Introdução
O primeiro caso conhecido de COVID-19 no Brasil, uma doença causada pelo vírus SARS-CoV-2, foi registrado em 26 de fevereiro de 2020, com a primeira morte anunciada em 17 de março.1 Até o dia 1º de setembro, a pandemia causou 122.596 óbitos, considerados apenas os notificados ao Ministério da Saúde do Brasil.1 Em 28 de agosto de 2020, o Brasil foi o segundo país do mundo em número de mortes e casos de COVID-19.2
O Institute for Health Metrics and Evaluation, da Universidade de Washington, Estados Unidos, começou a publicar projeções para a COVID-19 em 26 de março de 2020, inicialmente com foco naquele país. Em maio, o instituto incluiu o Brasil em suas projeções, cujas estimativas consistem em mortes diárias e acumuladas atribuídas à COVID-19, número de infecções e testes realizados, capacidade hospitalar e necessidades de recursos hospitalares, acompanhados por estimativas de uso de máscaras e mobilidade social, para os próximos meses.3
A geração continuada de dados e as projeções sobre o curso da pandemia, sob diferentes cenários de medidas de controle, podem auxiliar a formulação de políticas com o propósito de conter a pandemia. Não obstante, projeções apresentam erros intrínsecos, sendo necessário conhecer sua acurácia.
Considerando-se a potencial utilidade para o país, o objetivo do presente estudo foi descrever as projeções do Institute for Health Metrics and Evaluation (IHME) para a COVID-19 no Brasil e seus estados, apresentar sua acurácia e discutir suas implicações.
Métodos
Estudo descritivo da série de projeções do IHME para a COVID-19 no Brasil, de maio a agosto de 2020, e da notificação subsequente de óbitos.
O IHME, desde 12 de maio, vem lançando iterações de suas projeções para a pandemia de COVID-19 (https://covid19.healthdata.org/brazil) no Brasil e seus estados.4 A Figura 1 ilustra os óbitos diários no Brasil, de acordo com a projeção de 28 de agosto. Os modelos adotados basearam-se em estimativas de tamanho populacional, obtidas no WorldPop 2020.7 Os números de mortes diárias e acumuladas foram obtidos no sítio eletrônico do Ministério da Saúde (https://covid.saude.gov.br/).1 O número de casos e de testes realizados foi obtido em sítios eletrônicos dos governos federal e estaduais, expressos como a média dos últimos três dias para minimizar flutuações decorrentes de atrasos nas atualizações em finais de semana e feriados.5 Os dados de capacidade hospitalar foram obtidos em sítios do governo brasileiro, Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), Organização Mundial da Saúde (OMS), e de estudos publicados.4
a) A linha sólida é o curso da pandemia até 28 de agosto de 2020. As duas linhas tracejadas superiores à direita do eixo de referência de 28 de agosto, quase sobrepostas, representam a projeção-base (a linha inferior) e a projeção alternativa no contexto de relaxamento continuado dos mandatos, independentemente do curso da pandemia. A linha tracejada mais abaixo mostra a projeção considerando-se a adoção de uso universal de máscaras.
A rede de trabalho do Global Burden of Disease (GBD) Brasil, composta por pesquisadores brasileiros afiliados ao IHME, juntamente com a equipe central do IHME, pesquisou as medidas de distanciamento social decretadas pelos governos estaduais, incluindo decretos e portarias publicados semanalmente, em sítios eletrônicos estaduais.5 Essas medidas foram classificadas utilizando-se uma adaptação do New Zealand 4-Level Alert System.8 Foram incluídas instituições educacionais e empresas não essenciais ordenadas a fechar portas, pessoas demandadas a ficar em casa, e restrições severas de viagens.8 Mais recentemente, foram incluídas ordens de restrição parcial: decretos restritivos para qualquer grau de aglomeração e qualquer grau de fechamento de negócios. No momento de conclusão deste relato, apenas as medidas que se aplicam a toda a população de estados são utilizados nas estimativas.
Medidas de mobilidade baseadas em dados anônimos de telefones celulares foram obtidas do Facebook e do Google, para todos os estados, e da Apple para alguns estados.6 O uso de máscaras foi autorreferido, com base em pesquisas periódicas sobre a adesão do indivíduo a esse equipamento de proteção individual (EPI) quando sai de casa, da Facebook Global Symptom Survey.5
O modelo utilizado pelo IHME em agosto de 2020 é um modelo híbrido. Ele combina modelagem estatística das curvas de casos e mortes com modelagem de transmissão de doenças, pautado em estimativas de frações da população – em cada localização, ‘susceptíveis a’ ou ‘expostas a’, de ‘infectado’ ou ‘recuperado’ do SARS-CoV-2 (modelo SEIR).5
Inicialmente, foram modeladas as tendências de óbitos para estimar seu número, e a partir deste número, o número de casos na data do início das projeções. As mortes cumulativas observadas foram suavizadas utilizando-se um algoritmo baseado em splines com “nós” distribuídos aleatoriamente.5 O efeito de fatores que influenciam a taxa de transmissão de SARS-CoV-2 foi estimado a partir de dados dos Estados Unidos, mediante a verificação de associações entre esses fatores (covariáveis) e o curso da pandemia. As covariáveis fixas consideradas nos modelos foram (i) a densidade populacional, (ii) a prevalência de tabagismo, (iii) a poluição ambiental e (iv) a altitude; e as covariáveis sujeitas a variação, (i) a mobilidade social, (ii) o uso de máscaras, (iii) o número de testes de COVID-19 realizados e (iv) a sazonalidade. A razão entre a mortalidade semanal por pneumonia e a média anual dessa mortalidade para cada local foi avaliada pelo IHME como a melhor forma de estimar o efeito da sazonalidade na transmissão.4 Essas covariáveis foram inseridas no modelo SEIR, permitindo avaliar as variações nas projeções de transmissão futura de acordo com possíveis mudanças – por exemplo, aumento do uso de máscaras.5
Para minimizar o impacto de relatórios inconsistentes no número de mortes, as previsões basearam-se na média de várias iterações de projeções e foram publicadas com intervalos de incerteza.4
A necessidade de recursos hospitalares foi estimada sobre os recursos disponíveis apenas para pacientes da COVID-19.4
As primeiras duas projeções, lançadas em 12 e 25 de maio, partiram do modelo de 4 de maio do IHME e incluíram oito e 19 estados brasileiros, respectivamente. A terceira projeção, de 5 de junho, baseou-se no modelo de 29 de maio e incluiu todos os 26 estados e o Distrito Federal.3
O modelo de 24 de junho adicionou à projeção-base dois cenários alternativos:3 o primeiro cenário não supõe reimplementação de decretos; o segundo cenário adiciona à projeção-base o uso universal de máscaras em ambiente público, com um aumento no percentual de uso para 95% em 7 dias.3 Os pressupostos incluídos na avaliação das taxas da projeção-base foram (i) o uso de máscaras presente na data da projeção, (ii) a flexibilização dos mandatos de distanciamento social, com base nas tendências recentes, e (iii) a reimplementação de decretos restritivos se as taxas diárias de mortalidade atingissem 8 óbitos por milhão de habitantes.
A partir de dados disponíveis publicamente, foi descrita a evolução das projeções do IHME de mortes por dia e acumuladas, atribuídas à COVID-19, para o Brasil e quatro estados.
Os dados da projeção foram obtidos do sítio eletrônico do IHME (http://www.healthdata.org/covid/data-downloads), acessado em 28 de agosto de 2020; e os dados dos óbitos observados, do portal do Ministério da Saúde na internet (https://covid.saude.gov.br/), acessado no mesmo dia 28 de agosto de 2020.
