SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.29 número5Casos de tuberculose com notificação após o óbito no Brasil, 2014: um estudo descritivo com base nos dados de vigilânciaProjeção de internações em terapia intensiva pela COVID-19 no Distrito Federal, Brasil: uma análise do impacto das medidas de distanciamento social índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Serviços Personalizados

Journal

Artigo

Indicadores

  • Não possue artigos citadosCitado por SciELO

Links relacionados

  • Não possue artigos similaresSimilares em SciELO

Compartilhar


Epidemiologia e Serviços de Saúde

versão impressa ISSN 1679-4974versão On-line ISSN 2237-9622

Epidemiol. Serv. Saúde vol.29 no.5 Brasília  2020  Epub 19-Nov-2020

http://dx.doi.org/10.1590/s1679-49742020000500009 

Artigo Original

Caracterização das notificações de intoxicações exógenas por agrotóxicos no Rio Grande do Sul, 2011-2018

Caracterización de las notificaciones de intoxicaciones exógenas por agrotóxicos en Rio Grande do Sul, Brasil, 2011-2018

Amanda Brito de Freitas (orcid: 0000-0002-7157-9393)1  , Vanda Garibotti (orcid: 0000-0001-7350-8364)2 

1Escola de Saúde Pública do Rio Grande do Sul, Programa de Residência Integrada em Saúde com Ênfase em Vigilância em Saúde, Porto Alegre, RS, Brasil

2Secretaria de Estado da Saúde do Rio Grande do Sul, Centro Estadual de Vigilância em Saúde, Porto Alegre, RS, Brasil

Resumo

Objetivo:

Descrever o perfil das notificações de intoxicação exógena por agrotóxicos no Rio Grande do Sul, Brasil, no período de 2011 a 2018.

Métodos:

Estudo descritivo, sobre dados do Sistema de Informação de Agravos de Notificação. Foram incluídas variáveis sociodemográficas, clínicas e relacionadas aos agrotóxicos, apresentadas em frequências absoluta e relativa.

Resultados:

Foram notificados 3.122 casos suspeitos de intoxicação exógena por agrotóxicos. O principal agente tóxico foi o agrotóxico de uso agrícola (60%). Pulverização (42%) e diluição (18%) revelaram-se as atividades de maior exposição ao agrotóxico. A residência foi o principal local de ocorrência (59%), e a contaminação acidental (40%), o principal motivo da intoxicação. A maioria das intoxicações foi do tipo aguda-única (82%) e a avaliação clínica (61%), foi o critério mais utilizado para o diagnóstico.

Conclusão:

No Rio Grande do Sul, a maior parte dos registros de intoxicação exógena por agrotóxicos relacionaram-se a seu modelo de produção agrícola.

Palavras-chave: Agroquímicos; Envenenamento; Epidemiologia Descritiva; Sistemas de Informação

Resumen

Objetivo:

Describir el perfil de las notificaciones de intoxicaciones exógenas por agrotóxicos en Rio Grande do Sul, Brasil, de 2011 a 2018.

Métodos:

Estudio descriptivo que analizó datos del Sistema de Información de Enfermedades de Notificación. Se incluyeron variables sociodemográficas, clínicas y relacionadas con agrotóxicos, presentadas en frecuencia absoluta y relativa.

Resultados:

Se reportaron 3.122 casos sospechosos de intoxicación exógena por pesticidas. El principal agente tóxico fue el agrotóxico de uso agrícola (60%). Pulverización (42%) y dilución (18%) revelaron ser las actividades con mayor exposición al agrotóxico. La residencia fue el principal sitio de ocurrencia (59%), y la contaminación accidental (40%) la principal razón de la intoxicación. La mayoría de las intoxicaciones fue de tipo aguda-única (82%) y la evaluación clínica (61%) el criterio más utilizado para el diagnóstico.

Conclusión:

En Rio Grande do Sul, la mayoría de los registros de intoxicación exógena por agrotóxicos estaba relacionado con su modelo de producción agrícola.

