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Epidemiologia e Serviços de Saúde

versão impressa ISSN 1679-4974versão On-line ISSN 2237-9622

Epidemiol. Serv. Saúde vol.30 no.1 Brasília  2021  Epub 15-Abr-2021

http://dx.doi.org/10.1590/s1679-49742021000100026 

Aplicações da epidemiologia

Proposta de classificação dos diferentes tipos de estudos epidemiológicos descritivos

Propuesta de clasificación de los diferentes tipos de estudios epidemiológicos descriptivos

Edgar Merchán-Hamann (orcid: 0000-0001-6775-9466)1  , Pedro Luiz Tauil (orcid: 0000-0002-9333-3327)2 

1Faculdade de Ciências da Saúde, Universidade de Brasília, Brasília, DF, Brasil

2Faculdade de Medicina, Universidade de Brasília, Brasília, DF, Brasil

Resumo

A categoria dos estudos epidemiológicos descritivos é tema relevante, uma vez que existem inconsistências na literatura quanto a sua nomenclatura e classificação. Foram revistos livros de textos acadêmicos de epidemiologia, 19 estrangeiros e seis nacionais, sendo o critério principal tê-los disponíveis para revisão detalhada dos capítulos de epidemiologia descritiva e tipos de estudo. Em 11 livros, os autores dão prioridade aos estudos analíticos. Doze textos estrangeiros e dois brasileiros incluem estudos descritivos, apesar de a maioria não explicitar uma categoria específica com esse nome. Propõe-se uma classificação com base nas respostas a questões norteadoras de pesquisa, incluindo os seguintes tipos de estudos: relato de caso, série de casos, coorte clínica, estudo de prevalência, estudo de incidência (coorte) e estudo ecológico descritivo. Discutem-se as potencialidades do seu uso, a implementação de novos métodos de análise e sua relevância na vigilância à saúde.

Palavras-chave: Estudos Epidemiológicos; Estudos Descritivos; Classificação

Resumen

La categoría de estudios epidemiológicos descriptivos es relevante para los servicios de atención de salud ya que existen inconsistencias en la literatura con relación a su nomenclatura y clasificación. Se revisaron libros de texto académicos de epidemiología con ejemplares disponibles para revisión detallada de capítulos de epidemiología descriptiva y tipos de estudio: 19 extranjeros y 6 brasileños. En 11 libros, los autores no consideran ningún estudio que no sea analítico. Doce textos extranjeros y dos brasileños abarcan estudios descriptivos, aunque la mayoría no reconozca esa categoría explícitamente. Se propone una clasificación basada en las respuestas a preguntas orientadoras de la investigación incluyendo los siguientes tipos de estudios: relato de caso, serie de casos y cohorte clínica; cuatro de ámbito poblacional/comunitario: estudio de prevalencia, estudio de incidencia (cohorte), estudio descriptivo ecológico. Se discuten las potencialidades del uso, la implementación de nuevos métodos de análisis y su relevancia en la vigilancia epidemiológica.

Palabras clave: Estudios Epidemiológicos; Estudios Descriptivos; Clasificación

Introdução

Segundo o Dicionário de Epidemiologia de M. Porta,1 epidemiologia é o estudo da ocorrência e distribuição de eventos relacionados à saúde em populações específicas, incluindo o estudo dos fatores determinantes que influenciam tais eventos, e a aplicação desse conhecimento para controlar os problemas de saúde. O estudo da ocorrência e da distribuição de eventos constitui o objeto dos estudos epidemiológicos descritivos.

Nesses estudos, pesquisadores não buscam verificar a existência ou não de associação entre variáveis de exposição e de efeito. Tradicionalmente, define-se como uma característica primordial o fato de não terem um grupo de comparação, comumente chamado de “grupo controle”. A determinação da frequência dos eventos e da sua distribuição, segundo as características das pessoas acometidas ou que relatam um determinado antecedente, localização espacial e temporal, permite identificar coletivos populacionais, áreas geográficas e épocas de risco (incidência) ou de maior presença (prevalência) do agravo. Permitem ainda formular hipóteses a respeito dos fatores responsáveis por sua frequência e distribuição. Tais hipóteses podem ser ulteriormente testadas mediante estudos epidemiológicos analíticos.

A finalidade deste artigo é caracterizar os diferentes tipos de estudos descritivos existentes, propor uma classificação e contribuir para a avaliação apropriada das suas potencialidades e limitações com relação aos objetivos pretendidos.

Antecedentes da caracterização dos estudos descritivos

Foram revistos livros de texto acadêmicos de epidemiologia da literatura internacional e nacional; o critério principal foi tê-los disponíveis para revisão detalhada dos capítulos de epidemiologia descritiva e tipos de estudo. Ao todo, o material que fundamenta a presente proposta corresponde a 25 livros de texto, sendo 19 estrangeiros e seis brasileiros. Tal material foi produzido por 27 autores ou grupos de autores. Em dois livros de texto, há dois capítulos de autores diferentes que tratam do tema.

A questão da nomenclatura dos estudos epidemiológicos descritivos começa pelo próprio reconhecimento de uma categoria que inclua tais estudos. Muitos autores simplesmente desconsideram ou não mencionam qualquer tipo de estudo epidemiológico que não seja analítico, isto é, que não tenha grupos para comparação e que não teste hipóteses.

