberculose.