Introdução
A população em situação de rua (PSR) constitui-se de um grupo heterogêneo, em situação de pobreza extrema, vínculos familiares fragilizados ou rompidos e moradia não convencional de caráter permanente ou temporário.1
As ruas oferecem muitos perigos a essa população, como violência, insegurança alimentar, indisponibilidade de água potável, privação de sono e de afetividade, expondo-a a várias doenças, agravos e situações de vulnerabilidade. A escassez de informações sobre a PSR é uma realidade no Brasil e, até o momento desta publicação, não está prevista sua inclusão no censo demográfico do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística.2-4
Pesquisa realizada pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, fundação pública vinculada ao Ministério da Economia do Brasil, com estimativas projetadas a partir de informações do Cadastro Único para Programas Sociais do Governo Federal (CadÚnico) e do Sistema Único de Assistência Social, permite presumir que em 2020 existam 221.869 PSR no Brasil, predominantemente na região Sudeste, mas em crescimento bastante significativo no Norte do país.5
Em 2009, com a publicação do Decreto Federal nº 7.053, em 23 de dezembro de 2009, foi instituída a Política Nacional para a População em Situação de Rua.6 Entretanto, não se alcançou a plena garantia de direitos e condições para uma existência digna e proteção social dessa população até os dias de hoje, segundo a militância política do Movimento Nacional da População em Situação de Rua. No campo da Saúde, uma vez admitidas iniquidades no acesso a seus serviços, decidiu-se pelo desmembramento de estratégias de ação, como o ‘Plano operativo para implementação de ações em saúde da população em situação de rua 2012-2015’, pela (hoje extinta) Secretaria de Gestão Estratégica e Participativa do Ministério da Saúde, e o ‘Consultório na Rua’, um projeto da Política Nacional de Atenção Básica, coordenada nacionalmente pela Secretaria de Atenção Primária à Saúde do Ministério. Apesar dessas iniciativas, a PSR ainda é acometida por violências, adoecimento mental, doenças crônicas e doenças infecciosas, entre estas a tuberculose.7-9
O Brasil é um dos 22 países com alta endemicidade para tuberculose. A Organização Mundial da Saúde estima que cerca de um quarto da população mundial seja portadora do Mycobacterium tuberculosis e 5 a 10% dos infectados desenvolvam a tuberculose ao longo da vida.3,10
A ausência de moradia e as precárias condições de vida são fatores determinantes para a ocorrência da doença na PSR. Segundo estudo realizado na capital Salvador, BA,11 a tuberculose aparece como a terceira maior causa de adoecimento nesse grupo específico. No estado de São Paulo, estudo com base em dados de 2009 a 2013 estimou a magnitude da tuberculose, cujos percentuais de abandono do tratamento entre a PSR são particularmente altos, chegando a 57,3%. Pessoas em situação de rua apresentaram uma incidência 10 a 85 vezes superior de infecções latentes por tuberculose e doença ativa, quando comparadas à população geral.12 Por esses motivos, o Programa Nacional de Controle da Tuberculose inclui a PSR como população prioritária.13
Este estudo, determinado a visibilizar direitos humanos negados e apresentar dados que favoreçam a tomada de decisão pela realização de ações previstas em políticas públicas intersetoriais, teve como objetivo caracterizar (i) o perfil sociodemográfico da PSR registrada no CadÚnico em maio de 2019 e (ii) a morbidade por tuberculose nessa população notificada no Sistema de Informação de Agravos de Notificação (Sinan) no período de 2014 a 2018.