Os dados referentes a cinco estados – um estado de cada uma de quatro grandes regiões geográficas brasileiras (Norte, Nordeste, Sudeste e Sul) foram avaliados desde a primeira previsão. A escolha de quatro estados deveu-se a apresentarem, nas primeiras projeções, o maior número estimado de mortes entre os demais estados de sua respectiva região.
As estimativas de mortes projetadas foram contrastadas, graficamente, com o número de mortes subsequentes relatado pelo Ministério da Saúde, utilizando-se, entre as 11 projeções publicadas até 28 de agosto de 2020, as projeções 1, 3, 5, 7, 9 e 11. Também foram calculadas as taxas de erro, comparando-se o número projetado de óbitos acumulados – em duas, quatro e seis semanas após a liberação das projeções – com a contagem acumulada de mortes realizada pelo Ministério da Saúde no período. Para avaliar a acurácia global das projeções do IHME, calculou-se o erro percentual absoluto médio (MAPE, sigla em inglês para Mean Absolute Percentage Error) das nove projeções.
Para as análises, utilizou-se o software R 4.0.2, pacote Metrics.
Resultados
Até 28 de agosto de 2020, o IHME publicou 11 projeções para o Brasil e seus estados. As projeções de 12 de maio estimavam alcançar, até 4 de agosto, um total de 88.305 mortes em oito estados; e as de 25 de maio, um total de 125.833 mortes em 19 estados. A projeção de 5 de junho estimou um total de 165.960 mortes para todos os estados do Brasil até 4 de agosto. A projeção de 24 de junho foi estendida até 1º de outubro, estimando um total de 166.362 óbitos. As projeções de julho foram estendidas até 1º de novembro, e as de agosto, até 1º de dezembro. O número de mortes acumuladas por estado e para o Brasil, de acordo com as projeções do IHME, é apresentado no Material Suplementar 1.
A projeção-base de 28 de agosto da curva epidêmica estima um total de 182.809 mortes [intervalo de incerteza (II): 165.415 – 202.948] até 1º de dezembro. Quando ela é expressa em óbitos/dia (Figura 1), a previsão é de que, após um longo pico, a curva epidêmica caia, com maior velocidade a partir da 2ª quinzena de setembro. As linhas tracejadas à direita do eixo de referência de 28 de agosto são as projeções: entre as duas linhas tracejadas superiores, quase sobrepostas, a linha minimamente mais baixa corresponde à projeção-base, alcançando aproximadamente 350 mortes/dia em 1º de dezembro. A linha tracejada mais abaixo, todavia, mostra que o uso universal de máscaras poderia levar a um número de óbitos bem menor: 160 óbitos/dia. A projeção-base de óbitos cumulativos, não apresentada na Figura 1, também estima que, desde o final de agosto até 1º de dezembro, o uso universal de máscaras poderia evitar um total de 17.351 mortes; e mesmo com a universalização do uso de máscara, no dia 1º de dezembro ainda haveria >25.000 leitos e >5.000 leitos de UTI ocupados por pacientes com complicações da COVID-19, em todo o país.
A Figura 2 mostra a evolução das projeções de mortalidade do IHME para o conjunto do Brasil, por data, acompanhadas dos números oficiais de óbitos do Ministério da Saúde em linha preta (mais espessa). O painel superior mostra as mortes diárias; o inferior, as mortes acumuladas.
As Figuras 3 e 4 e os Materiais Suplementares 2 e 3 mostram a evolução das projeções e as mortes observadas em quatro estados: Amazonas, São Paulo, Paraná e Pernambuco. As linhas pretas (mais espessas) representam as mortes observadas. Em cada figura, os painéis superiores indicam os valores diários; e os inferiores, os valores acumulados. Os resultados mostram um padrão variável de acerto das projeções para o curso da pandemia, entre os estados. Geralmente, as projeções são melhores, mais acuradas, no curto e no médio prazo, frente ao longo prazo. A projeção de 28 de agosto mostra, para os quatro estados, um declínio gradual, menos acentuado em Pernambuco.
