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Epidemiologia e Serviços de Saúde

versão impressa ISSN 1679-4974versão On-line ISSN 2237-9622

Epidemiol. Serv. Saúde vol.30 no.1 Brasília  2021  Epub 31-Jan-2021

http://dx.doi.org/10.1590/s1679-49742021000100005 

Artigo original

Fontes de acesso e utilização de medicamentos na zona rural de Pelotas, Rio Grande do Sul, em 2016: estudo transversal de base populacional*

Fuentes de acceso y uso de medicamentos en la zona rural de Pelotas, Rio Grande do Sul, Brasil, en 2016: estudio transversal de base poblacional

Andrea Dâmaso Bertoldi (orcid: 0000-0002-4680-3197)1  , Marysabel Pinto Telis Silveira (orcid: 0000-0002-6453-8534)2  , Adriana Kramer Fiala Machado (orcid: 0000-0002-6800-1064)1  , Mariana Otero Xavier (orcid: 0000-0001-8791-3520)1  , Rafaela Costa Martins (orcid: 0000-0003-3538-7228)1 

1Universidade Federal de Pelotas, Programa de Pós-Graduação em Epidemiologia, Pelotas, RS, Brasil.

2Universidade Federal de Pelotas, Departamento de Fisiologia e Farmacologia, Pelotas, RS, Brasil.

Resumo

Objetivo

Analisar a prevalência do uso de medicamentos, fontes de acesso e fatores associados, em residentes da zona rural de Pelotas, RS, Brasil.

Métodos

Estudo transversal com adultos ≥18 anos, realizado em 2016. Questionou-se o uso e fontes de acesso aos medicamentos no mês anterior à entrevista. Empregou-se regressão de Poisson.

Resultados

Dos 1.519 entrevistados, 54,7% (IC95% 48,7;60,5) utilizaram algum medicamento e 3,3% (IC95% 2,4;4,5) deixaram de utilizar medicamento necessário. Exibiram maiores prevalências de utilização: mulheres (RP=1,23 - IC95% 1,12;1,34), idosos (RP=2,36 - IC95% 2,05;2,73), pessoas com pior autopercepção de saúde (RP=1,29 - IC95% 1,14;1,46), com maior número de doenças (RP=2,37 - IC95% 2,03;2,77). Obtiveram medicamentos exclusivamente pelo Sistema Único de Saúde (SUS) 14,0% (IC95% 11,2;17,4), com prevalências maiores entre pessoas de cor da pele autodeclarada não branca e classificação econômica inferior.

Conclusão

Pequena parcela deixou de usar medicamentos de que necessitava. A obtenção gratuita de medicamentos foi maior nos grupos de menor poder aquisitivo.

Palavras-chave: Inquéritos Epidemiológicos; Zona Rural; Saúde da População Rural; Farmacoepidemiologia; Assistência Farmacêutica; Uso de Medicamentos

Resumen

Objetivo

Analizar la prevalencia del uso de medicamentos, las fuentes de acceso y los factores asociados en habitantes rurales de Pelotas, RS, Brasil.

Métodos

Estudio transversal con adultos ≥18 años, en 2016. Se preguntó sobre el uso y fuentes de acceso a los medicamentos en el mes anterior a la entrevista. Se utilizó la regresión de Poisson.

Resultados

De los 1.519 entrevistados, 54,7% (IC95% 48,7; 60,5) usó algún medicamento y 3,3% (IC95% 2,4; 4,5) dejó de usar un medicamento necesario. Las prevalencias de uso fueron mayores en mujeres (RP=1,23 - IC95% 1,12;1,34), adultos mayores (RP=2,36 - IC95% 2,05;2,73), personas con peor autopercepción de salud (RP=1,29 - IC95% 1,14;1,46) y con más enfermedades (RP=2,37 - IC95% 2,03;2,77). En total, 14,0% (IC95% 11,2;17,4) obtuvo medicamentos exclusivamente por el Sistema Único de Salud (SUS) y la prevalencia fue mayor en los de color de piel no blanca (autodeclarada) y clase económica más baja.

Conclusión

Pequeña parcela indicó que dejó de usar medicamentos necesarios. La obtención gratuita fue mayor en grupos de menor poder adquisitivo.

Palabras clave: Encuestas Epidemiológicas; Área Rural; Salud de la Población Rural; Farmacoepidemiología; Servicios Farmacéuticos; Uso de Medicamentos

Introdução

O acesso e a utilização dos medicamentos apresentam determinantes, incluindo a disponibilidade dos insumos nos serviços de saúde, o acesso geográfico até esses locais e a aceitabilidade dos usuários aos serviços de farmácia (expectativas dos usuários e características dos produtos e serviços).1 2 O padrão de utilização de medicamentos também difere, conforme características sociodemográficas, culturais, comportamentais e de saúde dos indivíduos.3 4

Menores prevalências de uso de medicamentos foram observadas nas áreas rurais, comparadas às urbanas em diferentes países.5 6 Ademais, existe conexão entre disponibilidade, acessibilidade, uso de medicamentos e resultados em saúde que, especialmente entre países de baixa e média renda, ainda constitui um importante desafio para a saúde pública.1 7

O Brasil dispõe de um sistema de assistência farmacêutica para garantir à sua população acesso universal e gratuito a medicamentos considerados essenciais.4 8 Em muitas situações, o usuário necessita de medicamentos que não são distribuídos gratuitamente, pelo sistema de saúde, tendo de adquiri-los mediante pagamento, o que pode comprometer seriamente sua renda ou dificultar a continuidade de um tratamento medicamentoso.9

Poucos estudos que avaliaram a utilização de medicamentos em áreas rurais do país estão disponíveis.10 11 Limitações de ordem logística e financeira dificultam a realização de estudos em áreas rurais,12) onde a oferta de serviços de saúde e de farmácias próximas às residências também é menor.13 Estes fatores podem interferir no padrão de uso de medicamentos.