Métodos
Estudo descritivo de toda a PSR registrada no Tabulador de Informações do CadÚnico (TABCAD - CadÚnico V7), em maio de 2019,14 e da PSR acometida por tuberculose e notificada no Sinan (TABNET) no período de 2014 a 2018.15
Para a definição da população do estudo, foram utilizados os dados registrados no TABCAD até o ano de 2019, uma vez que esse tabulador não permite recorte temporal. Esses dados foram acessados no dia 2 de maio de 2019.14 Para a escolha da população no Sinan, procurou-se abranger o intervalo de maior notificação dos casos observado, cujo início corresponde a 2014, quando se inseriu no sistema a categoria ‘População em Situação de Rua’, pela variável ‘Populações Especiais’ - dados tabulados a partir do TABNET, no dia 20 de setembro de 2020.15
Consultadas no CadÚnico, foram incluídas as seguintes variáveis:
sexo (masculino; feminino);
faixa etária (em anos: 0 a 15; 16 a 24; 25 a 44; 45 a 54; 55 a 64; 65 e mais);
raça/cor da pele (branca; preta; amarela; parda; indígena; sem informação);
escolaridade (por grau de instrução: sem instrução; ensino fundamental incompleto; ensino fundamental completo; ensino médio incompleto; ensino médio completo; ensino superior incompleto ou mais; sem informação);
faixa de renda familiar per capita (extrema pobreza; pobreza; baixa renda; acima de 1/2 salário mínimo); e
ser beneficiário do Programa Bolsa Família (sim; não).14
Para a caracterização da faixa de renda familiar per capita, adotou-se o critério do Ministério da Cidadania: ‘extrema pobreza’ como renda mensal por pessoa de até R$89,00; e ‘pobreza’, como renda mensal por pessoa de R$89,01 até R$178,00.16
Na caracterização dos casos de tuberculose notificados no Sinan, optou-se pela descrição das variáveis sociodemográficas equivalentes às obtidas do CadÚnico, com exceção da variável ‘faixa de renda familiar per capita’, esta não registrada na ficha do Sinan. Dada a especificidade do TABNET, adotou-se para a variável ‘faixa etária’ as seguintes categorias de idade, em anos: 0 a 14; 15 a 24; 25 a 34; 35 a 44; 45 a 54; 55 a 64; 65 e mais; sem informação.15 Também foram descritas as variáveis ‘tipo de entrada’ (caso novo; reingresso; recidiva; transferência; diagnóstico pós-óbito; não sabe) e ‘desfecho do tratamento’ (cura; abandono; óbito; transferência; ignorado/em branco) dos casos de tuberculose em PSR no Brasil.15 Na análise dos desfechos da tuberculose na população em situação de rua, foram excluídas as variáveis ‘TB-DR’, ‘mudança de esquema’, ‘falência’ e ‘abandono primário’, por apresentarem resultados inferiores a 1,1%. Também foram excluídos os óbitos por outras causas, haja vista a impossibilidade de análise de causas secundárias. No período da coleta e análise dos dados, os encerramentos dos casos de 2019 não estavam consolidados no Sinan e, por esse motivo, esses dados para este ano não foram incluídos no estudo.15
Foram elaborados mapas pelo programa OGis, para análise comparativa das Unidades da Federação (UFs) com maior número de pessoas em situação de rua cadastradas no CadÚnico e que, também, apresentavam as maiores proporções de casos confirmados de tuberculose na PSR. A análise da PSR registrada no CadÚnico e no Sinan partiu do número absoluto e da proporção (%) das variáveis de interesse, apoiada no software Excel.
Não foi necessária submissão do projeto do estudo a um Comitê de Ética em Pesquisa, visto que os dados secundários utilizados estavam disponíveis para o público, mediante consulta aos sistemas de informações.
Resultados
Foram identificadas 127.536 PSR registradas no CadÚnico em maio de 2019. Conforme o mapa da distribuição da PSR por UF, representado pela Figura 1A, a maior parte dessa população concentrava-se em Minas Gerais, São Paulo, Rio de Janeiro, Paraná e Rio Grande do Sul, em números superiores a 5 mil pessoas. As UFs com menos de 500 pessoas cadastradas nessa situação encontravam-se na região Norte: Tocantins, Amapá, Rondônia e Acre.
Na análise do número de casos de tuberculose na PSR notificados no Sinan, foram identificadas 14.059 pessoas com tuberculose entre 2014 e 2018. De acordo com a Figura 1B, em São Paulo e nos estados da região Sul, mais de 4% dos casos de tuberculose ocorreram nessa população. Vale destacar que entre os dez estados (e o Distrito Federal) que apresentaram entre 1 mil e 5 mil pessoas registradas no CadÚnico, apenas Goiás, Minas Gerais, Rio de Janeiro e Espírito Santo mantiveram proporções de casos de tuberculose de 3 a 3,9%.
Na Figura 2, é apresentado o somatório das pessoas notificadas no Sinan com o modo de entrada ‘reingresso após abandono’, ‘recidiva’, ‘transferência’, ‘diagnóstico pós-óbito’ e dos registros ‘sem informação’ de tipo de entrada: no total, foram notificadas 6.355 pessoas, 45,2% dos casos notificados entre os anos de 2014 e 2018.
Dos casos de tuberculose na PSR registrados no Sinan (Tabela 1), 80,9% (11.377) foram de pessoas do sexo masculino e 19,1% (2.682) do sexo feminino. Quanto à faixa etária, 80,7% (11.347) dos casos ocorreram entre pessoas de 25 a 54 anos, com maior predomínio entre indivíduos na faixa etária dos 35 aos 44 anos (54,2%). Considerando-se a raça/cor da pele, predominou a população negra, com 64,1% (9.003) dos casos, ou seja, 44,2% (6.209) de pessoas autodeclaradas pardas e 19,9% (2.794) de pessoas pretas.
