Este artigo apresenta uma reflexão atual, especialmente no Brasil, sobre os termos utilizados pela sociedade em geral (e, frequentemente, pelos profissionais de saúde) para se fazer referência às pessoas que usam drogas. Grande parte da literatura científica é publicada em inglês e, portanto, não há ainda na literatura brasileira padronizações de termos adequados na área de álcool e outras drogas. Isso traz uma série de dúvidas e reproduções (acríticas) de termos que já não são utilizados pela literatura cientifica há mais de 10 anos.1 O intuito é referenciar e não padronizar de forma rígida tais termos, pois a linguagem – utilizada seja na prática clínica ou na literatura científica – é dinâmica. Será apresentado um panorama das discussões atuais e alternativas nas quais os pesquisadores, profissionais, a imprensa e a população podem se basear para que se reduza o estigma na área de álcool e outras drogas.
A ciência evolui em diversos domínios, desde novas descobertas que tornam obsoletos achados anteriores à modificação de termos que se tornam inadequados em um determinado momento histórico. Na área de saúde mental, por exemplo, a criança “excepcional” passou a ser chamada de “criança com deficiência intelectual”, e o “esquizofrênico” passou a ser chamado de “pessoa com esquizofrenia”.2 A adequação da linguagem na área de saúde mental não se deve meramente ao politicamente correto, pois esta expressão remete a palavras que são utilizadas em contextos sociais apenas para mascarar o preconceito, e não para combatê-lo.
A adequação dos termos na área de álcool e outras drogas não é um movimento recente. Desde a década de 1960, a Organização Mundial da Saúde (OMS) vem discutindo e modificando várias nomenclaturas; por exemplo, o termo “alcoólatra” foi substituído por “dependência de álcool”.3 A American Psychiatric Association retirou da nova versão do Manual Diagnóstico de Transtornos Mentais, 5ᵃ edição (DSM-5), o termo “abuso”.2 No Brasil, houve substituições nas terminologias contidas nas leis e decretos, tendo sido substituídas denominações como “infratores viciados”,4 “sanatório para toxicômanos”,5 “Conselho Nacional Antidrogas” para outras mais adequadas, como “dependente”,6 “acesso ao cuidado”,7 “Política Nacional sobre Drogas”, respectivamente. A Plataforma Brasileira de Políticas sobre Drogas, em conjunto com outras entidades, lançou em 2017 um Guia sobre drogas para jornalistas, a fim de orientar os profissionais da imprensa no sentido de diminuir o estigma nas matérias midiáticas brasileiras.8 Esses esforços contribuem para a adequação, coerência e propagação dos achados científicos para a sociedade.
Estudo realizado em 2010 com profissionais da área da saúde testou a influência das expressões “abuso de drogas” e “transtorno por uso de substâncias” e verificou que, quando o termo “abuso” era empregado, os profissionais eram mais propensos a indicar ações de punição e culpabilização.1 A utilização inadequada de termos, mesmo por profissionais altamente capacitados, pode prejudicar o acesso, a busca e a manutenção do tratamento pelas pessoas que fazem uso de drogas. 9-11
Recomenda-se evitar denominações inespecíficas ou com significado pouco claro, como “consumo moderado”, “consumo saudável”, “consumo não saudável”, “consumo responsável”, “consumo problemático”, “consumo indevido” e “compulsivo”,11,12 bem como termos populares (Figura 1).11-15 Propõe-se também evitar termos como “alcoolista”, mesmo que tal palavra tenha sido proposta para substituir outra inapropriada como “alcoólatra”, que remete a “idolatria”.11,16 A palavra “alcoolista” tem sido utilizada mais em contexto brasileiro, e remete a “aquele que tem preferência por algo”; no entanto, por se tratar de um transtorno por uso de álcool, a pessoa não está preferindo utilizar o álcool, mas o faz em decorrência do atual quadro clínico, que envolve fatores genéticos, psicológicos e sociais.17 A expressão “dependência química” também tem sido discutida como inespecífica, pois não considera fatores psicológicos e sociais, e resume uma dimensão multifatorial em apenas uma das vertentes – a “química”. 18
O termo “abuso” está associado, no imaginário social, a comportamentos violentos direcionados a outras pessoas, como estupro e violência doméstica.12 Utilizá-lo na área de álcool e outras drogas pode perpetuar a ideia de que a pessoa que faz uso de drogas é culpada e merecedora de medidas punitivas e de exclusão.12,14-18 Outros termos comumente usados para informar resultados de exames toxicológicos ou em locais de tratamento de transtorno por uso de substâncias são “limpo” ou “sujo”.18 Tais palavras, além de evocarem preconceitos punitivos implícitos, diminuem a sensação de autoeficácia, sendo uma barreira na mudança de paradigma no campo da saúde.12 Recomenda-se, nos casos de exames toxicológicos, o emprego das expressões “positivo” e “negativo”.17
Outro aspecto a ser considerado é o incentivo à linguagem que vise à mudança na percepção de que a pessoa “é” um problema, para a pessoa que “tem” um problema. 15 Por exemplo, termos como “usuários” e “dependentes” agrupam e despersonalizam; por isso, as expressões “pessoa que faz uso de drogas”, “pessoa com transtorno por uso de substância” ou “pessoa dependente de álcool” são preferíveis.15 Outros termos atuais têm sido adotados, como aqueles que remetem a graus de risco, como “consumo de risco”, “consumo de baixo risco” ou “consumo de alto risco”.9 No que se refere a “dependência de drogas”, que atualmente também é denominada “transtorno por uso de substâncias”, os achados mostram que ambas as expressões são apropriadas aos contextos de saúde.12,13,16,19 Mesmo expressões frequentemente utilizadas em contextos de saúde e pesquisa, como “desmotivado”, “resistente”, “não aderente”, podem individualizar a responsabilidade pelo tratamento. Como alternativa a tais expressões, teríamos “não está de acordo com o plano de tratamento”, “optou por não participar”, “não começou o tratamento”.14
Frente às inúmeras barreiras e dificuldades encontradas na área de álcool e outras drogas no Brasil (onde mais de 43,1% da população fez uso de álcool; 17,3%, de tabaco; e 3,4%, de alguma substância ilícita nos últimos 12 meses), 20 um caminho inicial seria adotar uma linguagem apropriada do ponto de vista científico e da saúde, que transmita a mesma dignidade e respeito oferecidos às pessoas com outras condições de saúde. As consequências negativas do uso de drogas vão além do transtorno por uso de substâncias, envolvendo também o aumento da ocorrência de doenças crônicas, da mortalidade prematura, e de incapacidades.21 Nesse ínterim, é necessário que os esforços para a mudança de terminologias aconteçam de forma sistemática e consistente, considerando-se os achados científicos atuais.