Introdução
A gravidez na adolescência é um fenômeno complexo, que envolve aspectos biológicos, sociais, econômicos e culturais e, portanto, assume diferentes significados, a depender do contexto em que ocorre.1 Anualmente mais de 16 milhões de mulheres adolescentes de 15 a 19 anos tornam-se mães, em países de média e baixa renda. Entre esses países localizados na América Latina-Caribe e África (2005-2010), foram estimadas taxas de 72 e 108 nascimentos/1 mil mulheres nessa faixa etária, respectivamente.2
No Brasil, a gravidez na adolescência tornou-se perceptível como problema de Saúde Pública a partir do aumento relativo da fecundidade em mulheres com até 19 anos de idade, passando de 7,1% em 1970 para 23% em 2006.3 A taxa de fecundidade teve variações importantes ao longo do período de 1990 a 2009, chegando a reduções de 30,6% na taxa média nacional da fecundidade geral do país, 36,4% na região Sul e 12,0% na região Norte.2 Dados da Pesquisa Nacional de Saúde do Escolar (PeNSE) no Brasil, realizada em 2015, evidenciaram que mais de 23 mil adolescentes, nas cinco grandes regiões do país, referiram já ter engravidado alguma vez.4
A gravidez na adolescência não deve ser classificada como de risco apenas pelo parâmetro biomédico. Também devem ser observados fatores como estilo de vida (uso de álcool e outras drogas), disponibilidade e utilização dos serviços de saúde e aspectos socioeconômicos.5 Inquérito realizado em capitais brasileiras (Rio de Janeiro, Porto Alegre e Salvador) evidenciou associação inversa entre gravidez na adolescência, grau de escolaridade e renda familiar.6 As barreiras de acesso à saúde, entre outros serviços públicos, foram também fatores relacionados à gravidez na adolescência.7
A evolução da gestação pode estar associada a diferentes contextos, que tornariam as adolescentes vulneráveis a riscos à saúde.9 Condições psicológicas negativas vivenciadas no período gestacional, e problemas decorrentes, podem afetar diretamente a sua saúde e a do bebê, como o diabetes gestacional e pré-eclâmpsia, esta última relacionada ao sofrimento fetal e prematuridade.10 Além disso, ao se tornarem mães, as adolescentes podem apresentar sofrimento psíquico intenso, autovalorização negativa e pouca ou nenhuma expectativa em relação ao futuro. Tais circunstâncias podem representar maior risco de repetência escolar, dificuldade para limitar a fecundidade, e dependência econômica.11 No Brasil, são poucos os estudos de agregados espaciais sobre gravidez na adolescência e todos evidenciaram sua relação com diversos determinantes socioeconômicos.3
O presente estudo propõe-se a ampliar a compreensão e produzir informações, não investigadas no nível individual, capazes de subsidiar a tomada de decisão no enfrentamento desse problema de Saúde Pública sob uma perspectiva coletiva. O objetivo do estudo foi identificar determinantes socioeconômicos e de atenção à saúde na variação espacial da gravidez na adolescência no Brasil, em 2014.