Variáveis | Pessoas em situação de rua com TB (n=14.059) | |
---|---|---|
n | % | |
Sexo | ||
Masculino | 11.377 | 80,9 |
Feminino | 2.682 | 19,1 |
Faixa etária (em anos) | ||
≤14 | 67 | 0,5 |
15-24 | 985 | 7,0 |
25-34 | 3.719 | 26,5 |
35-44 | 4.716 | 33,5 |
45-54 | 2.912 | 20,7 |
55-64 | 1.288 | 9,2 |
≥65 | 359 | 2,6 |
Raça/cor da pele | ||
Branca | 3.733 | 26,5 |
Preta | 2.794 | 19,9 |
Amarela | 84 | 0,6 |
Parda | 6.209 | 44,2 |
Indígena | 62 | 0,4 |
Sem informação | 1.177 | 8,4 |
Escolaridade | ||
Analfabeto | 715 | 5,1 |
Ensino fundamental incompleto | 5.881 | 41,8 |
Ensino fundamental completo | 588 | 4,2 |
Ensino médio incompleto | 1.268 | 9,0 |
Ensino médio completo | 374 | 2,7 |
Ensino superior incompleto e mais | 222 | 1,6 |
Sem informação | 5.011 | 35,6 |
Beneficiário do governo | ||
Sim | 565 | 4,0 |
Não | 6.489 | 46,2 |
Sem informação | 7.005 | 49,8 |
Com relação à escolaridade da PSR com tuberculose notificada no Sinan, 46,0% (6.469) chegaram ao ensino fundamental. Quanto a ser beneficiário de programas sociais do governo, observou-se que 46,2% (6.489) não recebiam esses benefícios, senão apenas 4,0% (565); esta variável, entretanto, apresentou 49,8% (7.005) de PSR sem essa informação (Tabela 1).
Conforme a Tabela 2, a PSR do Brasil registrada no CadÚnico constituía-se de 86,8% (110.732) de pessoas do sexo masculino e 74,8% (95.394) de indivíduos concentrados na faixa etária dos 25 aos 54 anos. Sobre a variável ‘raça/cor da pele’, os dados do CadÚnico apresentaram 51,3% (65.454) autodeclarados pardos e 16,2% (20.652) pretos, o que perfez 67,5% (86.106) de pessoas negras.
Variáveis | Pessoas em situação de rua (n=127.536) | |
---|---|---|
n | % | |
Sexo | ||
Masculino | 110.732 | 86,8 |
Feminino | 16.804 | 13,2 |
Faixa etária (em anos) | ||
≤15 | 3.347 | 2,6 |
16-24 | 7.081 | 5,5 |
25-44 | 66.570 | 52,2 |
45-54 | 28.824 | 22,6 |
55-64 | 16.921 | 13,3 |
≥65 | 4.793 | 3,8 |
Raça/cor da pele | ||
Branca | 40.457 | 31,7 |
Preta | 20.652 | 16,2 |
Amarela | 576 | 0,5 |
Parda | 65.454 | 51,3 |
Indígena | 296 | 0,2 |
Sem informação | 101 | 0,1 |
Escolaridade | ||
Analfabeto | 13.859 | 10,9 |
Ensino fundamental incompleto | 61.779 | 48,4 |
Ensino fundamental completo | 17.479 | 13,7 |
Ensino médio incompleto | 11.354 | 8,9 |
Ensino médio completo | 19.781 | 15,5 |
Ensino superior incompleto e mais | 1.905 | 1,5 |
Sem informação | 1.379 | 1,1 |
Faixa da renda familiar per capita | ||
Extrema pobreza | 115.073 | 90,2 |
Pobreza | 2.332 | 1,8 |
Baixa renda | 2.964 | 2,3 |
Acima de 1/2 salário mínimo | 7.167 | 5,7 |
Beneficiário do Programa Bolsa Família | ||
Sim | 565 | 4,0 |
Não | 6.489 | 46,2 |
Sem informação | 7.005 | 49,8 |
A escolaridade, determinada pelo grau de instrução, revelou 62,1% (79.258) a ter alcaçado o ensino fundamental: 48,4% (61.779) com ensino fundamental incompleto e 13,7% (17.479) com ensino fundamental completo. Quanto à renda familiar per capita, 90,2% (115.073) da PSR encontravam-se em situação de extrema pobreza. Observou-se que 5,7% (7.167) dessas pessoas apresentavam renda acima de meio salário mínimo e 75,5% (96.337) eram beneficiárias do Programa Bolsa Família (Tabela 2).
