Introdução
Até 16 de abril de 2020, o mundo registrou mais de 2 milhões de casos de COVID-19, com 156.141 óbitos.1 A emergência da doença e a decorrente crise sanitária mundial ampliaram a demanda por serviços de assistência e, consequentemente, a exposição dos profissionais de saúde à infecção pelo SARS-CoV-2.2
O enfrentamento da doença expõe diversas situações de risco laboral: exposição repetida ao patógeno; extensas jornadas de trabalho, associadas com múltiplos vínculos; cansaço; estresse ocupacional; estigmatização; violências física e psicológica;3 e capacitação incipiente e da insuficiência/indisponibilidade de equipamentos de proteção individual (EPI).4
O espectro clínico da infecção pela COVID-19 inclui desde as infecções assintomáticas e síndromes gripais leves, podendo evoluir para condições respiratórias mais severas, como a síndrome respiratória aguda grave (SRAG), a depender do organismo e das comorbidades que ele apresenta. No Brasil, as infecções por vírus respiratórios constituem sistema de vigilância que tem como um de seus objetivos principais identificar, registrar e monitoraras características clínicas e epidemiológicas desses casos.5
Conhecer o perfil dos profissionais de saúde hospitalizados pela infecção do novo coronavírus no Brasil pode subsidiar a implementação de ações de prevenção e controle do adoecimento dessa população, tão essencial no enfrentamento da pandemia.
O objetivo deste estudo foi descrever os casos hospitalizados pela COVID-19 em profissionais de saúde no Brasil.
Métodos
Trata-se de um estudo descritivo dos casos hospitalizados por SRAG, confirmados para COVID-19 por exame de RT-PCR – teste de reação em cadeia da polimerase em tempo real.
A população brasileira é estimada em aproximadamente 212 milhões de pessoas, em 2020,6 e em janeiro deste mesmo ano, havia 1.535.523 profissionais de saúde atuando no país,7 distribuídos em cerca de 219 mil serviços de saúde, entre gestão pública e privada.8
Foram incluídos como participantes do estudo profissionais de saúde, identificados pelas variáveis ‘ocupação’ e ‘observações’, classificados conforme as categorias da Portaria do Ministério da Saúde MS/GM nº 639, de 31 de março de 2020, que dispõe sobre a Ação Estratégica ‘O Brasil conta comigo – Profissionais de Saúde’.9
A fonte consultada foi o Sistema de Informação de Vigilância da Gripe (SIVEP-Gripe), cujos dados, de acesso público, estão disponíveis no portal eletrônico do Ministério da Saúde (https://covid.saude.gov.br/) e foram extraídos em 28 de abril de 2020.
Utilizou-se o conceito de Semana Epidemiológica (SE), padronização internacional para as semanas de domingo a sábado, a contar da primeira semana com mais dias de janeiro à última com mais dias de dezembro. O estudo abrangeu as SEs 8 a 17 de 2020.
As variáveis estudadas foram:
a) data de início dos sintomas;
b) Unidade da Federação (UF) de residência;
c) idade (em anos: 23 a 29; 30 a 39; 40 a 49; 50 a 59; 60 ou mais);
d) sexo (feminino; masculino; ignorado);
f) raça/cor da pele (branca; preta; amarela; parda; indígena; ignorada);
g) presença (não; sim; ignorada) de comorbidades (cardiopatia; asma; diabetes mellitus; obesidade);
h) sinais e sintomas (febre; tosse; dor de garganta; dispneia; desconforto respiratório; baixa saturação; diarreia; vômito; outros);
i) evolução (cura; óbito; ignorada);
j) data de internação;
k) data de internação na unidade de terapia intensiva (UTI);
l) raio-X de tórax (normal; infiltrado intersticial; consolidação; misto; outro; não realizado; ignorado); e
m) uso de suporte ventilatório (sim, invasivo; sim, não invasivo; não; ignorado)
Ressalta-se que a variável ‘ocupação’ foi adicionada ao SIVEP-Gripe em 31 de março de 2020.
As análises foram realizadas mediante cálculo de medidas de frequência absoluta e relativa, tendência central e dispersão, com auxílio dos programas Microsoft Excel®, Epi Info 7.2 e QGIS 2.18.
O estudo foi realizado exclusivamente com dados secundários, não identificados e de acesso público.
Resultados
No Brasil, no período analisado, 15.317 casos hospitalizados de SRAG foram confirmados para COVID-19, e destes, 379 (2,5%) registraram ocupação, sendo 184 (1,2%) profissionais de saúde. O primeiro caso entre esses profissionais adoeceu em 2 de março, durante a SE 10, e o maior acometimento ocorreu na SE 13 (Figura 1).