Métodos
Realizou-se um estudo ecológico, tendo como unidades de análise todos os municípios brasileiros. A população de estudo constituiu-se de mulheres de 15 a 19 anos de idade, residentes nos municípios do país, no ano de 2014. O desfecho de interesse foi a variação espacial da taxa de fecundidade na adolescência. Como variáveis independentes, foram considerados alguns indicadores de atenção à saúde e socioeconômicos dos municípios: número de consultas de pré-natal; proporção de cobertura da Estratégia Saúde da Família (ESF); renda familiar média per capita; proporção de população de baixa renda (até ½ salário mínimo – R$ 724,00 em 2014); densidade de moradores por domicílio; e o índice de Gini, um instrumento capaz de medir o grau de concentração de renda em determinado grupo. A medida do índice de Gini varia de 0 a 1, sendo o valor 0 representativo da situação de igualdade, e o valor 1, da concentração de riqueza.15 O número de nascidos vivos e as informações sobre as gestantes adolescentes foram extraídos do Sistema de Informações sobre Nascidos Vivos (Sinasc), do Ministério da Saúde. O prontuário eletrônico da Atenção Primária à Saúde (e-SUS APS) foi utilizado para coleta das informações sobre a cobertura da ESF. As projeções de população e de indicadores socioeconômicos, para cada município, provieram do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
As taxas de fecundidade na adolescência foram estimadas pela razão entre o número de nascidos vivos de puérperas de 15 a 19 anos de idade, residentes em cada município em 2014, e o número de mulheres de mesma faixa etária, residentes no mesmo município e ano, e foram apresentadas por cada 1 mil dessa faixa etária. No presente estudo, essa taxa foi interpretada como ‘risco de gravidez na adolescência’. A proporção de adequação do número de consultas de pré-natal foi estimada a partir das informações disponíveis no Sinasc, tendo-se considerado como adequado um número de sete ou mais consultas.16 Também foi calculada a proporção de adolescentes com baixo nível de escolaridade, a partir da proporção de puérperas de 15 a 19 anos com menos de 8 anos de estudo, utilizada como proxy para condição socioeconômica individual. As taxas brutas de fecundidade na adolescência foram calculadas para o Brasil e para cada município. A suavização dessas taxas foi realizada para minimizar flutuações aleatórias, produzidas pelos pequenos números, mediante aplicação do método bayesiano empírico global.17 Este método também utiliza dados de áreas vizinhas, para estimar o risco de ocorrência de um evento em cada área. Desse modo, obtêm-se estimativas que convergem para uma média local – em troca da média global –, logo menos instáveis.18 Realizou-se análise descritiva da distribuição de todos os indicadores empregados no estudo, a partir das respectivas medianas para o Brasil e para suas regiões geográficas. Mapas temáticos foram construídos com o propósito de identificar padrões na distribuição espacial das taxas de fecundidade suavizadas; a análise das taxas ajustadas pelas variáveis investigadas pautou-se no modelo regressivo espacial, utilizando-se o programa Qgis 2.18.
Para proceder à análise espacial, construiu-se uma matriz de vizinhança ou matriz de peso por adjacência, pelo Programa GeoDa 1.8. A existência de autocorrelação espacial entre as taxas suavizadas de fecundidade na adolescência foi avaliada pelo cálculo do índice global de Moran. As áreas de risco foram identificadas calculando-se o índice local de Moran (LISA: local indicator of spatial association), o que permitiu a avaliação da existência de aglomerados de valores similares (altos ou baixos), assumindo-se valor p<0,05. Após a identificação de autocorrelação espacial nas taxas suavizadas de fecundidade na adolescência, nos municípios, a existência de associação entre as taxas e as respectivas variáveis independentes (indicadores socioeconômicos e de atenção à saúde) foi avaliada. Foram construídos modelos de regressão linear espacial autorregressivos (SAR), bivariado e multivariado, e calculados os respectivos intervalos de confiança de 95% (IC95%).
Todas as análises estatísticas foram realizadas com uso dos softwares Stata versão 13 e GeoDa 1.8. O estudo foi desenvolvido com dados secundários de domínio público e, portanto, não foi necessária a submissão do projeto a um Comitê de Ética em Pesquisa, conforme estabelece a Resolução do Conselho Nacional de Saúde (CNS) nº 466, de 12 de dezembro de 2012.
Resultados
Foram avaliados 5.157 (92,6%) dos 5.570 municípios brasileiros. Os 413 municípios excluídos, em sua maioria, pertenciam às regiões Sul e Sudeste, e sua exclusão deveu-se à inexistência de informações necessárias para o estudo.
No ano de 2014, a taxa bruta de fecundidade na adolescência, no Brasil, foi de 65,1/1 mil mulheres de 15 a 19 anos. Nas regiões Norte, Centro-Oeste e Nordeste, particularmente em municípios com mais de 50 mil habitantes, essas taxas variaram entre 73/1 mil e 103/1mil mulheres de 15 a 19 anos. No Sul e Sudeste, as taxas foram estimadas em 55/1 mil e 56/1 mil mulheres de 15 a 19 anos, respectivamente.