Além da escassez de estudos sobre o tema nas áreas rurais, é fundamental conhecer os possíveis fatores associados ao uso e às fontes de obtenção dos medicamentos utilizados. Esse conhecimento pode contribuir no estabelecimento de prioridades e planejamento de políticas públicas voltadas a essa população.

O objetivo deste estudo foi analisar a prevalência do uso de medicamentos, fontes de acesso e fatores associados, em residentes da zona rural de Pelotas, estado do Rio Grande do Sul, extremo sul do Brasil.

Métodos

Foi realizado um estudo transversal de base populacional, na zona rural de Pelotas, RS, Brasil. Ele faz parte de um projeto de pesquisa maior sobre saúde da população rural.12 O município de Pelotas conta com cerca de 340 mil habitantes, dos quais aproximadamente 7% residem na zona rural.14 Esta, composta por oito distritos, divididos em 50 setores censitários, dispõe de 14 unidades básicas de saúde (UBS) em seus distritos rurais.

Foram considerados elegíveis para o estudo indivíduos com 18 anos ou mais de idade, residentes habituais na zona rural de Pelotas - ou seja, com domicílio como residência habitual, na data da entrevista; ou temporariamente ausentes, por período não superior a 12 meses dessa data. Foram excluídos do estudo os indivíduos com incapacidade cognitiva/mental, sem auxílio de cuidadores ou familiares, hospitalizados ou institucionalizados durante a coleta de dados, e aqueles que não falavam/compreendiam a língua portuguesa (parte da população tem ascendência pomerana).

O tamanho de amostra foi calculado visando atender a todos os objetivos do projeto de pesquisa, sendo o maior tamanho necessário de 1.458 indivíduos para o desfecho tabagismo. A amostra foi estimada pelo programa de análises estatísticas OpenEpi, a partir de prevalência de 20%,15 nível de confiança de 95%, margem de erro de 3 pontos percentuais e efeito de delineamento de 2,0. Ao final, foram acrescidos 10% para possíveis perdas ou recusas e 15% para ajuste de possíveis fatores de confusão.

O processo de amostragem foi realizado em dois estágios. Primeiramente, 24 setores censitários foram selecionados, aleatoriamente, em número proporcional ao de domicílios de cada distrito. Em seguida, foram escolhidos 30 domicílios em cada um desses setores censitários, todos identificados nos núcleos comunitários (maior aglomerado de domicílios) de cada setor, totalizando 720 domicílios. A metodologia detalhada encontra-se em publicação anterior.12

A coleta de dados foi realizada por meio de entrevistas face a face, no domicílio do participante, entre janeiro e junho de 2016. O questionário contemplou questões sociodemográficas, comportamentais e de saúde; foi configurado na plataforma REDCap,16 utilizando-se tablets Samsung Galaxy Tab E.

As entrevistadoras foram capacitadas na aplicação dos questionários, previamente testados em estudo-piloto com 19 participantes (não incluídos na amostra), realizado em Arroio do Padre, município emancipado de Pelotas em 1996, de características rurais.

Definiram-se como perdas do estudo os residentes não encontrados após, pelo menos, três tentativas de contato em dias/horários distintos. O trabalho de campo aconteceu sob a supervisão dos pesquisadores. Foi realizado controle de qualidade em 10% dos entrevistados, selecionados aleatoriamente, via telefone, para reaplicação de versão reduzida do questionário (dez das perguntas do questionário original), visando conferir a repetibilidade e qualidade dos dados.

As variáveis dependentes analisadas foram utilização de medicamentos, fonte de acesso aos medicamentos utilizados e não utilização de medicamentos necessários, todas tendo como período de referência os 30 dias anteriores à entrevista. Inicialmente, perguntou-se ao entrevistado se, no último mês, deixou de usar algum medicamento do qual necessitava. As opções de resposta a essa questão, lidas aos participantes, eram: sim; não; não precisou usar remédio no último mês. Caso a resposta fosse “não precisou usar remédio no último mês”, as demais perguntas relacionadas a medicamentos não eram realizadas.

Para a construção do desfecho ‘fonte de acesso aos medicamentos utilizados’, perguntou-se:

“No último mês, onde o(a) Sr.(a) conseguiu o(s) remédio(s) que utilizou?”

As fontes de acesso aos medicamentos foram categorizadas em: (i) Sistema Único de Saúde (SUS), de forma totalmente gratuita; e (ii) estabelecimento privado, como farmácias do setor privado, mediante pagamento; ou (iii) forma mista, tanto pelo SUS quanto por estabelecimento privado ou Farmácia Popular. A análise das associações partiu da dicotomização dessas informações, entre SUS (fonte gratuita) e estabelecimento privado/mista, para possibilitar a avaliação da obtenção de medicamentos de forma totalmente gratuita ou não.

A variável de desfecho utilização de medicamentos nos últimos 30 dias foi construída com base nas respostas às duas perguntas anteriores, sobre ter deixado de usar algum medicamento e quais as fontes de acesso a ele. Quem relatou não ter necessidade de usar remédios nos últimos 30 dias foi considerado não usuário de medicamentos, e quem respondeu com a indicação de alguma fonte de obtenção de medicamentos nos últimos 30 dias foi considerado usuário de medicamentos.