Palabras clave: Agroquímicos; Envenenamiento; Epidemiología Descriptiva; Sistemas de Información

Introdução

As intoxicações exógenas são manifestações patológicas, causadas pela interação do sistema biológico com substâncias tóxicas, e podem ocorrer pela ingestão ou contato do agente tóxico com a pele, os olhos ou as mucosas.1 Os agrotóxicos, substâncias desenvolvidas para intervir em processos biológicos naturais, são produtos tóxicos, eminentemente danosos à saúde humana e ao meio ambiente. Os agrotóxicos estão envolvidos em muitos dos casos de intoxicação exógena, principalmente nos países de renda média e baixa em desenvolvimento e/ou emergentes.2

O Brasil é um dos principais consumidores de agrotóxicos no mundo. Segundo o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA), de 2005 até metade de 2019, foram registrados 2.940 produtos classificados como agrotóxicos.3 O setor da Agricultura é o que mais utiliza esses compostos químicos, além da própria Saúde Pública no controle de vetores e doenças, na medicina veterinária e no ambiente doméstico, principalmente no controle de insetos e pragas.4

No Rio Grande do Sul, as atividades agropecuárias são de grande relevância para a economia. O modelo de produção agrícola predominante, de monocultura e convencional, agroquímico, utiliza grande volume de agrotóxicos, sendo o estado um dos líderes na comercialização de agrotóxicos no país.5 Esse extenso uso de agrotóxicos no sistema produtivo rural aumenta não só a exposição do trabalhador aos agentes tóxicos senão também da população, pela contaminação da água, do solo, do ar e dos alimentos.6

A vigilância em saúde nas intoxicações exógenas por agrotóxicos tem, entre seus objetivos principais, reduzir a morbimortalidade pelo agravo nas populações expostas, mediante ações de promoção e proteção à saúde e prevenção do adoecimento. Por meio da notificação de um caso exposto ao agente tóxico, é possível realizar o monitoramento da ocorrência do agravo para o planejamento de ações estratégicas de controle.7 Não obstante, há escassez de estudos recentes que incluam fatores relacionados à exposição humana aos agrotóxicos no Rio Grande do Sul que possam subsidiar as ações da vigilância em saúde.

O presente estudo objetivou descrever o perfil das notificações de intoxicação exógena por agrotóxicos no estado, no período de 2011 a 2018.

Métodos

Estudo descritivo de análise sobre dados secundários de notificação de intoxicação exógena por agrotóxicos no estado do Rio Grande do Sul, Brasil, no período de 2011 a 2018.

O Rio Grande do Sul possui mais de 11 milhões de habitantes, distribuídos em 497 municípios. Situado na região Sul do país, o estado dispõe de uma área territorial de 281.707,151km.2,8 Com a maior parte da economia baseada na agricultura e pecuária, em 2014, o Rio Grande do Sul era o quinto estado brasileiro com maior volume de comercialização de agrotóxicos e letalidade de intoxicação por esses produtos: 3,77 casos por 100 mil hab., superior à taxa média nacional.9

O Ministério da Saúde integrou a intoxicação exógena (incluindo a intoxicação por agrotóxicos) à lista de notificação compulsória, com a publicação da Portaria GM/MS no 2.472, em 31 de agosto de 2010, tornando obrigatório o registro, no Sistema de Informação de Agravos de Notificação (Sinan), de todo caso suspeito de intoxicação por agrotóxicos. Esta notificação deve ser realizada em qualquer caso suspeito, definido como todo aquele indivíduo que tenha sido exposto a substâncias químicas, apresente sinais e sintomas clínicos de intoxicação e/ou alterações laboratoriais provavelmente ou possivelmente compatíveis.10

Para a coleta de dados, foi utilizado o programa Tabnet, um tabulador genérico do Departamento de Informática do Sistema Único de Saúde (Datasus), do Ministério da Saúde, que disponibiliza, publicamente, dados das notificações de intoxicação exógena do Sinan. Os dados são gerados a partir do preenchimento das fichas de investigação de intoxicação exógena e são alimentados pelas secretarias municipais de saúde, unificados em nível estadual e consolidados em um banco de dados nacional. Para a tabulação, a partir dessa base de dados, foram selecionados os registros de casos suspeitos de intoxicações exógenas em que o agente tóxico relacionado à intoxicação se classificava em um dos cinco grupos de agrotóxicos (agrotóxico de uso agrícola; agrotóxico de uso doméstico; agrotóxico de uso na Saúde Pública; produto veterinário; raticida). Foram analisados os registros de casos ocorridos no Rio Grande do Sul, no período de 1° de janeiro de 2011 a 31 de dezembro de 2018. Todos os dados foram extraídos no dia 27 de julho de 2019 (atualizados no sistema no dia 25 de julho de 2019) e acessados na página eletrônica http://200.198.173.165/scripts/deftohtm.exe?snet/iexogrs.