A mediana da taxa suavizada de fecundidade na adolescência no Brasil foi de 65,6/1 mil mulheres de 15 a 19 anos (intervalo interquartil: 48,56 a 49,1) (Tabela 1). As regiões Norte, Centro-Oeste e Nordeste apresentaram medianas mais elevadas: 93,5/1 mil, 73,1/1 mil e 69,3/1 mil mulheres de 15 a 19 anos, respectivamente. As mais elevadas medianas das proporções da população de baixa renda (até ½ salário mínimo) foram observadas nas regiões Norte (30,2%) e Nordeste (32,6%), assim como as maiores proporções de densidade de moradores por domicílio e de mães adolescentes com menos de oito anos de estudo; nessas regiões, também foram verificadas as menores proporções de número adequado de consultas de pré- -natal. A região Norte apresentou a menor proporção de cobertura da ESF (80,0% – IC95% 55,1;93,4) em relação às demais regiões (Tabela 1).
Indicadores | Norte (n=442) | Nordeste (n=1.768) | Sudeste (n=1.512) | Sul (n=1.019) | Centro-Oeste (n=416) | Brasil (n=5.157) |
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Taxa de fecundidade na adolescênciaa | 93,5 (74,2;113,6) | 69,3 (56,1;84,1) | 53,3 (43,5;64,8) | 54,2 (39,9;68,2) | 73,1 (59,1;87,7) | 65,6 (48,56;49,1) |
Índice de Gini | 0,6 (0,5;0,6) | 0,5 (0,5;0,6) | 0,4 (04;0,5) | 0,4 (0,4;0,5) | 0,5 (0,4;0,5) | 0,5 (0,42;0,53) |
Renda familiar média per capita (em salários mínimos) | 314,5 (229,0;406,0) | 253,1 (218,0;295,0) | 572,5 (443,0;701,0) | 658,3 (305,0;799,0) | 559,3 (472,0;645,0) | 440,5 (268,0;631,0) |
Proporção (%) da população de baixa rendab | 30,2 (17,0;44,0) | 32,6 (24,0;40,0) | 3,7 (1,1;9,5) | 1,3 (0,1;5,3) | 3,6 (0,5;9,6) | 11,5 (2,1;31,0) |
Densidade de moradores por domicílio | 3,6 (3,2;4,4) | 3,3 (3,2;3,5) | 3,0 (2,9;3,1) | 2,9 (2,8;3,0) | 2,9 (2,8;3,0) | 3,1 (2,9;3,3) |
Cobertura (%) da Estratégia Saúde da Família | 80,0 (55,1;93,4) | 93,4 (85,2;100,0) | 92,8 (65,8;100,0) | 95,6 (73,4;100,0) | 89,0 (74,2;100,0) | 93,3 (74,8;100,0) |
Proporção (%) de consultas de pré-natal em número adequadoc | 47,8 (36,0;60,6) | 59,1 (47,0;70,4) | 76,8 (69,4;83,0) | 78,9 (69,5;85,4) | 68,5 (59,1;76,3) | 69,6 (56,4;79,5) |
Taxa de escolaridaded (%) | 3,4 (2,0;5,3) | 2,9 (2,0;3,8) | 1,4 (0,8;2,0) | 1,6 (1,0;2,2) | 1,8 (1,1;2,7) | 2,0 (1,2;4,4) |
a) Taxa de fecundidade em mulheres de 15 a 19 anos de idade (por 1 mil mulheres) suavizada pelo método bayesiano empírico – proxy para gravidez na adolescência.
b) Até ½ salário mínimo.
c) Receberam sete ou mais consultas de pré-natal.
d) Taxa de escolaridade como proxy para condição socioeconômica.