As UFs com mais profissionais de saúde hospitalizados com COVID-19 foram São Paulo (n=101; 54,9%), Amazonas (n=15; 8,2%) e Santa Catarina (n=13; 7,1%) (Figura 2).
A mediana de idade dos profissionais adoecidos foi de 44 anos (variação: 23 a 85), com maior concentração nas faixas de 30 a 49 anos (n=113; 61,4%). Houve predominância do sexo feminino (n=110; 59,8%) e raça/cor da pele branca (n=74; 40,2%). Para raça/cor da pele, 67 (36,4%) casos tinham essa informação em branco/ignorada. Metade dos profissionais da saúde internados (n=92) apresentaram comorbidade, sendo 37 cardiopatas (incluindo hipertensão), 24 diabéticos e 16 asmáticos.
Enfermagem (n=89; 48,4%) e medicina (n=50; 27,2%) foram as principais áreas de ocupação descritas. Outros 29 (15,8%) casos foram registrados apenas como ‘profissional de saúde’ (Tabela 1).
Variáveis sociodemográficas | N | % | ||
---|---|---|---|---|
Sexo | ||||
Feminino | 110 | 59,8 | ||
Masculino | 74 | 40,2 | ||
Faixa etária (anos) | ||||
23-29 | 7 | 3,8 | ||
30-39 | 52 | 28,3 | ||
40-49 | 61 | 33,1 | ||
50-59 | 38 | 20,7 | ||
≥60 | 26 | 14,1 | ||
Raça/cor da pele | ||||
Branca | 74 | 40,2 | ||
Preta | 8 | 4,4 | ||
Parda | 32 | 17,4 | ||
Indígena | 1 | 0,5 | ||
Amarela | 2 | 1,1 | ||
Em branco/ignorada | 67 | 36,4 | ||
Comorbidades | 92 | 50,0 | ||
Cardiopatias (inclusive hipertensão arterial) | 37 | 40,2 | ||
Diabetes mellitus | 24 | 64,9 | ||
Asma | 16 | 66,7 | ||
Obesidade | 11 | 68,8 | ||
Pneumopatias | 4 | 36,4 | ||
Imunodepressão | 3 | 75,0 | ||
Área de ocupação | ||||
Enfermagem | 89 | 48,4 | ||
Técnico de enfermagem | 47 | 52,8 | ||
Enfermeiro | 33 | 37,1 | ||
Auxiliar em enfermagem | 9 | 10,1 | ||
Medicina | 50 | 27,2 | ||
Odontologia | 4 | 2,2 | ||
Medicina veterinária | 1 | 0,5 | ||
Fisioterapia | 2 | 1,1 | ||
Biomedicina | 5 | 2,7 | ||
Farmácia | 4 | 2,2 | ||
Profissional de saúdea | 29 | 15,7 |
aAqueles sem especificação da área de atuação.
Febre (n=153; 83,6%), tosse (n=151; 82,5%) e dispneia (n=136; 74,3%) foram os sinais e sintomas mais frequentes, seguidos de desconforto respiratório (n=120; 65,6%), saturação de oxigênio menor que 95% (n=90; 49,2%) e dor de garganta (n=49; 26,8%). Dos 96 (52,2%) profissionais de saúde que realizaram raio-X de tórax, 39 (49,6%) apresentaram infiltrado intersticial; 23 (12,5%) profissionais não realizaram o exame e, para 65 (35,3%), essa informação se encontrava em branco/ignorada. Dos 87 (47,3%) que utilizaram suporte ventilatório, 31 (35,6%) eram do tipo invasivo, 74 (40,2%) não o utilizaram e 23 (12,5%) contavam com essa informação em branco/ignorada.
A mediana da diferença de dias entre os primeiros sinais e sintomas e a internação foi de 6 dias, variando de zero a 32. Para os casos internados em UTI, essa mediana foi de 7 dias, variando de zero a 19. Do total de casos de profissionais de saúde, 27 (14,7%) evoluíram para óbito e 85 (46,2%) para cura, enquanto 72 (39,1%) contavam com essa informação em branco/ignorada.
A mediana de idade dos óbitos foi de 44 anos (mínima-máxima: 35-85), com predominância do sexo masculino (n=18). A maioria era constituída de trabalhadores das áreas da enfermagem (n=12) e da medicina (n=9). Outrossim, 24 dos óbitos apresentavam comorbidades, sendo mais frequentes cardiopatias (n=12), diabetes mellitus (n=7) e obesidade (n=5). São Paulo registrou 11 óbitos, e o Amazonas, 9.