Foram avaliadas as seguintes variáveis:

  1. Sociodemográficas

    • faixa etária (em anos: menor de 10; 10 a 19; 20 a 39; 40 a 59; 60 ou mais);

    • sexo (masculino; feminino);

    • raça/cor da pele (branca; preta; amarela; parda; indígena);

    • escolaridade (não estudou; 1 a 4ᵃ série, incompleta; 4ᵃ série completa; 5ᵃ a 8ᵃ série, incompleta; ensino fundamental completo; ensino médio incompleto; ensino médio completo; educação superior incompleta; educação superior completa; não se aplica).

  2. Relacionadas à exposição ao agrotóxico

    • local de ocorrência (residência; ambiente de trabalho; ambiente externo; outros);

    • zona de exposição (urbana; rural; periurbana);

    • grupo do agente tóxico (classificação geral) envolvido na intoxicação (agrotóxico agrícola; agrotóxico de uso doméstico; agrotóxico de uso na Saúde Pública; raticida; produto veterinário);

    • finalidade de utilização do agrotóxico (inseticida; herbicida; carrapaticida; raticida; fungicida; preservante de madeira; outra);

    • atividade exercida com o agrotóxico na exposição atual (diluição; pulverização; tratamento de sementes; armazenagem; colheita; transporte; desinsetização; produção; outras; não se aplica);

    • circunstância da exposição/contaminação com agrotóxico (uso habitual; acidental; ambiental; tentativa de suicídio; outras [uso terapêutico, prescrição médica inadequada, erro de administração, automedicação, abuso, ingestão de alimento ou bebida, tentativa de aborto, violência, homicídio ou outra circunstância descritiva]);

    • tipo de exposição (aguda-única; aguda-repetida; crônica; aguda sobre crônica).

  3. Critério de confirmação da intoxicação (laboratorial; clínico-epidemiológico; clínico)

  4. Mês de ocorrência da intoxicação.

Foram calculadas as completudes das variáveis e as frequências absolutas e relativas (%), utilizando-se o programa Microsoft Office Excel® versão 2007.

A taxa de notificação, por ano do período estudado (2011-2018), foi calculada dividindo-se o número total de notificações de intoxicação exógena por agrotóxicos no Rio Grande do Sul pela população residente, expressos por 100 mil hab. Os dados populacionais do estado foram obtidos de projeções intercensitárias, realizadas pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística e utilizadas pelo Tribunal de Contas da União.

O estudo foi realizado exclusivamente com dados secundários, sem identificação dos sujeitos, obtidos de uma base de dados de acesso público, não sendo necessária, portanto, a submissão do projeto a um Comitê de Ética em Pesquisa.

Resultados

No Rio Grande do Sul, no período de 2011 a 2018, foram notificados 3.122 casos suspeitos de intoxicação exógena por agrotóxicos. Na Figura 1, é possível acompanhar o aumento da incidência das notificações de intoxicação por agrotóxicos ao longo dos anos, com um crescimento expressivo a partir de 2015. A maior taxa de notificação foi verificada em 2018: 7,56 casos por 100 mil hab.

Figura 1 Taxa de notificação de intoxicação exógena por agrotóxicos, Rio Grande do Sul, 2011-2018 

A completitude das informações com relação às variáveis analisadas variou de 66 a 100%. A maioria dos casos era do sexo masculino (1.987; 64%), sendo o intervalo entre os 20 e os 49 anos a faixa etária com maior frequência, correspondendo a 56% dos casos (1.740). Com relação à raça/cor da pele, os indivíduos brancos representaram 87% das notificações (2.574). Quanto à escolaridade, a maior frequência foi observada entre pessoas que haviam cursado até entre a 5ᵃ e a 8ᵃ séries, correspondendo a 23% (524); 1,5% dos casos não estudou (Tabela 1).

Tabela 1 Distribuição das características sociodemográficas dos casos notificados de intoxicação exógena por agrotóxicos, Rio Grande do Sul, 2011-2018 

Características sociodemográficas n %
Faixa etária, em anos (n=3.122)
<10 345 11,0
10-19 253 8,1
20-29 633 20,3
30-39 558 17,9
40-49 549 17,6
50-59 466 14,9
≥60 318 10,2
Sexo (n=3.121)a
Masculino 1.987 63,7
Feminino 1.134 36,3
Raça/cor da pele (n=2.961)a
Branca 2.574 86,9
Preta 121 4,1
Amarela 4 0,2
Parda 249 8,4
Indígena 13 0,4
Escolaridade (n=2.263)ᵃ
Não estudou 34 1,5
1ᵃ a 4ᵃ série incompleta 318 14,0
4ᵃ série completa 193 8,5
5ᵃ a 8ᵃ série incompleta 524 23,2
Ensino fundamental completo 237 10,5
Ensino médio incompleto 212 9,4
Ensino médio completo 314 13,9
Educação superior incompleta 45 2,0
Educação superior completa 53 2,3
Não se aplica 333 14,7

a)Variáveis para as quais os campos preenchidos como ‘ignorado’ foram excluídos do cálculo da frequência.