A maioria dos municípios das regiões Norte e Centro-Oeste apresentaram taxas suavizadas de fecundidade na adolescência mais elevadas, com valores entre 37/1 mil e 96/1 mil mulheres de 15 a 19 anos (Figura 1). A análise das taxas ajustadas pelas variáveis investigadas evidenciou que as regiões Norte e Nordeste apresentaram maior número de municípios com elevadas taxas suavizadas de gravidez na adolescência. A intensidade desse indicador foi heterogênea em determinadas áreas: menor em municípios das regiões Sul e Centro-Oeste, e maior em alguns municípios das regiões Norte e Sudeste. O índice global de Moran apresentou autocorrelação espacial estatisticamente significante (I = 0,790; p<0,001) para as taxas de fecundidade na adolescência, indicando dependência espacial.
a) Avaliada pelo índice local de Moran, por meio de avaliação da existência de aglomerados de valores similares (altos ou baixos), assumindo-se p-valor<0,05.
b) Taxa transformada pelo método bayesiano empírico.
Na avaliação de áreas consideradas de risco para esse desfecho, o índice local de Moran também revelou dependência espacial estatisticamente significante (Figura 2). Os agregados de municípios vizinhos que apresentaram taxas elevadas (alto/alto) localizavam-se na região Centro-Oeste, no Nordeste e, em destaque, os municípios da região Norte, apresentando valores iguais ou superiores a 37/1 mil mulheres de 15 a 19 anos. Os agregados de municípios vizinhos com taxas mais baixas (baixo/baixo) estavam localizados nas regiões Sudeste e Sul, com taxas variando entre 27/1 mil e 36/1 mil mulheres de 15 a 19 anos. Os municípios com áreas de transição, ou seja, com taxas baixas e vizinhos com taxas elevadas (baixo/alto), estavam concentrados na região Norte. Aqueles com taxas altas e vizinhos com taxas baixas (alto/baixo) estavam dispersos nas regiões Sul e Sudeste (Figura 2).
a) Avaliada pelo índice local de Moran, por meio de avaliação da existência de aglomerados de valores similares (altos ou baixos), assumindo-se p-valor<0,05.
b) Taxa transformada pelo método bayesiano empírico.
Os valores do índice global de Moran bivariados para cada indicador avaliado foram: cobertura da ESF (I = 0,145; p<0,001); índice de Gini (I = 0,278; p<0,001); densidade de moradores por domicilio (I = 0,342; p<0,001); renda familiar média per capita (I = 0,477; p<0,001); proporção de mães adolescentes com menos de oito anos de estudo (I = 0,517; p<0,001); proporção de número adequado de consultas de pré-natal (I = 0,662; p<0,001); e proporção da população de baixa renda (I = 0,807; p<0,001) (Tabela 2).
Indicadores | Índice de Moran | p-valor |
---|---|---|
Índice de Gini | 0,278 | <0,001 |
Renda familiar média per capita (em salários mínimos) | 0,477 | <0,001 |
Proporção (%) da população de baixa rendab | 0,807 | <0,001 |
Densidade de moradores por domicílio | 0,342 | <0,001 |
Cobertura (%) da Estratégia Saúde da Família | 0,145 | <0,001 |
Proporção (%) de consultas de pré-natal em número adequadoc | 0,662 | <0,001 |
Puérperas (%) de 15 a 19 anos com menos de oito anos de escolaridade | 0,517 | <0,001 |
a) Taxa de fecundidade em mulheres de 15 a 19 anos (por 1mil mulheres) suavizada pelo método bayesiano empírico – proxy para gravidez na adolescência.
b) Até ½ salário mínimo.
c) Realização de sete ou mais consultas de pré-natal.