Discussão
Foram descritos os primeiros profissionais de saúde hospitalizados, notificados e confirmados para COVID-19 no Brasil. Os casos ocorreram, predominantemente, entre o sexo feminino, adultos jovens, profissionais da medicina e da enfermagem, que apresentaram febre, tosse e dispneia e relataram cardiopatia, diabetes mellitus e asma mais frequentemente.
Tais achados corroboram Wang et al., que descreveram 138 casos de COVID-19 atendidos em hospital de Wuhan, China, onde febre e tosse foram os sintomas mais relatados, além de as comorbidades apresentadas serem semelhantes.10 Tambémvalidam os achados de Grasselli et al., que descreveram 1.591 casos na região da Lombardia, Itália setentrional, com faixas etárias e comorbidades igualmente semelhantes.11
A presente pesquisa ratifica, ademais, os dados sobre sexo, média de idade, raça/cor da pele e sinais e sintomas dos casos de COVID-19 em profissionais de saúde nos Estados Unidos, publicados pelo CDC (Centers for Disease Control and Prevention).12 Apesar da predominância do sexo feminino, justificada pela maior presença de mulheres dedicadas a essas atividades,13,14 os óbitos ocorreram, majoritariamente, no sexo masculino, confirmando, mais uma vez, os resultados dos trabalhos de Wang et al. e Grasselli et al.10,11
Uma proporção superior a 75% dos casos era de profissionais da medicina e da enfermagem, dada sua maior exposição nos atendimentos clínicos e emergenciais. A promoção e preservação da saúde desses profissionais é fundamental para a manutenção dos serviços essenciais, como o de atenção à saúde, em seus diversos níveis.
O processo e as condições de trabalho podem oferecer risco aos profissionais de saúde, enquanto potenciais fontes de exposição ao agente etiológico e, indiretamente, a seus familiares e demais contatos. Maior proximidade e mais tempo de atenção aos infectados, necessária a seus processos de trabalho, o uso e/ou disponibilidade de EPI inadequados, e por conseguinte, a exposição às diversas formas de transmissão do patógeno, podem levar ao adoecimento desses profissionais.15 Assim, o uso de máscaras, a adequada higienização das mãos, o uso de óculos e toucas, entre outros procedimentos-padrão, são medidas recomendadas de proteção da infecção no ambiente de trabalho.15–19
A fonte de dados utilizada pelo estudo registra apenas os casos hospitalizados com evolução para SRAG; não reflete a magnitude real do acometimento de profissionais de saúde pela COVID-19, consequente afastamento laboral e proporção de casos leves.
Acrescentam-se a essa limitação as diferentes formas de notificação adotadas, desde o advento da epidemia: os primeiros casos foram notificados com uso do software REDCap (sigla em inglês para Research Electronic Data Capture); posteriormente, os casos leves (não hospitalizados) foram notificados no e-SUS VE, ferramenta recém-criada para o registro de casos suspeitos e confirmados de COVID-19, disponibilizada pelo Departamento de Informática do SUS (Datasus);5 e os casos com evolução para SRAG, notificados no SIVEP-Gripe. Até o momento desta publicação, não se realizou um linkage dessas bases.
Ademais, a recente inserção da variável ‘ocupação’ na ficha de notificação pode explicar o registro tardio de casos de COVID-19 em profissionais de saúde (cinco semanas após a notificação do primeiro caso confirmado no Brasil), como também o pequeno número de casos notificados na extração dos dados e a baixa proporção de ‘ocupação’ preenchida nos registros descritos; além do tempo de digitação das fichas no SIVEP-Gripe, nem sempre oportuno.
Cumpre lembrar que a densidade de profissionais de saúde no território, aliada a outras variáveis, contribui para identificar capacidades de resposta ao cenário pandêmico.2 Não obstante, é incerto o número real de profissionais de saúde atuando nesse contexto, tanto como o número desses profissionais adoecidos em virtude do trabalho. Tal conhecimento pode auxiliar na estimativa deinsumose equipamentos necessários para o atendimento em saúde, de maneira a garantir a segurança no ambiente de trabalho, além de revelar a real magnitude dos riscos em que se encontra esse grupo laboral.
Assim, recomenda-se (i) o monitoramento contínuo dos casos da COVID-19 em profissionais de saúde e sua descrição (síndrome gripal e SRAG); (ii) a realização de linkage dos bancos de dados (SIVEP-Gripe, e-SUS VE e RedCAP), com a finalidade de avaliar a real magnitude da COVID-19 nesses profissionais; e (iii) a padronização no uso da variável ‘ocupação’, nas notificações do SIVEP-Gripe.