Os meses de maior ocorrência de registros foram os do verão (Figura 2). Ao se comparar a ocorrência de casos no mês de junho e julho (inverno) com as ocorrências apenas no mês de dezembro (verão), observou-se que o número de registros em dezembro foi quase quatro vezes maior.

Figura 2 Distribuição das notificações de intoxicação exógena por agrotóxicos segundo o mês de ocorrência, Rio Grande do Sul, 2011-2018 

Na Tabela 2, vê-se que grande número de registros referiu como agente tóxico as substâncias classificadas como ‘agrotóxico de uso agrícola’, correspondendo a aproximadamente 60% (1.860) do total dos casos investigados. Quando se fez um recorte para as crianças menores de 10 anos, o principal agente tóxico foi o raticida, correspondendo a 51% dos casos (176). Em relação à finalidade de uso dos agrotóxicos, identificou-se incompletude da ficha de investigação em mais de um terço dos registros (36%). Não obstante, verificou-se que os herbicidas (47%; 936) e os inseticidas (36%; 731) foram as principais classes de agrotóxicos relacionadas com a intoxicação exógena. Ao se examinar a atividade desenvolvida com agrotóxico em que houve a suspeita de caso de intoxicação, a pulverização (42%; 860) e a diluição (18%; 374) foram as principais.

Tabela 2 Distribuição das características do agente tóxico envolvido nos casos notificados de intoxicação exógena por agrotóxico, Rio Grande do Sul, 2011-2018 

Características do agente tóxico Total de casos (3.222) Crianças <10 anos (345)
Grupo do agente tóxico n % n %
Agrotóxico de uso agrícola 1.860 59,6 48 13,9
Agrotóxico de uso doméstico 375 12,0 62 18,0
Agrotóxico de uso na Saúde Pública 68 2,2 1 0,3
Raticida 545 17,4 176 51,0
Produto de uso veterinário 274 8,8 58 16,8
Finalidade de uso (2.010)a n %
Inseticida 731 36,4
Herbicida 936 46,6
Carrapaticida 34 1,7
Raticida 14 0,7
Fungicida 149 7,4
Preservante de madeira 1 0,0
Outro 129 6,4
Não se aplica 16 0,8
Atividade de exposição (2.071)a n %
Diluição 374 18,1
Pulverização 860 41,5
Tratamento de sementes 65 3,1
Armazenagem 29 1,4
Colheita 236 11,4
Transporte 22 1,1
Desinsetização 127 6,1
Produção 14 0,7
Outros 213 10,3
Não se aplica 131 6,3

a)Variáveis para as quais os campos preenchidos como ‘ignorado’ foram excluídos do cálculo da frequência.

Com relação ao local de ocorrência da intoxicação, as maiores frequências foram encontradas na residência e no ambiente de trabalho, correspondendo a 59% (1.785) e 34% (1.021), respectivamente (Tabela 3). Quanto à circunstância em que ocorreu a contaminação com o agrotóxico, destacaram-se a proporção da intoxicação acidental (40%; 1.230) e a tentativa de suicídio (26%; 801). O maior número de notificações foi atribuído às intoxicações do tipo aguda-única (82%; 2.387), ou seja, decorrente de uma única exposição.

Tabela 3 Distribuição das notificações de intoxicação exógena por agrotóxicos de acordo com a circunstância da contaminação, tipo de exposição e critério de confirmação, Rio Grande do Sul, 2011-2018 

Variável n %
Local de ocorrência (n=3.027)a
Residência 1.785 59,0
Ambiente de trabalho 1.021 33,7
Ambiente externo 120 4,0
Outros 101 3,3
Zona de exposição (n=2.727)a
Urbana 1.286 47,2
Rural 1.410 51,7
Periurbana 31 1,1
Contaminação (n=3.065)
Uso habitual 588 19,2
Acidental 1.230 40,1
Ambiental 262 8,6
Tentativa de suicídio 801 26,1
Outros 184 6,0
Tipo de exposição (n=2.917)
Aguda-única 2.387 81,8
Aguda-repetitiva 423 14,5
Crônica 78 2,7
Aguda sobre crônica 29 1,0
Critério de confirmação (n=2.799)
Clínico-laboratorial 226 8,1
Clínico-epidemiológico 868 31,0
Clínico 1.705 60,9

a)Variáveis para as quais os campos preenchidos como ‘ignorado’ foram excluídos do cálculo da frequência.