Na análise de regressão linear espacial multivariada, foi observada associação inversa entre variação espacial das taxas suavizadas de fecundidade na adolescência e os seguintes fatores: (i) baixa renda média familiar per capita (β = -0,104 – IC95% -0,105;-0,103); (ii) proporção de mulheres de 15 a 19 anos com número adequado de consultas de pré-natal (β = -0,122 – IC95% -0,224;-0,132); e (iii) cobertura da ESF (β = -0,011 – IC95% -0,017;-0,005) (Tabela 3). Entretanto, essas associações foram positivas quando avaliados os seguintes indicadores municipais: índice de Gini (β = 7,031 – IC95% 4,793;9,269), densidade de moradores por domicilio (β = 6,292 – IC95% 5,062;7,522), proporção da população de baixa renda (β = 0,127 – IC95% 0,108;0,145) e proporção de mães de 15 a 19 anos com menos de oito anos de estudo (β = 0,260 – IC95% 0,224;0,295) (Tabela 3).
Indicadores | Regressão linear espacial bivariada β (IC95%c) | Regressão linear espacial multivariada β (IC95%c) |
---|---|---|
Índice de Gini | 5,433 (3,196;7,671) | 7,031 (4,793;9,269) |
Renda familiar média per capita (em salários mínimos) | -0,099 (-0,100;-0,098) | -0,104 (-0,105;-0,103) |
Proporção (%) da população de baixa rendad | 0,095 (0,076;0,113) | 0,127 (0,108;0,145) |
Densidade de moradores por domicílio | 1,760 (1,637;1,88) | 6,292 (5,062;7,522) |
Cobertura (%) da Estratégia Saúde da Família | -0,003 (-0,004;-0,003) | -0,011 (-0,017;-0,005) |
Proporção (%) de consultas de pré-natal em número adequadoe | -0,054 (-0,064;-0,044) | -0,122 (-0,224;-0,132) |
Proporção (%) de puérperas de 15 a 19 anos com menos de 8 anos de escolaridade | 0,295 (0,331;0,260) | 0,260 (0,224;0,295) |
a) Obtidos pelo método bayesiano empírico.
b) Taxa de fecundidade em mulheres de 15 a 19 anos (por 1 mil mulheres) suavizada pelo método bayesiano empírico – proxy para gravidez na adolescência.
c) IC95%: intervalo de confiança de 95%.
d) Até ½ salário mínimo.
e) Realização de sete ou mais consultas de pré-natal.
Discussão
Este estudo evidenciou uma taxa de fecundidade na adolescência – faixa etária de 15 a 19 anos – bastante elevada no Brasil, no ano de 2014. A distribuição espacial apontou maiores taxas nas regiões Centro-Oeste, Nordeste e Norte, esta última apresentando maior proporção de aglomerados de municípios em transição de risco baixo/alto, ou seja, municípios com taxas baixas e influenciados por áreas vizinhas com altas taxas. Na região Sudeste, observou-se o maior número de aglomerados de risco alto/baixo, representando aqueles aglomerados de municípios com altas taxas e que sofrem a influência de áreas vizinhas com baixas taxas, levando, possivelmente, à redução das taxas. Fatores como a cobertura da ESF, proporção de adolescentes com número adequado de consultas de pré-natal e a baixa renda média familiar per capita apresentaram relação inversa com a taxa de fecundidade na adolescência, demonstrando homogeneidade das áreas. A taxa de fecundidade na adolescência foi positivamente associada a indicadores municipais, como o índice de Gini, densidade de moradores por domicílio, proporção da população de baixa renda e proporção de mães adolescentes com baixa escolaridade.
O risco de gravidez entre adolescentes observado no Brasil foi cerca de quatro vezes superior ao estimado para países da Europa em 2010 (16,2/1 mil mulheres de 15 a 19 anos), e pouco mais que o dobro do risco observado em países da América do Norte (28,3/1 mil).20 Estes fatos evidenciam as acentuadas desigualdades sociais, já reconhecidas, entre países de alta, média e baixa renda.21 Em todo o mundo, a maior ocorrência de gravidez está associada a grupos de vulnerabilidade social e, nessa realidade, 43,0% das gravidezes não são planejadas.9 No presente estudo, as medianas mais elevadas da taxa de fecundidade adolescente, juntamente com maior proporção da população de baixa renda, maior densidade de moradores por domicilio e menor nível de escolaridade, foram observadas nas regiões Centro-Oeste, Norte e Nordeste, historicamente associadas aos piores índices de desenvolvimento e pobreza no país.