O desfecho não utilização de medicamentos necessários foi construído a partir da resposta positiva à pergunta inicial, com ‘Sim, deixou de usar algum medicamento de que precisava’. Para esses respondentes, questionou-se o motivo da não utilização e o(s) nomes(s) do(s) medicamento(s) não utilizado(s), posteriormente classificado(s) de acordo com o nível 1 da Anatomical Therapeutical Chemical (ATC), da Organização Mundial da Saúde (OMS).17 Quando o entrevistado não se recordava do nome do medicamento, foi-lhe solicitado apresentar ao entrevistador a embalagem/caixa ou receita.

As variáveis independentes englobaram fatores sociodemográficos, relacionados à saúde e aos serviços de saúde:

  1. Sociodemográficos

    - Sexo (masculino; feminino);

    - Idade (anos: 18 a 39; 40 a 59; 60 ou mais);

    - Cor da pele autorreferida (branca; não branca);

    - Situação conjugal (sem companheiro[a]; com companheiro[a]);

    - Escolaridade (anos de estudo: sem instrução/ensino fundamental incompleto; ensino fundamental completo/ensino médio incompleto; ensino médio completo/ensino superior incompleto; ensino superior completo ou mais);

    - Classificação econômica (A/B [mais ricos]; C; D/E [mais pobres]), de acordo com a classificação da Associação Brasileira de Empresas de Pesquisa;18

    - Situação atual de trabalho (não trabalha; trabalha).

  2. Relacionados à saúde

    - Autopercepção de saúde (muito boa/boa; regular; ruim/muito ruim);

    - Número de doenças crônicas presentes (nenhuma; uma ou duas; três ou mais), extraído com a seguinte pergunta, “Algum médico ou profissional de saúde já disse que o(a) Sr.(Sra) tem...?”, incluindo doenças do aparelho cardiocirculatório, diabetes mellitus, câncer, entre outras.

  3. Relacionados aos serviços de saúde

    - Cadastro na Estratégia Saúde da Família (ESF) (sim; não);

    - Percepção acerca da distância do domicílio até a farmácia mais próxima (longe, mas de fácil acesso; longe e de difícil acesso; perto e de fácil acesso; perto, mas de difícil acesso). Considerando que a proporção de indivíduos que considerou a distância perto, mas de difícil acesso foi muito baixa (n=22; 1,5%), para fins de análise, essa variável foi dicotomizada em fácil acesso ou difícil acesso, independentemente da distância;

    - Percepção acerca da distância entre o domicílio e a UBS mais próxima (longe, mas de fácil acesso; longe e de difícil acesso; perto e de fácil acesso; perto, mas de difícil acesso).

A amostra foi descrita e foram apresentadas as proporções e respectivos intervalos de confiança de 95% (IC95%) da utilização e das fontes de acesso aos medicamentos, conforme variáveis independentes. Foi empregada regressão de Poisson, para obtenção das razões de prevalências (RPs), brutas e ajustadas, para esses dois desfechos. Na análise ajustada, seguiu-se modelo hierárquico em três níveis, construído com base na literatura.2 4 10 11 19 20 O primeiro nível incluiu variáveis sociodemográficas; o segundo nível, as variáveis autopercepção de saúde e número de doenças crônicas; ao terceiro e último nível, couberam as variáveis relacionadas aos serviços de saúde, cadastro na ESF, distância da casa à farmácia e distância da casa à UBS mais próxima. As variáveis foram ajustadas para as do mesmo nível e do nível superior; foi utilizado o modo de seleção para trás, sendo mantidas no modelo final aquelas com p-valor <0,20. Os dados foram ponderados segundo o número de domicílios amostrados, em relação ao número total de domicílios permanentes em cada distrito (comando svy). Considerou-se nível de significância de 5%. Os dados foram analisados com o uso do pacote estatístico Stata 14.0 (Stata Corporation, College Station, USA).

O estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Pelotas em 11 de dezembro de 2015, de acordo com o Parecer nº 1.363.979. O termo de consentimento livre e esclarecido foi assinado pelos participantes, como pré-requisito à concessão da entrevista.

Resultados

Foram considerados elegíveis 1.697 indivíduos. Após contabilizar perdas e recusas (n=178), a amostra final resultou em 1.519 (89,5%) a serem entrevistados (Figura 1). As perdas e recusas, em sua maioria, foram do sexo masculino e na idade de 18 a 24 anos (p<0,05).

a) SUS: Sistema Único de Saúde.

Figura 1 Processo de seleção dos indivíduos entrevistados, zona rural de Pelotas, Rio Grande do Sul, 2016 

Quanto aos participantes, predominaram mulheres (51,7%), indivíduos com idade entre 40 e 59 anos (39,2%), de cor da pele autodeclarada branca (85,1%), que moravam com companheiro(a) (70,8%), sem instrução/ensino fundamental incompleto (66,1%), de classe econômica C (53,7%) e que trabalhavam (59,5%). Um total de 64,1% dos entrevistados tiveram autopercepção muito boa/boa da saúde, 41,8% não apresentavam nenhuma doença crônica, 71,4% eram cadastrados na ESF, 62,8% consideravam a distância de sua casa até a farmácia mais próxima como de fácil acesso e 74,3% consideravam a distância de casa até a UBS mais próxima como de fácil acesso (Tabela 1).

Mais da metade dos participantes (54,7% - IC95% 48,7;60,5) utilizou algum medicamento no mês anterior à entrevista. Mulheres, indivíduos com 60 anos ou mais, menos escolarizados, sem trabalho, com autopercepção de saúde ruim/muito ruim e com mais doenças crônicas apresentaram maiores prevalências de uso de medicamento (Tabela 1).