Discussão

Entre 2011 e 2018, no Rio Grande do Sul, verificou-se aumento das notificações de intoxicação por agrotóxicos no Sinan, com crescimento acentuado a partir de 2015. Os registros de intoxicações por agrotóxicos foram predominantes no sexo masculino, em adultos economicamente ativos, com agrotóxico do tipo agrícola (herbicidas e inseticidas) e em decorrência de atividades ocupacionais.

O aumento no registro de intoxicações por agrotóxicos pode estar associado ao aumento da comercialização dessas substâncias no Rio Grande do Sul e, também, ao incremento das ações de vigilância em saúde para captação dos registros. Em 2018, o estado ocupava o terceiro lugar no ranking de área plantada ou destinada à colheita, entre todas as Unidades da Federação, com 9.071.056 hectares ocupados.11 Apesar de tão grande área destinada à agricultura, em 2014, o estado ocupava o 21o lugar em relação à taxa de notificação de intoxicação por agrotóxicos, sugerindo uma subnotificação para o agravo.12 O cenário atual ainda é preocupante, pois, de acordo com estimativas da Organização Mundial da Saúde (OMS), para cada registro de intoxicação por agrotóxicos realizado, há outros 50 não notificados.13

Visando sensibilizar os profissionais de saúde para o reconhecimento e notificação dos casos de intoxicação por agrotóxicos no Rio Grande do Sul, foi criado em 2015, no âmbito do Centro Estadual de Vigilância em Saúde, um Grupo Técnico (GT Agrotóxicos) cuja proposta é discutir, elaborar e propor ações do Programa Estadual de Vigilância em Saúde de Populações Expostas aos Agrotóxicos (Portaria Estadual n° 514, de 20 de abril de 2015).14

A distribuição das notificações de intoxicação por agrotóxicos nos meses do ano coincide com a sazonalidade da safra das principais culturas produzidas no Rio Grande do Sul: soja, milho e arroz. Estas lavouras adaptam-se melhor aos meses mais quentes e, por conseguinte, possuem maior aplicação de agrotóxicos, em larga escala, em monocultivos de grandes extensões.15 Em contrapartida, os meses de inverno costumam ser o período de entressafra, com menor presença de insetos devido ao frio, o que reduz a utilização de agrotóxicos classificados como inseticidas.

A pulverização e a diluição foram as atividades de exposição com o maior risco de intoxicação. Ambas as atividades possibilitam maior contato com os agrotóxicos, um fato possivelmente agravado pela carência de orientação técnica, informação sobre a correta utilização desses produtos e uso de equipamento de proteção individual (EPI). Um estudo que avaliou os procedimentos de segurança do trabalho, em pequenos e médios agricultores no município de Araras, estado de São Paulo, demonstrou que 22% dos produtores não utilizavam nenhum tipo de EPI, comprovando a necessidade de aumento de informação, entre os agricultores, sobre os problemas de saúde aos quais estão expostos em seu ambiente laboral e a importância do uso de EPI como medida preventiva.16

A maioria das intoxicações notificadas ocorreu em residências, seguidas do ambiente de trabalho, sugerindo a existência de problemas no armazenamento e de descumprimento da distância mínima recomendada entre a lavoura e a residência, para a aplicação dos agrotóxicos. É comum que pequenos produtores armazenem seus insumos, incluindo os agrotóxicos, em galpões adjacentes ou mesmo no interior de seus domicílios. Outrossim, Agostinetto et al. concluem que a aplicação de agrotóxicos, a depender da velocidade do vento, provoca a ‘deriva’, uma das principais circunstâncias de intoxicação do aplicador e contaminação de ambientes próximos, motivo da importância de manter um distanciamento mínimo da residência até a plantação, e assim, evitar tais prejuízos.17 Monquero et al. mostraram que as residências dos aplicadores de pequenas e médias propriedades estavam muito próximas às lavouras: em 75% dos casos, essa distância era menor que 50 metros.14 Acrescenta-se o fato de os agrotóxicos estarem presentes dentro das residências, sejam do meio urbano ou do meio rural, para serem usados como inseticidas, raticidas e produtos destinados ao tratamento de piolhos e outros parasitas, aumentando ainda mais o risco de intoxicação no ambiente doméstico.