Na Figura 1, são mostrados oito livros de texto estrangeiros, um com dois capítulos de autores diferentes, nos quais não há detalhamento dos estudos descritivos, porque se outorga absoluta prioridade aos estudos analíticos. Parte-se de uma das primeiras obras acadêmicas da área, o texto de MacMahon e Plugh (1970),2 indo até uma das mais completas em sua reflexão teórica e aprofundamento metodológico, o texto de Rothman e colaboradores (2008).3 Nos mencionados textos, apenas se apresenta a epidemiologia descritiva e diferenciam-se as medidas de incidência e prevalência.

Figura 1 Livros de texto de epidemiologia produzidos no exterior que priorizam os estudos epidemiológicos analíticos e que não detalham estudos descritivos 

Autores Ano Referência
MacMahon B, Pugh TE. 1970 Epidemiology, principles and methods. 1st ed. Boston: Little, Brown and Company.
Mausner JS, Bahn AK. 1974 Epidemiology. An Introductory text. 1st ed. Philadelphia: W. B. Saunders Company.
Goodman RA, Peavy JV. 1996a Describing epidemiologic data. In: Gregg MB. Field epidemiology. 1st ed. Oxford: Oxford University Press; p. 60-80.
Buehler JW, Dicker RC. 1996a Designing studies in the field. In: Gregg MB. Field epidemiology. 1st ed. Oxford: Oxford University Press; p. 81-91.
Beaglehole R, Bonita R, Kjellström T. 2001 Epidemiologia básica. 2ª ed. São Paulo: Organização Mundial da Saúde e Livraria Santos Editora.
Friis RH, Sellers TA. 2004 Epidemiology for public health practice. 3rd ed. Mississauga, ON: Jones and Bartlett Publishers.
Hulley SB, Cummings SR, Browner WS, Grady D, & Newman TB. 2008 Delineando pesquisas clínicas: uma abordagem epidemiológica. 3ª ed. Porto Alegre: Artmed.
Rothman KJ, Greenland S, Lash TL. 2008 Modern epidemiology. 3rd ed. Baltimore: Wolters Kluwer/Lippincott Williams & Wilkins; Chapter 6, Types of epidemiologic studies; p. 87-99.

a) capítulos do mesmo livro de texto.

Na Figura 2, apresentam-se 12 livros de texto em que há algum detalhamento de determinados estudos epidemiológicos descritivos, apresentados em seções ou capítulos específicos. Muitas vezes, tais capítulos não são intitulados como epidemiologia descritiva nem como tipos de estudos descritivos. Por exemplo, Gordis (2014)4 menciona estudos descritivos nos capítulos “História natural da doença e prognóstico” e “Avaliação de medidas preventivas e terapêuticas”. Em geral, os autores reconhecem a diferença entre estudos descritivos e analíticos, conferindo maior relevância ao segundo tipo. Na pesquisa de campo aplicada, apesar da valorização dada à epidemiologia descritiva, confere-se maior relevância aos estudos analíticos, no sentido do seu potencial para o esclarecimento da etiologia de surtos.5,6 Na maioria dos casos em que se denominam estudos específicos, mencionam-se os estudos de prevalência, sendo denominados surveys ou encuestas em populações ou, então, estudos de relato de caso e séries de casos clínicos. Com frequência, há inconsistência nas denominações.

Figura 2 Livros de texto de epidemiologia produzidos no exterior que incluem estudos epidemiológicos descritivos 