Tabela 1 Descrição da amostra (n=1.519) e frequência de utilização de medicamentos (n=834) entre residentes na zona rural de Pelotas, Rio Grande do Sul, 2016 

Variáveis Total Utilização de medicamentos
n (%) n % (IC95%a)
Sexo
Feminino 734 48,3 349 47,2 (40,8;53,7)
Masculino 785 51,7 485 61,6 (54,9;67,8)
Idade (anos)
18-39 515 34,0 166 32,0 (27,1;37,3)
40-59 593 39,2 332 55,7 (50,9;60,4)
≥60 411 26,8 336 81,9 (71,1;89,2)
Cor da pele autodeclarada
Branca 1.296 85,1 714 54,9 (48,9;60,7)
Não branca 223 14,9 120 53,4 (41,4;65,0)
Mora com companheiro(a)
Não 443 29,2 228 51,0 (44,6;57,3)
Sim 1.076 70,8 606 56,2 (49,4;62,7)
Escolaridade
Sem instrução/ensino fundamental incompleto 996 66,1 609 60,7 (52,2;68,7)
Ensino fundamental completo/ensino médio incompleto 233 15,4 92 39,2 (31,0;48,1)
Ensino médio completo/ensino superior incompleto 213 14,0 89 41,9 (36,0;48,1)
Ensino superior completo ou mais 67 4,5 36 53,4 (42,4;64,0)
Classificação econômica
A/B 301 20,0 170 56,5 (49,9;62,9)
C 814 53,7 436 53,4 (46,2;60,4)
D/E 388 26,3 221 56,3 (47,5;64,8)
Situação atual de trabalho
Não trabalha 613 40,5 420 68,3 (62,0;74,0)
Trabalha 906 59,5 414 45,3 (39,3;51,6)
Autopercepção de saúde
Muito boa/boa 964 64,1 404 41,6 (36,0;47,5)
Regular 461 30,4 349 75,6 (64,2;84,3)
Ruim/muito ruim 82 5,5 72 87,7 (78,7;93,2)
Número de doenças crônicas
Nenhuma 631 41,8 162 25,6 (21,0;30,8)
1 - 2 614 40,2 426 69,2 (63,0;74,7)
3 ou mais 274 18,0 246 89,6 (72,5;96,6)
Cadastrado na Estratégia Saúde da Família
Não 423 28,6 212 49,9 (37,5;62,3)
Sim 1.070 71,4 608 56,6 (52,2;60,9)
Distância da casa à farmácia
Fácil acesso 941 62,8 497 52,4 (46,2;58,6)
Difícil acesso 563 37,2 325 57,8 (50,0;65,1)
Distância da casa à unidade básica de saúde mais próxima
Longe, mas de fácil acesso 179 11,7 94 51,8 (42,7;60,8)
Longe e de difícil acesso 121 7,9 66 54,8 (45,4;63,8)
Perto e de fácil acesso 1.107 74,3 606 54,5 (48,3;60,5)
Perto, mas de difícil acesso 92 6,1 56 61,0 (47,4;73,2)
Total 1.519 100,0 834 54,7 (48,7;60,5)

a) IC95%: intervalo de confiança de 95%.

Na análise ajustada, o uso de medicamentos foi maior em mulheres (RP=1,23 - IC95% 1,12;1,34), maior idade (≥60 anos: 2,36 - IC95% 2,05;2,73), doenças crônicas (três ou mais: RP=2,37; IC95% 2,03;2,77), saúde regular e ruim/muito ruim (RP=1,29 - IC95% 1,14;1,46). A prevalência de uso de medicamentos foi menor entre pessoas que moravam sem companheiro(a) (RP=0,88 - IC95% 0,80;0,98) e que trabalhavam (RP=0,82 - IC95% 0,71;0,94)(Tabela 2).

Tabela 2 Análises bruta e ajustada da prevalência de utilização de medicamentos em relação às variáveis independentes, em amostra de adultos (n=834) residentes na zona rural de Pelotas, Rio Grande do Sul, 2016 

Variáveis Utilização de medicamentos
Análise bruta Análise ajustada
RPa (IC95%b) p-valorc RPa (IC95%b) p-valorc
Sexo <0,001 <0,001
Feminino 1,00 1,00
Masculino 1,30 (1,18;1,45) 1,23 (1,12;1,34)
Idade (anos) <0,001d <0,001d
18-39 1,00 1,00
40-59 1,74 (1,54;1,97) 1,74 (1,54;1,97)
≥60 2,56 (2,23;2,84) 2,36 (2,05;2,73)
Cor da pele autodeclarada 0,800 0,483
Branca 1,00 1,00
Não branca 0,97 (0,79;1,20) 1,07 (0,89;1,28)
Escolaridade <0,001d 0,623
Sem instrução/ensino fundamental incompleto 1,00 1,00
Ensino fundamental completo/ensino médio incompleto 0,65 (0,51;0,82) 0,92 (0,73;1,17)
Ensino médio completo/ensino superior incompleto 0,69 (0,60;0,80) 0,92 (0,80;1,07)
Ensino superior completo ou mais 0.88 (0.70;1.11) 0,98 (0,75;1,27)
Mora com companheiro(a) 0,079 0,016
Não 0,91 (0,81;1,01) 0,88 (0,80;0,98)
Sim 1,00 1,00
Classificação econômica 0,586 0,667
A/B 1,00 1,00
C 0,94 (0,80;1,12) 0,94 (0,80;1,11)
D/E 1,00 (0,83;1,20) 0,93 (0,80;1,09)
Situação atual de trabalho <0,001 0,005
Não trabalha 1,00 1,00
Trabalha 0,66 (0,59;0,75) 0,82 (0,71;0,94)
Autopercepção de saúde <0,001d <0,001
Muito boa/boa 1,00 1,00
Regular 1,82 (1,62;2,04) 1,29 (1,17;1,42)
Ruim/muito ruim 2,11 (1,85;2,39) 1,29 (1,14;1,46)
Número de doenças crônicas <0,001d <0,001d
Nenhuma 1,00 1,00
1 - 2 2,71 (2,31;3,16) 2,23 (1,92;2,58)
3 ou mais 3,50 (2,98;4,12) 2,37 (2,03;2,77)
Cadastrado na Estratégia Saúde da Família 0,292 0,270
Não 1,00 1,00
Sim 1,13 (0,89;1,44) 1,15 (0,89;1,47)
Distância da casa à farmácia 0,120 0,222
Fácil acesso 1,00 1,00
Difícil acesso 1,10 (0,97;1,25) 1,06 (0,96;1,17)
Distância da casa à unidade básica de saúde mais próxima 0,384 0,459
Longe, mas de fácil acesso 1,00 1,00
Longe e de difícil acesso 1,06 (0,86;1,30) 0,98 (0,83;1,15)
Perto e de fácil acesso 1,05 (0,90;1,22) 1,08 (0,95;1,23)
Perto, mas de difícil acesso 1,18 (0,98;1,42) 1,02 (0,86;1,21)