A Figura 3 apresenta os percentuais de desfecho do tratamento dos casos de tuberculose notificados no Sinan entre a PSR no país. No período de 2014 a 2018, mesmo com a redução do abandono do tratamento estimada em 5,5 pontos percentuais, a proporção de indivíduos que alcançaram a cura declinou 5,1%, passando de 39,6% em 2014 para 34,5% em 2018. Houve um aumento nos percentuais de desfechos ‘ignorado/em branco’ e ‘transferência’. Os óbitos por tuberculose também apresentaram elevação, ao longo dos anos estudados, oscilando de 5,8 a 7,5 pontos percentuais - precisamente o último ano do período analisado, 2018, foi o responsável pelo maior percentual de óbitos encontrado, 7,5% do total dos casos de tuberculose na população em situação de rua no Brasil.
Discussão
Este é o primeiro estudo realizado no Brasil, de abrangência nacional, com dados sociodemográficos e sobre a tuberculose na PSR, disponíveis em sistemas de informações. A partir da análise de toda a PSR cadastrada, os resultados revelaram a concentração da PSR e dos casos de tuberculose, no contingente e objeto do estudo, nos estados das regiões Sudeste e Sul do país, com destaque para o Rio Grande do Sul.
O perfil sociodemográfico dos casos de tuberculose na PSR, com predominância do sexo masculino e da raça/cor da pele negra (pardos e pretos), é similar ao perfil da PSR registrada no CadÚnico. Além disso, foram identificados altos percentuais de reingresso e recidiva após abandono do tratamento e de piores desfechos, a exemplo do aumento nas proporções de óbitos por tuberculose, no período observado.
A saúde da PSR corresponde a uma das interfaces mais críticas da vulnerabilidade na situação de rua, em um contexto de precárias condições socioeconômicas, dificuldade de acesso aos serviços de saúde, maior risco de infecção, adoecimento e piores desfechos clínicos. Elementos históricos, políticos e socioculturais alicerçam relações antagônicas na sociedade brasileira, cada vez mais responsáveis pela desregulação social do capital, esvaziamento dos direitos sociais e crescimento das iniquidades em saúde.17 As ações e políticas públicas ofertadas à PSR não deixam de ser influenciadas por pensamentos preconceituosos sobre pessoas em situação de rua, cuja fragilidade não é reconhecida ou devidamente compreendida pela sociedade geral, norteada pela ideologia dominante de que “viver na rua é uma escolha individual”.18
Os estados do Sudeste e Sul do Brasil apresentaram as maiores concentrações de PSR exposta a precárias condições de vida e comorbidades. Um exemplo dessas condições está na infecção pelo HIV/aids, que aumenta o risco da infecção e adoecimento pelo Mycobacterium tuberculosis. Segundo estudo realizado em Porto Alegre, RS, o percentual da PSR acometida pela tuberculose foi quase a metade do total de casos na área central daquela capital, no período de 2007 a 2011.19
Outro estudo, realizado no estado de São Paulo, identificou associação entre falta de moradia e redução da sobrevida de pessoas com tuberculose, com destaque para a faixa etária economicamente ativa (20 a 40 anos), agravando ainda mais sua condição de vulnerabilidade.20 Em um cenário de aumento do número de pessoas sobrevivendo nas ruas, em razão de diversos fatores, como desemprego e migrações, principalmente nas grandes cidades, é importante considerar se as menores proporções de PSR nos demais estados resultam das lacunas na vigilância dos casos de tuberculose nessa população ou se, de fato, traduzem a realidade do país.
A análise dos dados do Sinan evidencia altos percentuais de recidiva e reingresso no tratamento da tuberculose na PSR. Na percepção de profissionais de saúde da cidade de São Paulo, existem dificuldades na adesão à terapia medicamentosa de longa duração e no monitoramento da saúde dos indivíduos infectados pelo M. tuberculosis, decorrentes da ausência de infraestrutura, baixa escolaridade, alimentação inadequada, desemprego etc.20
Estudos, também realizados no estado de São Paulo, revelam um percentual de abandono do tratamento da tuberculose na PSR de 40,5% no ano de 2014, e aproximadamente 56% com desfechos desfavoráveis.21 No presente trabalho, o alto índice de abandono reflete-se no alto percentual de reingresso e recidiva do tratamento.