Entre os fatores que contribuem para a ocorrência da intoxicação por causas acidentais, estão o fácil acesso de crianças aos locais de depósito dessas substâncias, o manejo inadequado e o não uso de EPI.18 Cabe lembrar, ademais, a reutilização de embalagens de agrotóxicos, um dos fatores contributivos para intoxicações acidentais.18

A tentativa de suicídio representou a segunda maior causa de intoxicação por agrotóxico no Rio Grande do Sul, no período estudado. Evidências científicas associam a exposição aos inseticidas, especialmente os organofosforados, com sintomas de ansiedade e depressão.(19),(20) Nessa perspectiva, Faria et al., ao conduzirem um estudo nos municípios de Antônio Prado e Ypê, ambos do Rio Grande do Sul, verificaram uma prevalência elevada de transtornos psiquiátricos menores em trabalhadores rurais que faziam uso intensivo de agrotóxicos.21 A esta abordagem, Bombardi acrescentou a hipótese de uma relação entre o suicídio e o endividamento financeiro imposto à aquisição do pacote agroquímico, a que os agricultores estão subordinados, causando uma pressão psicológica nesses trabalhadores a ponto de os levar ao ato da tentativa de suicídio.22

A maior parte das intoxicações por agrotóxicos registradas no Rio Grande do Sul foram do tipo aguda, ou seja, quando os sintomas aparecem imediatamente após contato excessivo com o agente tóxico em um curto período de tempo. Nesses casos, é mais provável a procura por atendimento no serviço de saúde motivada pela busca emergencial da cessação dos sintomas; o que não ocorre nos casos crônicos, em que os quadros clínicos são indefinidos, inespecíficos, sutis, de longa evolução e, muitas vezes, irreversíveis, podendo se manifestar na forma de inúmeras doenças ao longo do tempo.10

Apesar de a relação causa-efeito ser mais visível nas intoxicações agudas, o diagnóstico ainda é deficiente e se baseia, na maioria das vezes, nas condições dos sinais e sintomas clínicos apresentados e na história pregressa. Há uma enorme limitação para a confirmação do diagnóstico de intoxicação por agrotóxicos mediante exames laboratoriais, os quais ajudariam a prescrever um tratamento mais específico. Não existem biomarcadores disponíveis para as principais substâncias utilizadas na agricultura. Somente o grupo químico dos organofosforados e carbamatos possui diagnóstico laboratorial disponível na rede de serviços de saúde, por dosagem da colinesterase plasmática e/ou eritrocitária, cujo resultado é fortemente influenciado por exposição ao álcool, outras drogas, comorbidades e hepatopatias; além do que, o diagnóstico laboratorial específico para esse grupo químico é indicado apenas para exposições recentes.23,24

Entre as limitações do estudo, a subnotificação é uma das fragilidades nos sistemas de informações, e alcançar uma completude satisfatória dos campos do formulário de notificação do Sinan ainda é um objetivo a ser alcançado, o que dificulta uma análise mais profícua dos registros. Os resultados apresentados tampouco expressam a dimensão real do problema, pois os registros de intoxicação para os casos crônicos são escassos, dado o pouco conhecimento e a dificuldade de diagnóstico.

No Rio Grande do Sul, a maior parte das notificações de intoxicação por agrotóxicos está relacionada ao uso indiscriminado e disseminado desses produtos, pujança do agronegócio no estado, que afeta principalmente os trabalhadores rurais envolvidos no uso direto dessas substâncias. Como o controle da exposição não é de atribuição exclusiva do setor Saúde, as ações devem sempre estar articuladas com a sociedade em geral e, especialmente, com os demais setores envolvidos, para sua maior efetividade. Da mesma forma, um modelo sustentável de agricultura e desenvolvimento deve ser buscado.

Referências

1. Romão MR, Vieira LJES. Tentativas suicidas por envenenamento. Rev Bras Promoção Saúde [Internet]. 2004 [citado 2020 ago 29];17(1):14-20. Disponível em: https://periodicos.unifor.br/RBPS/article/download/340/2039 [ Links ]

2. International Labor Organization - ILO. World day for safety and health at work: a background paper. In: Focus programme on safework [Internet]. Geneva: International Labour Office; World Health Organization; 2005 [cited 2020 Aug 29]. Available from: https://www.who.int/occupational_health/mediacentre/pr280405/en/ [ Links ]

3. Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento – MAPA (BR). Informações técnicas: registro concedido de 2005 a 2019 [Internet]. Brasília: MAPA; 2019 [citado 2019 jul 10]. Disponível em: http://www.agricultura.gov.br/assuntos/insumos-agropecuarios/insumos-agricolas/agrotoxicos/informacoes-tecnicas [ Links ]

4. Cassal VB, Azevedo LF, Ferreira RP, Silva DG, Simão RS. Agrotóxicos: uma revisão de suas consequências para a saúde pública. REGET [Internet]. 2014 abr [citado 2020 ago 29];18(1):437-45. Disponível em: https://doi.org/10.5902/2236117012498 [ Links ]