a) RP: razão de prevalência.

b) IC95%: intervalo de confiança de 95%.

c) Teste de Wald para heterogeneidade.

d) Teste de Wald de tendência linear.

Entre os indivíduos que utilizaram medicamento(s), 14,0% (IC95% 11,2;17,4) reportaram ter obtido o(s) medicamento(s) pelo SUS, 45,8% (IC95% 40,3;51,4) em estabelecimento privado e 40,2% (IC95% 35,5;45,0) de forma mista (SUS e estabelecimento privado). O maior percentual de obtenção de medicamento(s) pelo SUS foi revelado por indivíduos de cor da pele não branca (22,9%) e de classificação econômica D/E (20,8%) (Tabela 3).

Tabela 3 Descrição das fontes de acesso aos medicamentos que foram utilizados no último mês entre adultos (n=829a) residentes na zona rural de Pelotas, Rio Grande do Sul, 2016 

Variáveis Fontes de acesso aos medicamentos
SUSb Estabelecimento privado Mista (SUS e estabelecimento privado)
(n=116) (n=380) (n=333)
%(IC95%c) %(IC95%c) %(IC95%c)
Sexo
Feminino 17,3 (13,1;22,5) 49,3 (43,0;55,7) 33,3 (27,4;39,9)
Masculino 11,6 (8,5; 15,8) 43,3 (36,7; 50,2) 45,0 (40,0; 50,2)
Idade (anos)
18-39 17,4 (12,0;24,6) 57,9 (48,0;67,2) 24,7 (18,3;32,4)
40-59 14,5 (11,4;18,2) 43,7 (38,0;49,6) 41,8 (36,1;47,8)
≥60 11,9 (8,4;16,5) 41,9 (34,4;49,9) 46,2 (38,5;54,1)
Cor da pele autodeclarada
Branca 12,5 (9,8;15,8) 47,8 (42,2;53,5) 39,7 (34,5;45,0)
Não branca 22,9 (16,4;31,1) 33,9 (24,5;44,9) 43,2 (35,4;51,3)
Mora com companheiro(a)
Não 15,5 (10,9;21,7) 40,3 (35,1;45,8) 44,1 (39,3;49,1)
Sim 13,4 (10,6;16,9) 47,9 (41,6;54,2) 38,7 (33,2;44,4)
Escolaridade
Sem instrução/ensino fundamental incompleto 14,0 (10,9;17,9) 41,3 (35,1;47,7) 44,8 (38,8;50,9)
Ensino fundamental completo/ensino médio incompleto 12,1 (5,8;23,3) 54,8 (40,5;68,4) 33,1 (21,8;46,8)
Ensino médio completo/ensino superior incompleto 18,0 (10,2;29,9) 53,3 (42,4;64,0) 28,6 (18,6;41,4)
Ensino superior completo ou mais 9,2 (3,0;24,9) 79,1 (64,2;88,8) 11,7 (5,4;23,5)
Classificação econômica
A/B 9,9 (6,0;15,9) 60,3 (53,3;67,0) 29,8 (22,3;38,7)
C 12,3 (9,1;16,5) 43,3 (36,0;50,9) 44,3 (37,6;51,3)
D/E 20,8 (15,3;27,7) 37,9 (30,8;45,7) 41,3 (35,6;47,1)
Situação atual de trabalho
Não trabalha 12,4 (8,9;17,1) 36,5 (30,9;42,5) 51,1 (45,4;56,9)
Trabalha 15,7 (12,3;19,7) 55,5 (49,5;61,3) 28,9 (23,4;35,1)
Autopercepção de saúde
Muito boa/boa 17,2 (14,1;20,9) 50,3 (44,4;56,2) 32,5 (27,2;38,3)
Regular 10,1 (6,7;14,9) 42,9 (36,1;50,0) 47,0 (39,9;54,1)
Ruim/muito ruim 13,2 (5,7;27,8) 35,0 (21,0;52,3) 51,8 (39,2;64,1)
Número de doenças crônicas
Nenhuma 16,2 (10,6;24,1) 69,6 (59,0;78,5) 14,2 (8,3;23,1)
1 - 2 15,3 (12,0;19,2) 45,2 (39,2;51,4) 39,5 (33,7;45,7)
3 ou mais 10,3 (6,5;16,0) 31,1 (23,7;39,6) 58,6 (50,7;66,2)
Cadastrado na Estratégia Saúde da Família
Não 12,1 (7,8;18,3) 54,0 (46,5;61,4) 33,9 (30,1;37,9)
Sim 14,7 (11,6;18,4) 42,6 (36,6;48,9) 42,7 (36,6;49,0)
Distância da casa à farmácia
Fácil acesso 15,0 (11,5;19,4) 45,4 (38,8;52,0) 39,6 (33,6;46,0)
Difícil acesso 12,7 (9,4;16,9) 46,4 (40,6;52,3) 40,9 (35,7;46,4)
Distância da casa à unidade básica de saúde mais próxima
Longe, mas de fácil acesso 10,7 (5,5;19,7) 49,7 (37,5;61,9) 39,6 (29,2;51,1)
Longe e de difícil acesso 12,4 (6,5;22,6) 52,7 (39,8;65,3) 34,9 (25,1;46,1)
Perto e de fácil acesso 15,0 (11,9;18,8) 43,7 (38,6;49,0) 41,2 (35,8;46,9)
Perto, mas de difícil acesso 13,1 (7,3;22,3) 49,9 (32,2;67,7) 37,0 (23,4;53,1)
Total 14,0 (11,2;17,4) 45,8 (40,3;51,4) 40,2 (35,5;45,0)