Inclusão de estudos descritivos Autores Anos Referências Estudos citados Notas
Sem capítulo separado de estudos descritivos; citam-se estudos descritivos específicos em determinados capítulos ou citam-se os estudos descritivos com outros nomes. Gordis L. 2014. 2014 Epidemiology. 5th ed. Philadelphia, PA: Elsevier/Saunders. O autor aborda pesquisas em âmbito clínico sem grupo de comparação que envolvem o acompanhamento de pacientes (coorte de pacientes), estudos de caso e “séries de casos”. Dois capítulos, “História natural da doença e prognóstico” e “Avaliação de medidas preventivas e terapêuticas”, abordam em detalhe, respectivamente, os estudos em âmbito clínico e seus desfechos (cura, controle e óbito), o primeiro, e seus métodos de aferição (tábuas de vida e análise de sobrevida), o segundo.
Kleinbaum DG, Kupper LL, Morgenstern H. 1982 Epidemiologic research: Principles and quantitative methods. 1st ed. New York: Van Nostrand Reinhold; Chapter 3, Types of epidemiologic research; p. 40-50. A menção de estudos descritivos encontra-se incluída nos “estudos observacionais”. Nesse contexto, é definido o estudo descritivo como aquele que é realizado “quando pouco se conhece da ocorrência, história natural ou determinantes da doença”. Seus objetivos então seriam determinar a frequência ou tendência temporal da doença em uma população específica e formular hipóteses etiológicas. Na conceitualização dos estudos epidemiológicos, os autores observam que a sua caracterização depende do nível em que se implementariam, sendo que este “nível” estaria relacionado com o período da história natural da doença, adotando-se o modelo de Leavell e Clark de níveis de prevenção. Os autores lembram que os objetivos da pesquisa epidemiológica são os seguintes: descrever, explicar, predizer e controlar.
Abramson JH, Abramson ZH. 2008 Research methods in community medicine. Surveys, Epidemiological research, Programme evaluation, Clinical trials. 6th ed. West Sussex: John Wiley & Sons; Chapter 2, Types of investigation; p. 13-34. Mencionam-se dois tipos de estudo sob o item Descritptive surveys: o longitudinal (no inglês longitudinal), que estuda as mudanças, tais como “crescimento e desenvolvimento de crianças, mudança na taxa de suicídio, história natural da doença ou estudo de ocorrência de novos casos de doença ou óbitos na população”, e de corte seccional (cross-sectional). Os autores incluem uma categoria de “estudos clínicos” para se referir ao estudo de “características ou evolução de uma série de pacientes”. Para os autores, os estudos descritivos descrevem a “situação da doença” na população e sua distribuição com relação a sexo, idade, religião, entre outras variáveis. Menciona-se o termo survey (equivalente provavelmente a inquérito ou a sondagem); entre outras acepções, os autores atribuem o de “estudo descritivo de características populacionais”, “inquérito domiciliar” ou “inquérito de campo”.
Jekel JF, Katz DL, Elmore JG. 2005 Epidemiologia, Bioestatística e medicina Preventiva. 2ª ed. Porto Alegre: Artmed; Chapter 5, Delineamentos comuns de pesquisa usados em epidemiologia; p.88-99. Inquéritos transversais, que coletam dados da frequência de fatores de risco e prevalência de doença; inquérito por entrevista; programas de triagem em massa (rastreamento, screening). Os autores apontam para a existência de “delineamentos observacionais para geração de hipóteses” sem utilizar o termo “descritivo”.
Lilienfeld DE, Stolley PD. 1994 Foundations of epidemiology. 3rd ed. Oxford: Oxford University Press. Os autores diferenciam os estudos “demográficos” (de mortalidade ou morbidade) dos estudos “epidemiológicos”. Os primeiros detectariam tendências no tempo e padrões diferentes de distribuição, de acordo com a pessoa e lugar da ocorrência de óbitos ou casos de doença. Os estudos denominados “epidemiológicos” pelos autores correspondem, grosso modo, aos analíticos (sejam observacionais ou experimentais).
Sem capítulo separado de estudos descritivos; citam-se estudos descritivos específicos em determinados capítulos ou citam-se os estudos descritivos com outros nomes. Szklo M, Nieto FJ. 2007 Epidemiology. Beyond the basics. 2nd ed. Boston: Jones and Bartlett Publishers; Chapter 1, Basic study designs in analytical epidemiology; p. 3-43. Os autores concebem a epidemiologia descritiva e analítica. A epidemiologia descritiva faz uso de dados disponíveis para examinar de que modo as taxas (por exemplo, de mortalidade) se comportam segundo variáveis demográficas (aquelas obtidas no censo). Com base na detecção de distribuições não uniformes, segundo os autores, os epidemiologistas definem “grupos de alto risco” para propósitos de prevenção e também para gerar hipóteses causais.
Fletcher RH, Fletcher SW, Wagner EH. 1996 Epidemiologia clínica: elementos essenciais. 3ª ed. Porto Alegre: Artes Médicas. Não há seção de estudos descritivos. Porém, no seu capítulo “Estudando casos”, os autores mencionam o relato de casos, a série de casos e os estudos de caso-controle. Estes autores sugeriram o número de 10 pacientes como o critério que separa o relato de casos da série de casos. Ao descrever a série de casos, eles dizem: “é um estudo de um grupo maior de pacientes (por exemplo 10 ou mais) com uma doença particular”.
Olsen J, Basso O. 2015 Study Design. In: Olsen J, Greene N, Saracci R, Trichopoulos D. Teaching epidemiology. A guide for teachers in epidemiology, public health and clinical medicine. 4th ed. Oxford: Oxford University Press; 37-55. Não há seção de estudos descritivos. Porém, no seu capítulo “Study design”, os autores mencionam o survey, definindo-o como estudo de prevalência em população definida. Mencionam-se também os estudos de tipo case-only studies e case-cross over studies sem aprofundar na sua caracterização como descritivos.
Há seção de estudos descritivos. Hennekens CH, Buring JE. 1987 Descriptive studies. In: Hennekens CH, Buring JE, Mayrent SL. Epidemiology in medicine. 1st ed. Boston: Little, Brown and Company; p. 101-131. Estudos de correlação (equivalentes aos ecológicos analíticos); relatos de caso; série de casos; e os cross-sectional surveys, que podem apenas descrever exposições e/ou desfechos, ou avançar à categoria de estudos analíticos para testar, mesmo com limitações, hipóteses de associação. Há um capítulo dedicado aos estudos descritivos definido como os que descrevem padrões da ocorrência da doença com relação a variáveis de pessoa, lugar e tempo.
Williams CFM, Nelson KE. 2007 Chapter 3. Study designs. In: Nelson KE, Williams CFM. Infectious epidemiology: Theory and practice. 2nd ed. Toronto: Jones and Barlett Publishers; p. 63-117. Relatos de caso; série de casos; e estudos ecológicos (analíticos). Os autores diferenciam duas dimensões, uma clínica e uma populacional.
Koepsell TD, Weiss NS. 2003 Epidemiologic methods. Studying the occurrence of illness. 1st ed. New York: Oxford University Press; Chapter 5, Overview of study designs; p. 93-115. Relatos de caso; série de casos; “estudos descritivos com base em taxas” (estudos em que se combinam os casos de uma população com denominadores dessa própria população), mediante dados coletados a partir de registros contínuos, da vigilância e seus sistemas, ou de inquéritos periódicos de saúde. Os autores admitem a existência de estudos descritivos, cuja característica principal, segundo eles, é o fato de serem conduzidos sem uma hipótese específica. Os autores diferenciam duas dimensões, uma clínica e uma populacional.
Colimon K-M. 1990 Fundamentos de epidemiología. 1ª ed. Madrid: Ediciones Díaz de Santos; Capítulo 6, Estudios descriptivos; p. 87-112. Inquéritos de morbidade (encuestas de morbilidad); inquéritos de prevalência (encuestas de prevalencia); estudo de população por amostragem; estudo de um segmento ou categoria não representativa de uma população; e estudos de instituição. Não são mencionados estudos em âmbito clínico.