No Brasil, as trajetórias dos jovens são bastante heterogêneas, de acordo com as classes sociais a que pertencem, sobretudo pela associação com nível de escolaridade e inserção no mercado de trabalho.22 Nas classes mais baixas, observa-se, mais frequentemente, a interrupção precoce dos estudos e a inserção (ainda que precária) no mercado de trabalho, associadas à precariedade das condições de vida. Entre as meninas de contextos fortemente marcados por desigualdades sociais, a descontinuidade da escolarização pode anteceder a ocorrência de gravidez ou nascimento de um filho.23
Verificaram-se marcantes diferenças nos valores das medianas das taxas de fecundidade na adolescência e na proporção de municípios em transição de baixo para alto risco para esse desfecho, que foram maiores nas regiões menos desenvolvidas do país. O Brasil se encontra entre os países com os mais altos índices de desigualdade do mundo24 e, embora as taxas gerais de pobreza tenham-se reduzido ao longo das últimas décadas, as disparidades internas continuam marcadamente significativas.25 As regiões Norte e Nordeste detêm os piores indicadores socioeconômicos no país, amplamente agravados por condições como o vasto território, diferentes características populacionais, econômicas e sociais,26 como também pelas dificuldades de acesso a serviços de saúde.
A relação entre a determinação social e a assistência à saúde materna já está estabelecida.5 Essa relação reflete, de certo modo, o cenário da cobertura assistencial e de acesso a serviços de saúde nos territórios. A baixa proporção de mulheres com número adequado de consultas de pré-natal nas regiões Norte e Nordeste, revelada aqui, corrobora essas evidências.5 Dados anteriores do Sinasc (2012) evidenciaram uma proporção insuficiente (73%) de mulheres com seis ou mais consultas de pré-natal, em percentuais todavia menores para mulheres de nível econômico mais baixo, menos escolarizadas e mais jovens.27
A associação inversa entre o desfecho investigado e indicadores de atenção à saúde é um achado consistente com a realidade social, econômica e de assistência à saúde no Brasil. A avaliação da qualidade do acompanhamento pré-natal na rede de atenção básica de saúde do país (2012-2013) demonstrou que apenas 15% das gestantes receberam atenção com qualidade adequada. Observou-se, ainda, que a pior atenção pré-natal esteve associada a idades mais jovens, menor renda familiar, local de moradia nas regiões Norte e Centro-Oeste, em municípios de menor porte e com menor índice de desenvolvimento humano (IDH).5 A maior cobertura da ESF foi também um fator associado à qualidade da assistência pré-natal em municípios com baixo IDH, ou seja, mais vulneráveis socioeconomicamente.5 Outro estudo revelou que o baixo número de consultas de pré-natal pode ser atribuído, em parte, às dificuldade para agendamento de consultas nos serviços de saúde e à peregrinação dessas gestantes para conseguir acesso ao parto.28
A distribuição desigual de fatores socioeconômicos, demográficos e de atenção à saúde na determinação da variação espacial da fecundidade na adolescência ficou evidente em sua relação com o índice de Gini, indicador de desigualdade social, consoante resultados de estudos de menor abrangência.3 A associação positiva entre a taxa de fecundidade e a proporção de mães adolescentes com baixa escolaridade reforça o papel desse indicador como proxy de precárias condições socioeconômicas. A disparidade econômica é uma barreira para a ascensão dessa população, e a ocorrência da gravidez na adolescência tende a criar um círculo vicioso nesse cenário. Muitas adolescentes gestantes acabam abandonando a escola e entram no mercado de trabalho sem a devida escolarização, perpetuando a baixa condição socioeconômica.9