a) A variável possui 5 dados faltantes.

b) SUS: Sistema Único de Saúde.

c) IC95%: intervalo de confiança de 95%.

Após ajuste, a prevalência de obtenção de medicamento(s) de forma exclusivamente gratuita foi maior naqueles de cor da pele não branca (RP = 1,82 - IC95% 1,24;2,66) e foi menor em pessoas com saúde regular (RP=0,53 - IC95% 0,35;0,80). Quanto mais baixa a classe econômica, maior a probabilidade de obter medicamento(s) de forma gratuita (Tabela 4).

Tabela 4 Análises bruta e ajustada da prevalência da obtenção exclusivamente gratuita de medicamentos em relação às variáveis independentes entre adultos (n=829a) residentes na zona rural de Pelotas, Rio Grande do Sul, 2016 

Variáveis Análise ajustada
RPa (IC95%b) p-valorc RPa (IC95%b) p-valorc
Sexo 0,040 0,055
Feminino 1,00 1,00
Masculino 0,67 (0,46;0,98) 0,68 (0,46;1,01)
Idade (anos) 0,178 0,441
18-39 1,00 1,00
40-59 0,83 (0,54;1,28) 0,84 (0,54;1,30)
≥60 0,68 (0,45;1,05) 0,72 (0,43;1,20)
Cor da pele autodeclarada 0,004 0,004
Branca 1,00 1,00
Não branca 1,83 (1,24;2,71) 1,82 (1,24;2,66)
Escolaridade 0,612 0,197
Sem instrução/ensino fundamental incompleto 1,00 1,00
Ensino fundamental completo/ensino médio incompleto 0,86 (0,41;1,81) 0,82 (0,39;1,74)
Ensino médio completo/ensino superior incompleto 1,29 (0,70;2,39) 1,65 (0,91;2,97)
Ensino superior completo ou mais 0,66 (0,23;1,88) 1,09 (0,33;3,64)
Mora com companheiro(a) 0,405 0,777
Não 1,15 (0,81;1,64) 1,05 (0,73;1,52)
Sim 1,00 1,00
Classificação econômica 0,010e 0,004e
A/B 1,00 1,00
C 1,25 (0,71;2,19) 1,34 (0,76;2,37)
D/E 2,11 (1,21;3,70) 2,48 (1,30;4,76)
Situação atual de trabalho 0,176 0,192
Não trabalha 1,00 1,00
Trabalha 1,26 (0,89;1,78) 1,30 (0,87;1,94)
Autopercepção de saúde 0,053 0,013
Muito boa/boa 1,00 1,00
Regular 0,59 (0,38;0,91) 0,53 (0,35;0,80)
Ruim/muito ruim 0,77 (0,38;1,56) 0,69 (0,33;1,44)
Número de doenças crônicas 0,153 0,254
Nenhuma 1,00 1,00
1 - 2 0,94 (0,58;1,53) 0,99 (0,67;1,47)
3 ou mais 0,63 (0,37;1,10) 0,68 (0,39;1,20)
Cadastrado na Estratégia Saúde da Família 0,391 0,368
Não 1,00 1,00
Sim 1,21 (0,77;1,92) 1,21 (0,79;1,84)
Distância da casa à farmácia 0,318 0,312
Fácil acesso 1,00 1,00
Difícil acesso 0,84 (0,60;1,19) 0,83 (0,57;1,20)
Distância da casa à unidade básica de saúde mais próxima 0,777 0,952
Longe, mas de fácil acesso 1,00 1,00
Longe e de difícil acesso 1,16 (0,54;2,50) 1,08 (0,53;2,20)
Perto e de fácil acesso 1,41 (0,70;2,84) 1,14 (0,61;2,13)
Perto, mas de difícil acesso 1,22 (0,55;2,72) 0,96 (0,46;1,99)

a) A variável possui 5 dados faltantes.

b) RP: razão de prevalências.

c) IC95%: intervalo de confiança de 95%.

d) Teste de Wald para heterogeneidade.

e) Teste de Wald de tendência linear.

Um total de 3,3% (IC95% 2,4;4,5) dos indivíduos da amostra (n=50) relataram ter deixado de utilizar ao menos um medicamento necessário nos últimos 30 dias, e para tanto, os principais motivos reportados foram: não conseguiu obter pelo SUS ou Farmácia Popular (n=26; 52,0%); por vontade própria (n=15; 30,0%); receita vencida (n=4; 8,0%); por recomendação médica (n=5; 10%) (dados não apresentados em tabela).