Na maioria dos livros de texto brasileiros de epidemiologia, mostrados na Figura 3, incluem-se capítulos de análise descritiva, sempre se dando ênfase às medidas de incidência e prevalência de agravos em uma população, de acordo com as variações segundo pessoa, lugar e tempo. Enfatiza-se também a forma de análise e apresentação de dados. Entretanto, sua nomenclatura, à semelhança dos livros publicados no exterior, não inclui especificamente os estudos descritivos. Os seis autores mostrados na Figura 3 dão ênfase aos estudos analíticos. Por exemplo, em um mesmo livro de texto, o capítulo que aborda os tipos de estudo não menciona os descritivos,7 enquanto um capítulo específico de estudos ecológicos separa as estratégias “exploratórias” das “analíticas”. Tais estratégias exploratórias poderiam ser denominadas descritivas.8

Figura 3 Livros de texto de epidemiologia produzidos no Brasil que priorizam os estudos epidemiológicos analíticos e que não detalham estudos descritivos 

Autores Ano Referência
Forattini O. 1970 Epidemiologia geral. São Paulo: Edgard Blucher, Editora da Universidade de São Paulo.
Benseñor IM, Lotufo PA. 2005 Epidemiologia. Abordagem prática. 1ª ed. São Paulo: Sarvier Editora de Livros Médicos. Capítulo 5, Principais desenhos de estudo - conceitos gerais; p. 63-89.
Bloch KV, Coutinho ESF. 2009a Fundamentos da pesquisa epidemiológica. In: Medronho RA, Bloch KV, Luiz RR, Werneck GL. Epidemiologia. 2ª ed. São Paulo: Atheneu. p.173-179.
Medronho RA. 2009a Estudos ecológicos. In: Medronho RA, Bloch KV, Luiz RR, Werneck GL. Epidemiologia. 2ª ed. São Paulo: Atheneu. p.265-274.
Almeida-Filho N, Barreto ML. 2011a Desenhos de pesquisa em epidemiologia. In: Almeida-Filho N, Barreto ML. Epidemiologia & Saúde. Fundamentos, métodos, aplicações. 1ª ed. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan. Capítulo 14, Desenhos de pesquisa em epidemiologia; p. 165-174.
Santana VS, Dourado I, Ximenes R, Barreto S. 2011a Modelos básicos de análise epidemiológica. In: Almeida-Filho N, Barreto ML. Epidemiologia & Saúde. Fundamentos, Métodos, Aplicações. 1ª ed. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan. Capítulo 21, Modelos básicos de análise epidemiológica: p. 232-251.

a) capítulos do mesmo livro de texto.

Na Figura 4, mostram-se dois livros de texto brasileiros em que há menção mais detalhada de alguns estudos descritivos. Pereira (1995, p. 278)9 caracteriza os estudos descritivos como aqueles que não apresentam grupo controle, diferenciando-os dos estudos analíticos. O autor lista nove tipos de estudo epidemiológico, sendo os quatro primeiros descritivos: estudo de caso, série de casos, estudo de incidência e estudo de prevalência (transversal ou seccional descritivo).

Figura 4 Citação de estudos epidemiológicos descritivos em livros de texto de epidemiologia produzidos no Brasil em que há algum detalhamento ou caracterização de estudos epidemiológicos descritivos 

Autores Anos Referências Estudos mencionados Notas
Pereira MG. 1995 Epidemiologia: Teoria e Prática. 1ª ed. Rio de Janeiro: Guanabara-Koogan. Capítulo 12, p. 269-288. O autor lista nove tipos de estudo epidemiológico, sendo os quatro primeiros descritivos: estudo de caso, série de casos, estudo de incidência e estudo de prevalência (transversal ou seccional descritivo). Para o autor, os dois primeiros tipos não são, propriamente, estudos epidemiológicos, porque só haveria “casos” na população de estudo. Por seu turno, os dois seguintes relacionariam “casos” à respectiva população.
Zanetta DMT. 2004 Delineamento de estudos em medicina. In: Massad E, Menezes RX, Silveira PSP, Ortega NRS. Métodos Quantitativos em Medicina. 1ª ed. Barueri, SP: Editora Manole. p. 389-421. Ao listar os “delineamentos de estudos em medicina”, a autora inclui relato de caso, série de casos e estudo transversal ou de prevalência, citados como estudos descritivos. Os restantes são estudos analíticos. Zanetta reconhece a existência de estudos descritivos. Para a autora, os estudos descritivos “relatam prevalências ou descrevem uma situação que parece anormal”. Eles são úteis para o planejamento nos serviços de saúde e para a geração de hipóteses “no campo experimental”.