A Figura 5 mostra o erro das estimativas do IHME para as mortes acumuladas duas, quatro e seis semanas após sua publicação. No prazo de quatro semanas, o erro das estimativas para o Brasil variou de 9 para menos a 52% para mais, relativamente às mortes observadas; após seis semanas, a variação no erro foi de 6 para menos a 48% para mais. As projeções para os quatro estados avaliados foram menos fidedignas. O erro percentual absoluto médio no número acumulado de óbitos em duas, quatro e seis semanas foi, respectivamente, de 13%, 18% e 22% para o Brasil, e maior para cada um dos quatro estados, variando de 17 a 36% até duas semanas, de 20 a 44% até quatro semanas, e de 22 a 81% até seis semanas (Figura 5).
Discussão
Entre as projeções sobre a evolução da pandemia com foco no Brasil, as realizadas pelo IHME se destacam por sua sofisticação e detalhamento. Elas fornecem estimativas para todos os estados brasileiros, com frequente atualização. Modelos matemáticos de predição não acertam 100% da realidade futura, especialmente em questões etiológicas novas e complexas, a exemplo da COVID-19. As projeções do IHME apresentaram erros, frequentemente não pequenos.
Os erros, maiores nas projeções estaduais, parecem decorrer da dificuldade em caracterizar a contribuição variável e volátil da resposta da sociedade à curva epidêmica. Essa resposta, para as projeções estaduais, é captada apenas em nível estadual, por meio de inquéritos de mobilidade social e de uso de máscaras, e por decretos estaduais sobre distanciamento. A forma de abordagem definida pelo IHME dependeria de um decreto que vigorasse para todo o estado, para ser considerado implementado, quando em muitos estados o próprio decreto permitia implementação diferenciada entre municípios ou regiões.9 Nestes casos, a modelagem considerou o decreto como não implementado, o que pode explicar a tendência geral de hiperestimação de óbitos nas projeções. Ademais, a aderência aos decretos variou entre locais e momentos, e os decretos municipais não foram tomados em consideração. Outra dificuldade que pode ter contribuído para o erro nas projeções foi a heterogeneidade na subnotificação de casos e mortes atribuídas à COVID-19, entre os estados.11 Uma fonte adicional de erro ainda poderia residir na dificuldade para considerar, adequadamente, o impacto dos determinantes sociais – a extensa e variada desigualdade presente na sociedade brasileira e a impossibilidade real de muitos brasileiros, dadas suas condições de vida e trabalho, poderem se isolar do vírus.12 Soma-se a isso, apesar da frequência das publicações (a cada duas semanas), a dificuldade para as projeções captarem a grande volatilidade das curvas epidêmicas estaduais.
A acurácia variável das previsões do IHME, inerente a projeções baseadas em modelos matemáticos, ilustra a importância de analisá-las em conjunto com outras projeções e/ou dados regionais/locais. A volatilidade das curvas epidêmicas exige que estimativas de outras fontes e dados das regiões/localidades também sejam consideradas, para o planejamento de ações de prevenção, controle a assistência à COVID-19.
Outras fontes de projeções, possivelmente úteis aos gestores da Saúde, incluem algumas entidades nacionais e internacionais. Sítios eletrônicos da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) (https://dest-ufmg.shinyapps.io/app_COVID19//) e da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) (https://covid19.ufrgs.dev/tools/predictions) disponibilizam previsões de curto e longo prazo. Outro sítio na internet, o da Universidade de São Paulo (USP), oferece um modelo SEIR para prever a continuidade da pandemia no Brasil e em seus estados (https://ciis.fmrp.usp.br/covid19/).14 Internacionalmente, são reconhecidas as projeções do Imperial College of London (ICL) (https://covidsim.org/v2.20200806/?place=Brazil) e de Youyang Gu (https://covid19-projections.com/brazil), esta última utilizando ferramenta de aprendizado de máquina, a do Los Alamos National Laboratory (https://covid-19.bsvgateway.org/) e a Delphi (https://www.covidanalytics.io/projections).