Dos medicamentos necessários, aqueles para o sistema nervoso foram os mais frequentemente não utilizados (n=16), seguidos dos medicamentos para o sistema cardiovascular (n=10), para o trato alimentar e metabolismo (n=7) e para o sistema musculoesquelético (n=6). Também foram deixados de usar, embora com menor frequência, medicamentos para o sangue e órgãos hematopoiéticos (n=3); para o sistema geniturinário e hormônios sexuais (n=3); anti-infecciosos (n=2); antiparasitários, inseticidas e repelentes (n=1); e dermatológicos (n=2) (dados não apresentados em tabela). Os participantes deixaram de utilizar outros dois medicamentos, os quais não foi possível classificar por não constarem na ATC/OMS.

Discussão

Mais da metade dos entrevistados utilizou algum medicamento no mês anterior à entrevista. A utilização de medicamentos foi maior em mulheres, indivíduos mais velhos, com maior número de doenças crônicas e pior autopercepção de saúde; e menos frequente entre os que não tinham companheiro(a) e que estavam trabalhando. Aproximadamente um a cada sete adquiriu os medicamentos de forma exclusivamente gratuita, sendo essa prevalência maior entre homens, naqueles de cor da pele autodeclarada não branca, de classe econômica mais baixa e com autopercepção de saúde boa/muito boa. O fato de não ter utilizado algum medicamento considerado necessário nos 30 dias anteriores à entrevista foi reportado por poucos, e, entre estes, apenas metade relatou o não uso, devido à dificuldade de obtenção pelo SUS ou pela Farmácia Popular.

O estudo apresenta algumas limitações. O questionário utilizado não foi validado e, especificamente, a forma como foi coletada a informação de utilização de medicamentos, indireta, a partir das perguntas sobre falta de uso de medicamentos e fontes de sua obtenção, pode ter levado a uma subestimativa da prevalência de uso de medicamentos e, assim, dificultar comparações.

Outra limitação encontra-se na possibilidade de “viés do asfalto”. Este viés de seleção ocorre quando se elegem residências com acesso mais fácil. Nesses casos, a prevalência de utilização de medicamentos poderia estar superestimada, enquanto o não uso de algum medicamento necessário, subestimado. Ademais, as perdas e recusas foram maiores entre os mais jovens e no sexo masculino, sendo que a literatura aponta as mulheres e os indivíduos mais velhos como os que mais utilizam medicamentos.9 Outra possível limitação do estudo é o viés de memória: o período recordatório das perguntas refere-se aos últimos 30 dias, e o participante pode ter esquecido se utilizou/deixou de utilizar algum medicamento. Por último, ressalta-se o caráter transversal do estudo, que não permite analisar a temporalidade dos eventos, tornando-os suscetíveis ao viés de causalidade reversa em algumas associações (por exemplo: uso de medicamentos e autopercepção de saúde).

A prevalência de utilização de medicamentos estimada no presente estudo (54,7%) foi menor quando comparada à revelada em outro estudo, realizado no mesmo município de Pelotas, cerca de dez anos atrás (2002), embora em sua zona urbana e com período recordatório de 15 dias: 65,9%.19 Uma investigação realizada com indivíduos de 35-70 anos, entre 2003 e 2009, analisou o uso de medicamentos para prevenção de doenças cardiovasculares nas áreas urbanas e rurais de quatro países da América Latina - Argentina, Brasil, Chile e Colômbia -, onde foi observada, de maneira geral, menor prevalência de uso de medicamentos em áreas rurais, comparadas às urbanas.5

Conforme revisão de Gomes et al.,20 dos 14 estudos incluídos, apenas um avaliou o uso de medicamentos por adultos de zona urbana, nos últimos 30 dias, e a prevalência apresentada foi de 70%. Dados de um estudo integrante da Pesquisa Nacional sobre Acesso, Utilização e Promoção do Uso Racional de Medicamentos de 2015 (área urbana) mostraram prevalência de uso de medicamentos, nos 30 dias anteriores à pesquisa, de 76,2%.4

Existem algumas hipóteses para a divergência nas prevalências observadas entre os estudos. A prevalência de uso de medicamentos na zona urbana de Pelotas foi maior porque foi coletada cerca de uma década antes do estudo na zona rural;19 além do que, nos últimos anos, tem aumentado a conscientização sobre o uso racional de medicamentos, como também, reduziu-se o uso de antimicrobianos devido ao maior controle sanitário.21 Outra hipótese a considerar seria a de que, na zona rural, um possível menor acesso aos serviços de saúde implicaria menos diagnósticos e medicamentos prescritos;22 o menor acesso aos medicamentos estaria justificado tanto pelo número reduzido de farmácias existentes na zona rural, quando comparada à urbana, quanto pela necessidade de se deslocar para os adquirir. Finalmente, cabe observar mais uma hipótese, de a prevalência de uso de medicamentos na zona rural ser inferior à da zona urbana como decorrência natural da presença de hábitos de vida mais saudáveis no campo, frente aos da cidade.23 24

As maiores prevalências de uso de medicamentos em mulheres, pessoas mais velhas, com pior autopercepção de saúde e portadoras de mais doenças crônicas corrobora a literatura.2-4 Ter-se encontrado prevalência menor de uso de medicamentos naqueles que não tinham companheiro(a), por sua vez, suscita a hipótese da maior atenção e cuidado recebido de um companheiro(a), o que levaria alguém a buscar mais pelos serviços de saúde e, assim, aumentar as chances de diagnóstico de problemas de saúde que necessitem de medicamentos. Contudo, outros estudos não observaram essas diferenças relacionadas à situação conjugal.19 25 Já a menor prevalência observada entre os que tinham trabalho pode estar associada ao fato de, para estar trabalhando, os indivíduos tenderem a apresentar melhores condições de saúde (“efeito do trabalhador sadio”),26) enquanto o fato de não trabalhar, associado com alguma enfermidade ou condição de saúde, levaria à maior necessidade de uso de medicamentos.