Ainda no âmbito nacional, Zanetta (2004)10 reconhece a existência de estudos descritivos em contraste com os analíticos. Para a autora, os estudos descritivos “relatam prevalências ou descrevem uma situação que parece anormal”, e eles são úteis para planejamento nos serviços de saúde e para geração de hipóteses “no campo experimental”. Ao listar os “delineamentos de estudos em medicina”, ela inclui relato de caso, série de casos e estudo transversal ou de prevalência, citados como estudos descritivos. Os restantes são estudos analíticos.

Classificar estudos descritivos: faz sentido?

Percebe-se, pela leitura de capítulos de livros de texto, que há uma diferença na abordagem, que varia da completa omissão dos estudos descritivos à sua inclusão. Quando os estudos descritivos são explicitados, há modos diferentes de conceituá-los e de classificá-los. Uma primeira dificuldade é a tendência a nomear como descritivos apenas aquelas pesquisas que são realizadas com base em dados secundários macrodemográficos ou de populações abertas não clínicas.

Também se torna relevante diferenciar entre a técnica de coleta de dados e o tipo de estudo. Nesse sentido, é importante, neste momento, lembrar a proposta de Laurenti e colaboradores,11 que consideram que “levantamento de dados estatísticos” é o conjunto de operações que permitem a coleta de dados que possibilitam a caracterização de um evento. Essa coleta pode ser realizada com aproveitamento de dados existentes e registrados (que o autor denomina levantamento propriamente dito); ou com dados existentes, porém não registrados, coletados por meio de entrevistas ou exames laboratoriais (que o autor denomina inquérito); ou com dados não existentes e gerados por uma intervenção, como os eventos adversos de uma vacina (que o autor denomina dado experimental). Ressalvamos que tipos de levantamento ou de coleta de dados não determinam o tipo de estudo epidemiológico.

Diante dessa multiplicidade de pontos de vista, é relevante o âmbito em que se realiza a pesquisa para a classificação dos estudos. Inicialmente, há um âmbito populacional ou comunitário, e surge a necessidade de compreender que qualquer classificação deve contemplar duas situações nesse domínio: (i) há estudos realizados com base em dados macroestatísticos referentes a grandes conglomerados de população, comumente secundários, elaborados com numeradores individualizados mediante a notificação do caso ou óbito e denominadores baseados em estimativas de população; e (ii) estudos realizados com dados primários em vários âmbitos comunitários (locais de trabalho, de estudo, de lazer, domicílios, creches, bibliotecas públicas, sindicatos e organizações civis da comunidade, instituições religiosas, clubes, entre outros), em que tanto numeradores como denominadores foram abordados ou reconhecidos, e computados como indivíduos.

Independentemente desse espaço populacional ou comunitário, as instituições de atenção à saúde devem ser incluídas como um âmbito específico. A princípio, é nesse âmbito que se concentram os “casos” e se registram atendimentos, intervenções, procedimentos e desfechos. Leva-se em conta que muitas dessas instituições não fazem atividades apenas com pacientes ou pessoas que já têm uma doença ou agravo. Por exemplo, vários tipos de consulta (pré-natal, controle de crescimento e desenvolvimento, puericultura, alimentação e nutrição, fluoretação tópica dental, check-ups de adultos), a princípio, trabalham com pessoas “da comunidade”, canalizadas ou levadas a comparecer a um lócus assistencial, sem, no entanto, serem classificadas a priori como “casos clínicos”. Outros ambientes semelhantes podem ser constituídos por bancos de sangue ou de doação de outros fluidos, hemoderivados e órgãos. Também é relevante salientar que pesquisas em que a população de estudo é constituída por pessoas avaliadas na atenção primária se encontram muito próximas do ambiente domiciliar. Assim, um caso específico pode ser o de estudos realizados nos Serviços de Internação Domiciliar que, nesse sentido, têm características clínicas, análogas à internação hospitalar. É necessário apontar que esses estudos de âmbito clínico são realizados com dados primários finitos individualizados, operacionalizados como numeradores e denominadores claramente definidos.

Atentamos para o fato de que, tanto nos estudos de âmbito clínico como nos de âmbito populacional/comunitário, a validade externa, entendida como a capacidade de generalizar os dados a partir do conjunto de sujeitos que efetivamente compõe um determinado estudo, não constitui um determinante da classificação.

Proposta de classificação de estudos descritivos

Considerando-se a necessidade de uma classificação satisfatória, resolveu-se propor uma taxonomia que esclareça potencialidades, limitações e a consistência entre os objetivos propostos e os tipos de estudos realizados.

