Introdução
A hanseníase representa um grave problema de Saúde Pública, de maior magnitude em países com baixa e média renda. Em 2017, foram registrados 210.671 novos casos de hanseníase em 150 países, resultando em uma taxa de detecção de 2,8 casos/100 mil habitantes. Do total de casos, 80,2% foram notificados em três países: Índia, Brasil e Indonésia.1
A anàlise dos indicadores epidemiológicos da doença possibilita avaliar a eficiência de medidas preventivas, acompanhar padrões de comportamento do agravo e o alcance de sua meta de eliminação no país.
No Brasil, a hanseníase apresenta elevada magnitude. Em 2017, foram notificados 25.862 novos casos, resultando em uma taxa de detecção na população geral de 12,9 casos/100 mil hab. As Unidades da Federação (UFs) com taxas mais elevadas foram: Mato Grosso (102,5 casos/100 mil habitantes), Tocantins (79,9 casos/100 mil hab.) e Maranhão (44,0 casos/100 mil hab.).2
Considerando-se a carga da hanseníase no Brasil, a análise dos indicadores epidemiológicos da doença possibilita avaliar a eficiência de medidas preventivas, acompanhar padrões de comportamento do agravo e o alcance de sua meta de eliminação no país. Além disso, o comportamento dos indicadores fornece subsídios para a gestão da doença pela Saúde, indicando a necessidade de formulação ou reformulação de estratégias de prevenção e políticas públicas. Especificamente, a análise por UFs e a identificação das mais endêmicas possibilita a implementação de intervenções focadas, de acordo com a necessidade e a realidade regional ou local.
O estudo teve como objetivo descrever a tendência temporal dos indicadores da hanseníase no estado de Goiás, no período de 2001 a 2017.
Métodos
Trata-se de um estudo ecológico de séries temporais que analisou os indicadores de morbidade e da qualidade das ações e serviços (operacionais) relativos à hanseníase no estado de Goiás, localizado na região Centro-Oeste do país, no período de 2001 a 2017.
Segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), Goiás apresentava população estimada de 6.921.161 hab. e renda média per capita de R$ 1.323,00 em 2018. Em 2010, o índice de desenvolvimento humano (IDH) do estado era de 0,735;3 no final de 2018, sua cobertura pela Estratégia Saúde da Família (ESF) era estimada em 66,6%; e a da Atenção Básica, em 73,4%.4
Foram utilizados dados do Sistema de Informação de Agravos de Notificação (Sinan). O tamanho da população residente, empregado como denominador, proveio do Censo Demográfico de 2010 e das projeções intercensitárias (2001 a 2017), realizados pelo IBGE.
Foram calculados dois blocos de indicadores, segundo as recomendações do Ministério da Saúde:5 (i) os indicadores de morbidade; e (ii) os indicadores da qualidade das ações e serviços. A forma de cálculo e o significado desses indicadores são apresentados na Figura 1.
Os dados foram analisados com auxílio do programa Stata versão 15.0. Para análise de tendência da doença no estado, utilizou-se a regressão linear generalizada de Prais-Winsten.6 As variáveis dependentes dos modelos foram os indicadores de morbidade e operacionais, logaritmizados; a variável independente correspondeu ao ano. A equação do modelo de regressão pode ser descrita da seguinte forma:
Onde:
β0 = constante ou intercepto
log(Yt) = valores logaritmizados da variável dependente
β1 = coeficiente de tendência linear
x = variável independente
O coeficiente de determinação (R2) foi utilizado como medida de ajustamento do modelo de regressão. A seguir, calculou-se a variação percentual anual (VPA) e respectivo intervalo de confiança de 95% (IC95%).6 Foi adotado o nível de significância de 5%. As tendências observadas foram classificadas como crescentes, estáveis ou decrescentes.6
Resultados
De 2001 a 2017, foram notificados 42.471 casos de hanseníase na população geral e 2.068 casos na população menor de 15 anos de idade, no estado de Goiás. As médias da taxa de detecção na população geral e em menores de 15 anos, em 2007 e 2017, foram de 43,3 casos/100 mil hab. e 7,9 casos/100 mil hab. respectivamente. Observou-se redução na taxa de detecção de hanseníase na população geral, de 60,6 para 20,0 casos/100 mil hab. entre 2001 e 2017 (∆%: -82,6), como também na população menor de 15 anos, de 10,1 para 3,7 por 100 mil hab. no mesmo período (∆%: -68,7) (Figura 2A). Verificou-se tendência decrescente na taxa de detecção na população geral (VPA = -6,8 – IC95% -8,2;-5,4) e na população menor de 15 anos (VPA = -7,2 – IC95% -8,5;-5,9) (Tabela 1).
Indicadores | R2a | VPAb | IC95%c | p-valor | Tendência | |
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Morbidade | ||||||
Taxa de detecção na população geral | 0,836 | -6,8 | -8,2;-5,4 | <0,001 | Decrescente | |
Taxa de detecção na população <15 anos de idade | 0,904 | -7,2 | -8,5;-5,9 | <0,001 | Decrescente | |
Proporção de grau 2 de incapacidade física | 0,617 | 3,7 | 2,0;5,3 | <0,001 | Crescente | |
Operacionais | ||||||
Proporção de cura | 0,808 | 1,1 | -0,6;2,7 | 0,178 | Estabilidade | |
Proporção de contatos examinados | 0,131 | 4,9 | -2,2;12,5 | 0,156 | Estabilidade | |
Proporção de incapacidade física examinada | 0,981 | 0,6 | 0,3;0,8 | 0,001 | Crescente |
a)R2: coeficiente de determinação.
b)VPA: variação percentual anual.
c)IC95%: intervalo de confiança de 95%.