Em termos de acurácia, dados disponíveis sugerem que erros nas estimativas de óbitos por COVID-19 no Brasil, realizadas por grupos internacionais, são semelhantes; exceto as do ICL, que apresentaram superestimação bem maior.3 Comparada à validade preditiva da mortalidade cumulativa das diversas predições, a projeção do IHME apresentou o menor erro para a região da América Latina e Caribe.3
A utilidade das projeções do IHME é facilitada pela disponibilidade, no sítio do IHME, de gráficos de simples visualização para os estados, e pela atualização frequente dos modelos, incorporando novidades sobre a taxa de exposição e propagação. Um exemplo disso é a rápida incorporação de estimativas de sazonalidade nas projeções, permitindo, por exemplo, previsões até agosto – geralmente acertadas –, em vista do aumento da disseminação da doença devido, entre outros fatores, ao aumento da interação social interna durante o inverno nos estados do Sul do país.
As estimativas, entretanto, sofrem de desatualização sobre a disponibilidade de recursos hospitalares, por não levarem em conta o aumento de leitos e equipamentos instalados especialmente para responder à pandemia – por exemplo, hospitais de campanha temporários.
Deve-se considerar, também, o fato de as projeções da pandemia de COVID-19 no Brasil e no mundo, geralmente, estarem subestimadas, haja vista a aplicação dos testes, não ser universal, especialmente entre as mortes não hospitalares.11 Neste aspecto, o Brasil se destaca pela baixa cobertura de testes realizados. A subnotificação de óbitos pode ser estimada comparando-se o número de mortes registradas pelo registro civil, durante a pandemia, com o número de mortes esperado, ou seja, a média de óbitos esperados para o mesmo período, calculada sobre os cinco anos anteriores. De fato, essa comparação mostra que as mortes atribuídas à COVID-19 até 20 de junho de 2020 representavam apenas dois terços das 74.172 mortes excedentes sobre as estimadas até essa data.19 Como os modelos visam predizer a contagem oficial de mortes, mortes não registradas oficialmente geram subestimativas, limitando a acurácia dos modelos.
Além disso, as taxas de casos confirmados nas estatísticas oficiais estão subestimadas, não apenas pela limitação dos testes realizados, mas, também, porque muitos casos assintomáticos, ou mais leves, não costumam buscar atenção médica. Estudo de soroprevalência, nacionalmente representativo, sugere que, para cada caso relatado oficialmente, cinco não são detectados.20 As estimativas do IHME de casos prevalentes, contudo, são menos afetadas por esse problema, pois são calculadas indiretamente, com base nas razões de fatalidade de casos.
Algumas limitações deste artigo merecem destaque. Primeiramente, conforme já foi mencionado, problemas nas estimativas oficiais de casos e mortes limitam a capacidade de comparar as previsões do IHME com a realidade observada. Em segundo lugar, optou-se por uma medida de acurácia simples, em lugar de outras mais sofisticadas, visando apresentar resultados de fácil visualização e interpretação. Finalmente, não é possível comparar a acurácia das projeções realizadas por instituições brasileiras com as do IHME, dado que as brasileiras não disponibilizam suas estimativas anteriores. Trata-se de erros e limitações que não devem ofuscar a utilidade das projeções do IHME, cujos modelos, quando tomados em conjunto com outras informações, oferecem dados valiosos para a orientação de políticas públicas no curto e médio prazo.
De particular interesse para as autoridades da Saúde são as estimativas dos leitos hospitalares necessários, pautadas nos dois cenários alternativos de mortalidade produzidos: (i) o relaxamento contínuo dos mandatos; (ii) o rápido aumento no uso de máscaras.