Figura 5 Proposta de classificação dos estudos epidemiológicos descritivos 

Âmbito do estudo Tipo de estudo Medidas epidemiológicas
1 Clínico
1.1 Relato de caso -
1.2 Série de casos Proporção de casos
1.3 Coorte descritiva clínica Incidência de eventos, letalidade
2 Populacional/comunitário
2.1 Estudos descritivos observacionais de prevalência Prevalência
2.2 Estudos descritivos observacionais de incidência ou coorte descritiva Incidência, mortalidade
2.3 Estudos ecológicos descritivos Coeficientes de incidência ou de mortalidade na população

Existem várias possibilidades de classificação. Se o critério for a observação de uma realidade ou a aferição dos efeitos de uma intervenção conduzida pelas pessoas encarregadas da pesquisa, os estudos podem ser observacionais ou de intervenção. Se o critério for a presença ou ausência de acompanhamento de pessoas ou coletivos, os estudos seriam longitudinais (chamados também de follow-up) ou seccionais (em um momento no tempo). Com relação à unidade de análise corresponder a pessoas ou conglomerados, os estudos poderiam ser de base individual ou ecológicos. De acordo com o âmbito em que se estabelece a pesquisa, os estudos podem ser populacionais/comunitários ou clínicos. Esta classificação não é mutuamente excludente, isto é, um estudo pode ser de unidade de observação individual e observacional, ou individual e de intervenção, ou longitudinal e observacional, por exemplo. A proposta de classificação é mostrada na Figura 5.

1. Estudos de âmbito clínico

Os estudos de âmbito clínico proporcionam dados para se entenderem as características da história natural da doença, seu diagnóstico e desfechos após o tratamento. O âmbito clínico pode ser caracterizado como as instituições de atenção primária, secundária e terciária. Contudo, ocasionalmente, a atenção primária inclui pessoas não necessariamente com doença: gestantes em consultas pré-natais, crianças sob controle de crescimento e desenvolvimento, pessoas com problemas posturais e ortopédicos, além de usuários realizando consultas de check-up. Em geral, correspondem à chamada epidemiologia ao pé do leito (bedside epidemiology).

1.1 Relato de caso

No âmbito clínico, um primeiro propósito dos pesquisadores pode ser relatar a existência de um caso ou de um número pequeno deles. A pergunta de pesquisa poderia ser a existência ou não de um determinado agravo ou doença em um país ou comunidade, as características de um número limitado de casos clínicos, ou a maneira como transcorreu a história clínica do caso, a suspeição, impressão diagnóstica e confirmação. É de fato assim que se constituiu, durante séculos, o conhecimento acumulado de entidades nosológicas, suas características e suas respostas a tratamentos. Nesse caso, a pesquisa pode se limitar a descrever em detalhe as manifestações da doença, dados da queixa principal e da anamnese, sintomas referidos, sinais clínicos detectados, resultados de exames de laboratório e imagem e a conclusão diagnóstica.

Do ponto de vista epidemiológico, o uso pode ser muito restrito para aferição de frequência na população ou mesmo da caracterização de frequência de manifestações ou achados. No entanto, a utilidade deste tipo de estudo no âmbito clínico é alertar aos profissionais de saúde sobre a existência do evento em seu meio, para efeitos de diagnóstico e diferenciação. Tais relatos servem depois para documentar a distribuição relativa dos eventos que poderiam ser cosmopolitas ou existirem, mesmo que, em algumas regiões, sejam de rara ocorrência. Um evento raro, no entanto, pode ser o primeiro sinal de uma epidemia ou de doença emergente. Há precedentes de descrições de padrões de evolução ou distribuição divergentes que levaram à conclusão da existência de eventos novos ou comportamentos inéditos de doenças existentes. Nesse sentido, estes estudos têm relevância para a vigilância epidemiológica, porque podem revelar achados preliminares de doenças emergentes ou reemergentes que se estão espalhando em novos cenários epidemiológicos.

Exemplos desse tipo de estudo epidemiológico são os relatos de casos de sarcoma de Kaposi e Pneumocystis jirovecii (previamente conhecido como P. Carinii), que serviram como evento sentinela para a existência de imunossupressão associada à aids.14 Outro exemplo pode ser a maneira como se comportam clinicamente novos eventos até a presente década desconhecidos, tais como Chikungunyia e Zika nos países da América Latina.15,16 É importante assinalar que é mais indicado o termo “relato de caso” que “estudo de caso”, porque essa denominação pode corresponder a outras situações de pesquisa (tanto em indivíduos como em coletivos de diversos tamanhos), no âmbito da enfermagem, psicologia, serviço social ou sociologia.

Quantos indivíduos podem ser incluídos em um relato de caso? A resposta não pode ser precisa. Fletcher et al.17 consideravam que seria de, no máximo, 10 casos. A partir desse número, seria considerado uma série de casos ou uma coorte clínica. Realmente não haveria base estatística para dizer que, a partir de 10 casos (por exemplo, um relato de casos que inclui 11 indivíduos), a aleatoriedade diminui o suficiente para se fazer uma ideia da verdadeira frequência de um dado sintoma, sinal clínico, achado laboratorial ou de imagem.