A média da proporção de grau 2 de incapacidade física, estritamente na década de 2007 e 2017, foi de 4,5%. De fato, o indicador elevou-se de 3,3 para 6,5%/10 mil hab. no período de 2001 a 2017 (∆%: 97,0) (Figura 2B), sendo observada, portanto, tendência crescente da incapacidade física causada pela hanseníase em todo o período estudado (VPA = 3,7 – IC95% 2,0;5,3) (Tabela 1).
A proporção de cura apresentou média de 77,6% no período. A proporção de contatos examinados foi de 67,6%; e a proporção de incapacidade física examinada, de 91,9%. A proporção de cura dos casos novos variou de 83,6 a 84,4% (∆%: 0,3) entre 2001 e 2017 (Figura 2B). A proporção de contatos examinados aumentou de 72,3% em 2001 para 85,6% em 2017 (∆%: 18,4). A proporção de incapacidade física examinada variou de 88,9 a 95,0% (∆%: 6,9) entre 2001 e 2017.
Verificou-se tendência estável para proporção de cura (VPA = 1,1 – IC95% -0,6;2,7) e proporção de contatos examinados (VPA = 4,9 – IC95% -2,2;12,5); e tendência crescente para proporção de incapacidade física examinada (VPA = 0,6 – IC95% 0,3;0,8) (Tabela 1).
Discussão
De 2007 a 2017, observou-se tendência decrescente nas taxas de detecção de casos de hanseníase, tanto na população geral como em menores de 15 anos de idade, residentes no estado de Goiás. Verificou-se tendência crescente na proporção de grau 2 de incapacidade física, tendência estável na proporção de cura e de contatos examinados, e tendência crescente na proporção de incapacidades físicas examinada.
A taxa de detecção na população geral corresponde ao indicador primário da hanseníase, possibilita uma análise global da situação de saúde de uma população, direciona as estratégias de controle e aponta o risco de detecção do agravo.7,8 Verificou-se tendência decrescente nesse indicador – população geral – e na população menor de 15 anos. Entretanto, Goiás permaneceu com classificação muito alta para hanseníase (20,0 casos por 100 mil hab.) em 2017, taxa superior à encontrada para o Brasil (12,9 casos por 100 mil hab.).2 O mesmo padrão da tendência decrescente da hanseníase evidenciado no estudo em tela se apresenta em outras UFs onde a carga da doença é elevada, caso do Tocantins, Maranhão, Paraíba e Bahia, como também foi observado em nível global.9-13
Alguns fatores podem ter contribuído para a redução da magnitude e incidência da hanseníase em Goiás. Entre esses fatores, destacam-se (i) o aumento do diagnóstico precoce, mediante ações preventivas, (ii) o tratamento específico poliquimioterápico, (iii) o aumento da cobertura da ESF nos últimos anos, contribuindo para a identificação e priorização das famílias de risco e redução das iniquidades em saúde,14-16 (iv) a busca ativa dos contatos sociais e/ou familiares e entre crianças na idade escolar (e.g., campanhas em escolas) e (v) a vacinação/revacinação contra o bacilo de Calmette Guérin (BCG), a qual, embora não específica, oferece proteção e contribui com a prevenção de novos casos da doença.14,17,18 Tais medidas de prevenção e controle da hanseníase são estabelecidas pelas ‘Diretrizes para vigilância, atenção e eliminação da hanseníase como problema de saúde pública’, recomendadas pelo Ministério da Saúde para serem implementadas no contexto de todos os níveis da atenção à saúde.18
Observou-se tendência crescente da proporção de casos com grau 2 de incapacidade física, possivelmente indicativa de detecção tardia – a despeito do crescimento na cobertura da ESF –, além de dificuldades na prevenção das incapacidades.19 Estudos prévios têm mostrado tendência estacionária ou crescente8,11,20 desse indicador no Brasil. A avaliação do grau de incapacidade constitui importante ferramenta para a identificação de pacientes com maior risco de desenvolver novas incapacidades, durante o tratamento, no término do tratamento poliquimioterápico e após a alta, podendo contribuir para a diminuição da morbidade provocada pela doença.18
Nesta investigação, a proporção de cura apresentou tendência de estabilidade em Goiás, conforme verificado em estudos prévios.8,11,21 Esse resultado sugere intensificação das ações para promoção do tratamento poliquimioterápico oportuno e adequado aos pacientes.22 Verificou-se, ainda, tendência estável da proporção de contatos examinados. Outros estudos conduzidos no Brasil têm revelado tendência crescente desse indicador.8,11 A avaliação dos contatos examinados representa um dos indicadores capazes de avaliar as ações de vigilância pública da hanseníase,18 e seu aumento poderá contribuir para a interrupção da transmissão da infecção.22
O estudo apresenta algumas limitações. Foram utilizados dados secundários, suscetíveis a problemas na qualidade e quantidade (cobertura) das informações dos casos e variáveis da hanseníase. A possibilidade da ocorrência de subnotificação pode subestimar os indicadores. Entretanto, o estudo avaliou a magnitude e os principais indicadores da hanseníase em Goiás, o que pode subsidiar a avaliação das intervenções e ações de controle da doença realizadas ou a se realizar no estado.
Em conclusão, verificou-se tendência decrescente dos indicadores de morbidade – taxa de detecção na população geral e em menores de 15 anos de idade; taxa de prevalência – em Goiás, no período de 2001 a 2017. A proporção de cura e de contatos examinados apresentou estabilidade, enquanto a proporção de incapacidade física examinada cresceu. Todavia, a hanseníase apresenta elevada magnitude, caracterizando um sério problema de Saúde Pública no estado. Assim, faz-se necessário intensificar as ações de controle dessa doença, que atinge um número expressivo de pessoas em Goiás.