A adolescência é considerada uma fase de transição complexa, marcada por mudanças físicas, emocionais e sociais, que podem levar a diferentes manifestações de vulnerabilidade, influenciando os relacionamentos em grupo, com a família e com os pares, e o aprendizado da sexualidade.30 A sexualidade envolve, entre outros aspectos, o exercício da liberdade sexual, a autonomia nas decisões sobre o próprio corpo, o comportamento sexual e suas consequências. Assim, a ocorrência elevada de gravidez na adolescência remete à questão de vulnerabilidade de gênero e, portanto, resulta ser um agravante da vulnerabilidade individual e programática dessas adolescentes.9
O enfrentamento da gravidez na adolescência, quando esta é precoce ou não planejada, apresenta-se como um desafio para os serviços de saúde, pois abrange diversos aspectos individuais (comportamentos e cultura), sociais (organização social e estruturação de políticas públicas) e, sobretudo, tem implicações para a saúde.5 A maior cobertura da ESF e a ampliação do Programa de Melhoria do Acesso e da Qualidade da Atenção Básica (PMAQ-AB) podem garantir um melhor acesso da população aos serviços, melhoria das condições de trabalho e, principalmente, da qualidade na atenção prestada à saúde.16 Tendo em vista que a implantação do PMAQ-AB e a inclusão das equipes da ESF dependem das demandas da gestão municipal,16 faz-se necessário que gestores priorizem essa política como estratégia de enfrentamento de problemas relacionados à saúde materna e ao planejamento familiar, particularmente entre mulheres adolescentes.
Reconhecendo-se a escola como um ambiente de aprendizagem, presente na vida dessas adolescentes, a reprodução e a sexualidade humanas são temas de interesse e relevância, para abordagem no ambiente escolar. Especialmente, a participação do profissional de saúde é fundamental no desenvolvimento desse processo, mediante ações de intersetorialidade planteadas entre a Saúde e a Educação. O Programa Saúde na Escola (PSE), por exemplo, pode permitir o acesso da equipe de Saúde na Família à unidade de ensino, para o desenvolvimento de ações promotoras de saúde entre estudantes, professores e funcionários.
Sobre a análise dos achados deste estudo, cabe destacar que ele foi realizado sobre dados secundários, sujeitos ao sub-registro e à subnotificação. Além dessa limitação, a interpretação da taxa de fecundidade como risco de gravidez pode conduzir a uma subestimação dessa taxa, tendo em vista que, muitas vezes, as gravidezes não resultam em nascimento de filhos vivos, especialmente na adolescência. Outrossim, por se tratar de um estudo de agregados espaciais, utilizaram-se indicadores médios, que refletem um nível de exposição médio, sugestivo de certo grau de homogeneidade na distribuição do risco. Esta condição pode ocultar, embora parcialmente, especificidades que não devem ser ignoradas. Outra limitação do estudo diz respeito a problemas relativos à modelagem SAR,17 especialmente por resultar em valores mais elevados.
O estudo produziu informações relevantes para o país, sobre a gravidez na adolescência, confirmatórias da influência dos fatores socioeconômicos, demográficos e de atenção à saúde na determinação desse desfecho, e reitera que a gravidez nessa fase da vida é um fenômeno específico de cada território. É importante considerar as desigualdades sociais do Brasil como um fator macroestrutural, a ser incluído como premissa no planejamento e definição de estratégias de ação voltadas para o enfrentamento desse problema. Nesse sentido, faz-se necessária uma articulação intersetorial, entre as áreas da Saúde e da Educação.
As associações entre a variação espacial da fecundidade na adolescência e piores indicadores socioeconômicos e de saúde, encontradas neste trabalho, evidenciam um crescente problema de Saúde Pública no Brasil. Entretanto, considerando-se a heterogeneidade municipal no país, as estratégias de intervenção devem ser multifacetadas, buscando-se proposições efetivas para a saúde e qualidade de vida das adolescentes. Finalmente, é mister uma especial atenção à manutenção/ampliação das políticas públicas de saúde e proteção social, nas regiões mais socialmente vulneráveis, com vistas a minimizar as desigualdades regionais.