1.2 Série de casos

Ainda no âmbito clínico, a pergunta norteadora (research question) pode ser conhecer o comportamento de uma entidade nosológica ou doença, sua história natural e manifestações, a distribuição dos pacientes segundo sexo, idade, raça/cor da pele, segundo o subtipo de agente etiológico, épocas e locais de maior frequência, entre outras possibilidades. Esse estudo descreve o “perfil” dos casos e pode ser chamado de “série de casos”. Ele avança em relação ao simples “relato de casos”, cuja importância já foi destacada. Nesta situação, porém, uma quantidade maior de observações é necessária, podendo informar qual é a proporção de indivíduos que apresentam um determinado sintoma, sinal, ou característica de laboratório ou imagem. Este tipo de estudo não tem referência populacional e habitualmente é realizado em um serviço de atenção à saúde, frequentemente hospitalar.

Contudo, uma dimensão macro do estudo de série de casos é representada pelo conjunto de notificações de “casos” constantes dos sistemas de informação para doenças ou eventos de notificação compulsória (por exemplo, o Sistema de Informação de Agravos de Notificação - Sinan). Neste caso, fazendo as devidas considerações de sensibilidade e subnotificação, estar-se-ia utilizando o “censo” dos casos detectados, o qual aumentaria a validade externa. No entanto, estaria sujeito a limitações decorrentes dos vieses assistenciais, normalmente presentes em entidades de atenção à saúde, tais como problemas de acesso e de referência entre níveis de complexidade na atenção.

Do ponto de vista da análise epidemiológica, os dados obtidos de frequência da distribuição das características entre os doentes (casos) são pontuais e específicos para essa população de “casos”. A medida utilizada é a proporção de casos, porque não se trata de uma prevalência em uma comunidade ou população aberta, e sim em uma situação muito específica na qual o numerador corresponde aos casos que têm determinada característica (por exemplo, os que referiram febre, os que são do sexo masculino, ou os que tinham determinado achado de laboratório) e o denominador corresponde ao total de pacientes. Isto, assumindo-se que não se estão incluindo dados da evolução clínica dos doentes ou casos. Um exemplo é a caracterização de 87 casos de doença pelo vírus Zika em Pernambuco, destacando as características clínicas e de imagem do acometimento neurológico.18

1.3 Coorte descritiva clínica

Uma outra situação de pergunta norteadora de pesquisa diz respeito à evolução clínica dos casos.

Nesta situação, documenta-se a presença de “eventos novos” como metafenômenos que vão além da própria doença, tais como complicações, aparecimento de efeitos colaterais da intervenção terapêutica, cura, sequelas ou óbitos. Podemos chamar estes estudos de coortes descritivas clínicas ou estudos descritivos de prognóstico. Percebe-se que podemos estar documentando, nestes estudos, tanto a evolução da “história natural” de uma doença, como também os efeitos de uma intervenção, isto é, em determinados estudos clínicos realizados em um grupo de indivíduos, estes podem estar sob uma terapia padronizada e o acompanhamento verifica desfechos clínicos, tais como a cura ou eventos adversos. Isto não significa que, com este estudo, se possa aferir a eficácia da intervenção, porque para isso seriam necessários grupos de comparação, configurando-se o ensaio clínico, um tipo de estudo analítico.

Do ponto de vista da análise epidemiológica, calcula-se a frequência de aparecimento desses eventos novos, comportando-se como incidência em relação ao total de pessoas. Tais eventos incidentes podem ser positivos, como a cura ou remissão. Nos casos de óbito como evento incidente, pode ser calculada a letalidade.

Nesses estudos, como em outras estratégias de acompanhamento de pessoas, os cálculos descritos no parágrafo anterior correspondem à estratégia de coorte fechada ou fixa. Uma estratégia de análise alternativa constitui a de coorte dinâmica ou aberta, em que é possível o cálculo da densidade de incidência. Neste caso computa-se, no denominador, a soma de pessoas-tempo (por exemplo, pessoas-ano), conforme a contribuição individual ao acompanhamento na coorte. O numerador continua sendo o número de casos ou de óbitos.

É importante lembrar que os eventos “novos” documentados nesse tipo de estudo fazem parte da evolução do quadro clínico, mesmo sob intervenção terapêutica. A pergunta norteadora se refere à evolução dos casos. Dados de incidência de efeitos adversos sistematizados por pesquisadores clínicos têm sido fundamentais para estabelecer a frequência esperada de tais eventos. Um exemplo é a frequência de eventos (desfechos clínicos) da COVID-19, em que os autores documentaram, além de sintomas e sinais, a incidência de complicações que levaram à internação em unidades de terapia intensiva (UTIs), ao uso de respiradores ou ao óbito, isto é, letalidade, em 1.099 pacientes na China.19

2. Estudos descritivos de âmbito populacional/comunitário

Este grupo de estudos corresponde a pesquisas levadas a cabo em domicílios pertencentes a bairros, municípios, regiões ou em agregados comunitários tais como escolas, igrejas, fábricas, entre outros, onde acontece parte da atividade cotidiana da população. Todas essas entidades podem ser vistas como coletivos mais ou menos restritos. Por exemplo, uma pesquisa pode ser realizada com um número importante de indivíduos, 2 mil estudantes de um só colégio ou operários de uma fábrica. A alternativa seria ter à disposição várias unidades de conglomerados de pessoas ou mesmo sistemas inteiros, o que tornaria necessário algum tipo de procedimento de amostragem, sendo a população-fonte (ou marco amostral) todas as unidades ou conglomerados listados: escolas ou colégios de um sistema, setores censitários, templos referentes a uma única comunidade de fé, fábricas de um ramo de atividade produtiva, um setor de atividade econômica (os transportes, por exemplo). Pressupõe-se a existência de uma lista ou cadastro a partir do qual poderia ser retirada uma amostra, mediante diversas técnicas. Em suma, há uma abordagem de pessoas “sadias” (poderiam ser portadoras de uma condição não detectada ou registrada), o que os diferencia dos estudos de âmbito clínico.