Os casos de tuberculose no período analisado ocorreram, majoritariamente, em indivíduos do sexo masculino, negros (pretos e pardos), de baixa escolaridade e em idade economicamente ativa. Na análise das informações da PSR disponíveis no CadÚnico, observou-se um perfil sociodemográfico semelhante ao da PSR com tuberculose notificada no Sinan e, ademais, uma faixa de renda familiar per capita caracterizada como de extrema pobreza.16 Corroborando o perfil identificado neste estudo, o censo da PSR de 2008 revelou maior frequência de pessoas do sexo masculino, com idade entre 18 e 54 anos, e predominância da raça/cor da pele negra. O censo em questão também revelou uma PSR composta por trabalhadores e uma minoria a depender, como principal fonte de renda, do pedido de dinheiro nas ruas, sem acesso a programas de oferta de renda pelo governo, analfabetos funcionais e exercendo alguma atividade remunerada.4
A análise dos fatores sociodemográficos na PSR com tuberculose visibiliza a raça/cor da pele dessas pessoas, em sua maioria negras. Outros estudos realizados no Brasil5,22demonstram a relação entre raça/cor da pele e exclusão social. Considerando-se as diversas vulnerabilidades a que a sociedade capitalista expõe as classes menos favorecidas, a PSR, especialmente, apresenta dramas e demandas comumente invisibilizadas e naturalizadas, corroborando situações já sofridas pela população negra ao longo da história da sociedade brasileira.23
Em relação ao Programa Bolsa Família, os dados do CadÚnico apontam que um terço dessa população é sua beneficiária. No estudo realizado em Salvador, sobre o recebimento de benefícios sociais por pessoas com tuberculose, demonstrou-se que os indivíduos beneficiários de programas sociais tiveram 14,5% maior sucesso no tratamento da infecção.24 Esta análise, quando atrelada às vulnerabilidades descritas aqui, pode indicar caminhos para a melhoria da adesão ao tratamento.
Considerando-se todas as superações necessárias à realização do diagnóstico e tratamento da tuberculose na PSR, os resultados deste estudo evidenciam elevados percentuais de abandono do tratamento e óbitos. Percentuais tão altos reafirmam as conclusões de estudos realizados no Brasil e em países europeus, sobre a condição de viver em situação de rua como agravante para a falência do tratamento da tuberculose e aumento da ocorrência de óbitos.20,25-27
O estudo apresenta limitações, entre elas a impossibilidade de calcular a incidência da tuberculose na PSR: não há estimativas populacionais fidedignas dessa população por UF. Além disso, é preciso ter em conta o sub-registro das variáveis ‘escolaridade’ e ‘benefício do governo’ na ficha do Sinan, enquanto, no CadÚnico, o registro do recebimento de benefício do governo é obrigatório.
Como pontos fortes da pesquisa, está a possibilidade da comparação de dados de toda a PSR registrada no CadÚnico, em nível nacional, assim como dos dados das notificações de tuberculose das pessoas em situação de rua nos últimos cinco anos. O estudo também revela os altos percentuais de desfechos negativos (abandono e óbito) e os casos reincidentes nessa população.
Há uma carência de evidências que permitam aprofundar a discussão sobre a relação dos fatores sociodemográficos e econômicos com o diagnóstico, evolução clínica e desfecho do tratamento da tuberculose na PSR, pelo que se fazem necessárias mais pesquisas, qualitativas e quantitativas, para fundamentar uma ampla discussão, maior visibilidade do problema e decisão segura dos gestores quanto às ações de saúde voltadas a essa população.
Cumpre a estes autores recomendar o fortalecimento das redes socioassistenciais e de saúde, em parceria com as representações sociais instituídas, para o atendimento à PSR. Extremamente necessário e importante é o desenvolvimento de ações de reparação social que possibilitem o acesso a alimentação e moradia dignas, e promoção da cidadania.
No âmbito do Sistema Único de Saúde, é fundamental eliminar as barreiras existentes entre a PSR e os serviços prestados pelo sistema, mediante o fortalecimento da Atenção Básica como ação potencializadora na identificação precoce da infecção e tratamento monitorado, tendo como uma de suas estratégias o tratamento diretamente observado.13,28
Finalmente, é necessário qualificar os dados sobre a PSR disponíveis nos sistemas de informações, favorecendo a tomada de decisão sobre políticas públicas para redução da invisibilidade dessa população no Brasil. A sensibilização das equipes de saúde que realizam o diagnóstico e o preenchimento dos formulários é tão imprescindível para a qualificação da informação quanto para a o desenho de políticas intersetoriais efetivas, na organização de uma rede de atenção integral à saúde da PSR.
Os resultados do estudo permitem concluir que a tuberculose permanece como um grave problema de Saúde Pública, que agrava a condição de sobrevivência nas ruas, funcionando como um marcador da violação do acesso e direito à saúde da população em situação de rua no Brasil.