5. Ervilha IC. Relatório: vigilância em saúde de populações expostas a agrotóxicos no estado do Rio Grande do Sul [Internet]. Brasília: Ministério da Saúde; 2015 [citado 2020 ago 29]. 13 p. Disponível em: http://www.saude.gov.br/images/pdf/2015/julho/08/Relat--rio-Rio-Grande-do-Sul.pdf [ Links ]

6. Moreira JC, Jacob SC, Peres F, Lima JS, Meyer A, Oliveira-Silva JJ, et al. Avaliação integrada do impacto do uso de agrotóxicos sobre a saúde humana em uma comunidade agrícola de Nova Friburgo, RJ. Ciênc Saúde Coletiva [Internet]. 2002 [citado 2020 ago 29];7(2):299-311. Disponível em: http://dx.doi.org/10.1590/S1413-81232002000200010 [ Links ]

7. Ministério da Saúde (BR). Relatório: vigilância em saúde de populações expostas a agrotóxicos no estado do Rio Grande do Sul [Internet]. Brasília: Ministério da Saúde; 2015 [citado 2019 dez 10]. 13 p. Disponível em: https://portalarquivos2.saude.gov.br/images/pdf/2015/julho/08/Relat--rio-Rio-Grande-do-Sul.pdf [ Links ]

8. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística - IBGE. Panorama Rio Grande do Sul [Internet]. Rio de Janeiro: Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística; 2019 [citado 2020 fev 23]. Disponível em: https://cidades.ibge.gov.br/brasil/rs/panorama [ Links ]

9. Ministério da Saúde (BR). Secretaria de Vigilância em Saúde. Departamento de Vigilância em Saúde Ambiental e Saúde do Trabalhador. Relatório nacional de vigilância em saúde de populações expostas a agrotóxicos [Internet]. Brasília: Ministério da Saúde; 2018 [citado 2019 jun 15]. 191 p. Disponível em: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/relatorio_nacional_vigilancia_populacoes_expostas_agrotoxicos.pdf [ Links ]

10. Ministério da Saúde (BR). Secretaria de Vigilância em Saúde. Departamento de Vigilância em Saúde Ambiental e Saúde do Trabalhador. Diretrizes nacionais para a vigilância em saúde das populações expostas a agrotóxicos [Internet]. Brasília: Ministério da Saúde; 2017 [citado 2019 jul 21]. 28 p. Disponível em: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/diretrizes_vigilancia_populacoes_expostas_agrotoxicos.pdf [ Links ]

11. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística - IBGE. Área plantada ou destinada à colheita, área colhida, quantidade produzida, rendimento médio e valor da produção das lavouras temporárias e permanentes [Internet]. Rio de Janeiro: Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística; 2018 [citado 2020 fev 04]. Disponível em: https://sidra.ibge.gov.br/tabela/5457 [ Links ]

12. Ministério da Saúde (BR). Secretaria de Vigilância em Saúde. Departamento de Vigilância em Saúde Ambiental e Saúde do Trabalhador. Agrotóxicos na ótica do Sistema Único de Saúde [Internet]. Brasília: Ministério da Saúde; 2018 [citado 2020 ago 29]. 248 p. Disponível em: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/agrotoxicos_otica_sistema_unico_saude_v2.pdf [ Links ]

13. Carneiro FF, Augusto LGS, Rigotto, RM, Friedrich K, Burigó AC. Dossiê ABRASCO: um alerta sobre os impactos dos agrotóxicos na saúde [Internet]. Rio de Janeiro: ABRASCO; 2015 [citado 2020 ago 29]. Disponível em: https://www.abrasco.org.br/site/noticias/institucional/dossie-abrasco-um-alerta-sobre-os-impactos-dos-agrotoxicos-na-saude/9898/ [ Links ]

14. Rio Grande do Sul. Secretaria de Saúde. Portaria n° 514, de 20 de abril de 2015 [Internet]. Porto Alegre: Secretaria de Saúde; 2015 [citado 2019 ago 2]. Disponível em: https://saude.rs.gov.br/upload/arquivos/carga20170441/13054141-1448285820-514-20cevs.pdf [ Links ]

15. Manosso FC. A produtividade de soja, trigo e milho e suas relações com a precipitação pluviométrica no município de Apucarana-PR no período de 1968 a 2002. Geografia [Internet]. 2005 jan-jun [citado 2020 ago 29]:14(1):87-98. Disponível em: http://dx.doi.org/10.5433/2447-1747.2005v14n1p87 [ Links ]