As mulheres apresentaram maior prevalência de uso de medicamentos. Já está documentado na literatura que mulheres se preocupam mais com a saúde, possuem maior percepção dos sinais e sintomas de doenças e, por conseguinte, frequentam mais os serviços de saúde,27 28 o que pode explicar ao maior uso de medicamentos como decorrência da maior probabilidade de diagnósticos.

Com relação às fontes de acesso aos medicamentos, os resultados observados estão em consonância com os achados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) de 2008, realizada com indivíduos que tiveram prescrição de medicamentos no sistema público de saúde. Um estudo que analisou os dados da PNAD 2008 encontrou que menos da metade da amostra obteve os medicamentos gratuitamente (no sistema público), sendo esse número mais elevado naqueles com menor escolaridade e renda, de cor da pele preta e residentes em domicílios cadastrados na ESF;11 já o maior acesso aos medicamentos adquiridos no setor privado foi observado entre os mais ricos, de maior escolaridade e cor da pele branca. Cabe salientar que, para esse estudo, não houve diferenças nas prevalências de acesso a medicamentos, seja na situação de residência urbana, seja rural.11

Em Campinas, SP, foram investigados o uso e as fontes de obtenção dos medicamentos segundo variáveis sociodemográficas. Esse estudo, de base populacional e realizado em 2008, incluiu moradores de zona urbana com 20 anos ou mais de idade. A prevalência de uso de medicamentos nos três dias anteriores à pesquisa foi de 57,2%, próxima à observada no presente estudo, embora com período recordatório mais curto. Na cidade paulista, a prevalência de obtenção de medicamentos pelo SUS foi de 30%, quase o dobro da encontrada neste estudo de Pelotas,29 onde também se observou maior prevalência de obtenção de medicamentos pelo SUS entre indivíduos de menor renda. Esses resultados refletem a importância da cobertura dos serviços de saúde para atender populações mais vulneráveis.

No presente trabalho, não se encontrou associação entre (i) o uso de medicamentos ou obtenção de medicamentos de forma gratuita e (ii) as variáveis relacionadas aos serviços de saúde, a exemplo do cadastro na ESF e da distância das residências até a farmácia ou UBS mais próxima. Uma investigação de representatividade nacional, embora realizada exclusivamente em áreas urbanas, não mostrou diferenças importantes quanto à acessibilidade geográfica aos medicamentos providos pelo SUS, farmácia privada ou Farmácia Popular.2 Outrossim, e uma provável explicação para esse achado, é cerca de dois terços da amostra do presente estudo estar cadastrada na ESF e poucos terem avaliado a distância de sua casa até os serviços de difícil acesso. Cabe ressaltar os resultados de outros estudos, nos quais mais de 60% dos indivíduos entrevistados eram cadastrados na ESF e observou-se maior acesso a medicamentos entre eles.11 30

A frequência de indivíduos que deixaram de utilizar algum medicamento necessário foi baixa. Por se tratar de zona rural, seria esperada uma prevalência maior, considerando-se as iniquidades no acesso aos serviços de saúde observadas.9 Esse achado pode refletir o baixo percentual de indivíduos sem acesso a medicamentos, especialmente quando o motivo de não uso foi não ter conseguido o medicamento pelo SUS. Corroborando esse achado, a Pesquisa Nacional sobre Acesso, Utilização e Promoção do Uso Racional de Medicamentos revelou acesso total a medicamentos para 94,3% dos indivíduos.2 É provável que o acesso facilitado aos medicamentos esteja relacionado com o aumento da cobertura das unidades básicas de saúde, e com a existência de programas de governo cuja proposta é o acesso universal e gratuito.

O uso de medicamentos na zona rural do Brasil ainda é pouco explorado, pelo que se recomenda a realização de futuros estudos sobre o tema, para que haja maior entendimento das características de saúde do meio rural. Os achados deste trabalho são particularmente importantes para o desenho de políticas públicas e estratégias específicas, voltadas à população do campo. Ressalta-se a importância da equidade na atenção e cuidado à saúde de subgrupos mais vulneráveis. Mesmo o presente estudo demonstrando que indivíduos de classe econômica mais baixa obtiveram medicamentos de maneira gratuita e com maior frequência, sua prevalência ainda foi baixa.

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*O estudo recebeu apoio financeiro do Programa de Excelência Acadêmica da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), (Código de Financiamento 001; Processo nº 23038.002445/2015-97), e do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).

Recebido: 07 de Maio de 2020; Aceito: 04 de Agosto de 2020

Endereço para correspondência: Rafaela Costa Martins - Rua Marechal Deodoro, nº 1160, 3º piso, Centro, Pelotas, RS, Brasil. CEP: 96020-220. E-mail: rafamartins1@gmail.com.

Editora associada

Taís Freire Galvão - 0000-0003-2072-4834

Contribuição das autoras

Bertoldi AD, Silveira MPT, Machado AKF, Xavier MO e Martins RC participaram da concepção e planejamento do estudo, interpretação dos dados e redação do artigo. Machado AKF, Xavier MO e Martins RC participaram da aquisição dos dados. Machado AKF e Martins RC realizaram as análises estatísticas. Todas as autoras contribuíram com as versões preliminares do manuscrito, revisaram criticamente o conteúdo intelectual e aprovaram sua versão final, sendo responsáveis por todos os aspectos do trabalho.

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