Uma contribuição a destacar, neste momento da pandemia, diz respeito ao ganho apreciável com o uso maior de máscara pela população. A OMS, a partir do surgimento de evidências sobre a importância do uso de máscara,22 passou a recomendar sua utilização. O uso de máscaras de pano, frequente em países asiáticos com contenção bem-sucedida da pandemia, poderia ter contribuído para evitar a transmissão, principalmente quando ela ocorre a partir de casos sem sintomas.24 As projeções do IHME mostram que o uso de máscaras por 95% da população poderia evitar, aproximadamente, 17 mil mortes por COVID-19 no país até 1º de dezembro. O uso de máscaras no Brasil e na América Latina é, em geral, superior ao observado nos Estados Unidos e em diversos países europeus;3 entretanto, as projeções mostram que um uso ainda maior de máscaras teria resultados mais favoráveis para a sociedade brasileira.
Uma segunda contribuição das projeções do IHME, em consonância com as de outras fontes de análise e pesquisa, é a previsão de uma lenta resolução da pandemia, com provável extensão para 2021. Embora menos confiáveis, as estimativas de longo prazo de várias instituições, tomadas em conjunto, sugerem que a pandemia seguirá um curso impactante por mais seis meses no Brasil, no mínimo. A estimativa do IHME projetada no final de agosto, de cerca de 350 óbitos/dia em 1o de dezembro, mostra um caminho mais longo a percorrer, renovado impacto e consequentes desafios para a Saúde Pública. As projeções de Youyang Gu apoiam essa predição.3 O modelo da UFMG, divulgado em 30 de agosto, previa a epidemia a se estender em 2021, com aproximadas 50 mortes/dia no início do próximo ano,15 para quando o Imperial College of London projeta uma segunda onda, importante para o Brasil e outros países no próximo ano.26
Novos fatores positivos, como terapias eficazes e disponibilidade em massa de vacinas, sem se esquecer dos testes rápidos de antígenos em prazo mais curto que o previsto, ou ainda fatores negativos, como mutações do vírus e a introdução de nova cepa, de maior infectividade ou virulência, são igualmente importantes a considerar. Salvo mudanças positivas imprevistas, o horizonte das projeções atuais é de trabalho intenso, de vários meses até a superação da pandemia dentro do Brasil.
Finalmente, estimativas do Fundo Monetário Internacional (FMI) mostram taxas de queda no produto interno bruto (PIB) ainda maiores em países mais afetados pela pandemia, inclusive uma queda de 9,1% no PIB brasileiro, uma ilustração contundente da falaciosa dicotomia apregoada por setores de governo e da Opinião Pública, entre proteger a saúde e proteger a economia. As projeções do IHME e de outras fontes apontam que a pandemia não se resolverá de imediato, sugerindo que os danos econômicos sejam piores se o controle da pandemia for retardado.27 A comparação da perspectiva econômica do Brasil com a de outras sociedades, especialmente a China e a Coreia do Sul, que foram mais capazes de controlar o vírus, demonstra o êxito das ações que, embora de grandes danos econômicos no curto prazo, foram essenciais para a saúde econômica no longo prazo. Na medida em que gestores e sociedade entenderem a necessidade de, por períodos limitados, investir em medidas de Saúde Pública para conter o vírus, tanto a saúde como a economia da nação serão beneficiadas.
Conclui-se que as projeções do IHME para a COVID-19 no Brasil demonstram valores, embora imperfeitos, próximos da realidade. Os maiores desvios observados, no médio e no longo prazo, indicam que, para o uso de uma projeção, é preciso estar ciente de suas imperfeições, e sempre enfatizar a importância e necessidade de atualizações frequentes do modelo. Não obstante suas limitações observadas, as projeções disponíveis no sítio eletrônico do IHME podem ser incorporadas na base de evidências para tomada de decisão no enfrentamento da pandemia.