16. Monquero PA, Inácio EM, Silva AC. Levantamento de agrotóxicos e utilização de equipamento de proteção individual entre os agricultores da região de Araras. Arq Inst Biol [Internet]. 2009 jan-mar [citado 2020 ago 29];76(1):135-9. Disponível em: http://www.biologico.sp.gov.br/uploads/docs/arq/v76_1/monquero.pdf [ Links ]

17. Agostinetto D, Puchalki LEA, Azevedo R, Storch G, Bezerra AJA, Grützmacher AD. Utilização de equipamentos de proteção individual e intoxicação por agrotóxicos entre fumicultores do Município de Pelotas-RS. Pesticidas: R Ecotoxicol Meio Ambiente [Internet]. 1998 jan-dez [citado 2020 ago 29];8:45-56. Disponível em: http://dx.doi.org/10.5380/pes.v8i0.39515 [ Links ]

18. Queiroz PR, Lima KC, Oliveira TC, Santos MM, Jacob JF, Oliveira AMBM. Sistema de Informação de Agravos de Notificação e as intoxicações humanas por agrotóxicos no Brasil. Rev Bras Epidemiol [Internet]. 2019 abr [citado 2020 ago 29];22:e190033. Disponível em: http://dx.doi.org/10.1590/1980-549720190033 [ Links ]

19. Rehner TA, Kolbo JR, Trump R, Smith C, Reid D. Depression among victims of south Mississippi's methyl parathion disaster. Health Soc Work [Internet]. 2000 Feb [cited 2020 Aug 29];25(1):33-40. Available from: https://doi.org/10.1093/hsw/25.1.33 [ Links ]

20. Stallones L, Beseler C. Pesticide poisoning and depressive symptoms among farm residents. Ann Epidemiol [Internet]. 2002 Aug [cited 2020 Aug 2020];12(6):389-94. Available from: https://doi.org/10.1016/s1047-2797(01)00298-8 [ Links ]

21. Faria NMX, Facchini LA, Fassa ACG, Tomasi E. Processo de produção rural e saúde na serra gaúcha: um estudo descritivo. Cad Saúde Pública [Internet]. 2000 jan-mar [citado 2020 ago 29];16(1):115-28. Disponível em: https://doi.org/10.1590/S0102-311X2000000100012 [ Links ]

22. Bombardi LM. A intoxicação por agrotóxicos no Brasil e a violação dos direitos humanos. In: Merlino T, Mendonça ML, editores. Direitos humanos no Brasil 2011: relatório da rede social de justiça e direitos humanos [Internet]. São Paulo: Rede Social de Justiça e Direitos Humanos; 2011 [citado 2020 ago 29]. p. 71-84. Disponível em: https://www.social.org.br/DH_2011_ALTA.pdf [ Links ]

23. Faria NMX, Fassa AG, Facchini LA. Intoxicação por agrotóxicos no Brasil: os sistemas oficiais de informação e desafios para a realização de estudos epidemiológicos. Ciênc Saúde Coletiva [Internet]. 2007 jan-mar [citado 2020 ago 29];12(1):25-38. Disponível em: https://doi.org/10.1590/S1413-81232007000100008 [ Links ]

24. Soares W, Almeida RM, Moro S. Trabalho rural e fatores de risco associados ao regime de uso de agrotóxicos em Minas Gerais, Brasil. Cad Saúde Pública [Internet]. 2003 ago [citado 2020 ago 29]; 19(4):1117-27. Disponível em: https://doi.org/10.1590/S0102-311X2003000400033 [ Links ]

Recebido: 27 de Março de 2020; Aceito: 28 de Julho de 2020

Endereço para correspondência: Amanda Brito de Freitas – Centro Estadual de Vigilância em Saúde, Av. Ipiranga, nº 5400, DVE, sala 77, Porto Alegre, RS, Brasil. CEP: 90610-030 E-mail: amandabf.nutri@gmail.com

Editora associada: Bárbara Reis-Santos - orcid.org/0000-0001-6952-0352

Contribuição das autoras

Freitas AB e Garibotti V participaram da concepção, delineamento do estudo, análise e interpretação dos resultados, redação e revisão crítica do conteúdo intelectual do manuscrito. Ambas as autoras aprovaram a versão final do manuscrito e são responsáveis por todos os aspectos do trabalho, incluindo a garantia de sua precisão e integridade, respondendo por ele em quaisquer circunstâncias solicitadas.

Creative Commons License This content is licensed under a Creative Commons Attribution 4.0 International License.