2.1 Estudos descritivos observacionais de prevalência

São estudos observacionais cujo delineamento responde à pergunta de pesquisa a respeito da existência de uma dada característica no momento em que é feita a pesquisa ou a abordagem pontual dos participantes. Corresponde a estudos seccionais ou de corte seccional, também conhecidos na literatura como inquéritos ou surveys, que documentam eventos existentes em um determinado momento, como casos de uma doença e fatores de risco ou proteção. Estes estudos incluem os que determinam, na população, as frequências de casos, tanto os já existentes como os novos, segundo características das pessoas ou variáveis contextuais tradicionalmente atribuídas aos indivíduos (idade, sexo, etnia, status socioeconômico, ocupação, situação conjugal, orientação sexual, hábitos); dos locais de ocorrência (ruas, bairros, regiões administrativas, setores censitários, áreas urbanas ou rurais, municípios, estados, países); e das épocas de ocorrência (hora, dia, mês, ano).

A pergunta de pesquisa refere-se à frequência pontual de uma doença, de um fator de risco ou de uma característica específica dessa população ou segmento comunitário. Assume-se que há um recorte momentâneo no tempo (a chamada sincronia nas ciências sociais). O nome que estamos sugerindo, estudo descritivo de prevalência, descreve o que foi feito sem necessidade de outras explicações. Outra possível denominação tem sido a de inquérito, apesar da possibilidade de se confundir o tipo de estudo com uma técnica de obtenção de dados mediante a formulação de perguntas (ato de inquirir). O termo inquérito é semelhante à denominação encuesta, utilizada em espanhol (encuesta epidemiológica), ou a enquête, do francês. Tais termos são usados no mesmo sentido e com a mesma possibilidade de confusão, apesar de serem utilizados amplamente para propósitos específicos (inquérito epidemiológico, inquérito nutricional, inquérito alimentar, inquérito sorológico). De fato, em alguns âmbitos acadêmicos, o termo francês tem sido traduzido como enquete. No entanto, na literatura epidemiológica francesa e franco-canadense, esse termo pode ser usado também como sinônimo de “estudo”, por exemplo, em enquête analytique e enquête descriptive.20

Em inglês, como foi mencionado acima, utiliza-se o termo survey, tendo originalmente a conotação de sondagem ou prospecção, e foi muito utilizado por Paul Lazarsfeld o termo opinion survey, para estudos que se tornaram muito populares nos Estados Unidos após a Segunda Guerra Mundial. Outras expressões como “estudo transversal descritivo” e “estudo de corte seccional descritivo” podem ser sinônimas. Caso não especifiquem sua natureza descritiva, podem causar confusão, porque na literatura são muito utilizados para designar os correspondentes estudos analíticos de prevalência.

Do ponto de vista da análise, os estudos descritivos de prevalência utilizam como medida de frequência o cálculo da prevalência. Sua validade externa depende da estratégia de amostragem.

Para propósitos de vigilância epidemiológica, alimentar e nutricional, o Estado brasileiro tem promovido, nas últimas décadas, a realização de grandes estudos de prevalência que devem ser repetidos periodicamente, tais como a Vigilância de Fatores de Risco e Prevenção para Doenças Crônicas por Inquérito Telefônico (Vigitel), a Pesquisa Nacional de Saúde do Escolar (PeNSE), a Pesquisa Nacional sobre Acesso, Utilização e Promoção do Uso Racional de Medicamentos no Brasil (PNAUM), a Pesquisa Nacional de Saúde (PNS), entre outros. Tais estudos são realizados com base em amostras complexas e abordagem dos participantes mediante comunicação telefônica, entrevistas no domicílio ou no âmbito escolar. A princípio, nos relatórios publicados, tais investigações fornecem a possibilidade de estimar prevalências gerais e sua distribuição e, nesse sentido, são descritivas, tal como mostra a publicação periódica que relata achados do Vigitel.21 A partir deles, podem ser realizados trabalhos analíticos para responder a outro tipo de pergunta de pesquisa que seria resolvida mediante testes de hipóteses.

2.2 Estudos descritivos observacionais de incidência ou coorte descritiva

Trata-se de pesquisas que envolvem o seguimento ou acompanhamento de um grupo populacional para investigar o aparecimento de novos desfechos (casos, recidivas, óbitos ou outros eventos), estabelecendo uma dimensão diacrônica análoga ao estudo de coorte clínica.

Quando a pergunta norteadora se refere à frequência de novos eventos na população “sadia”, uma vez acompanhada, utiliza-se a denominação de estudo descritivo de coorte. Neste caso, o seguimento determinará a frequência de casos de doença, de óbitos ou outros eventos incidentes, tais como iniciação sexual, soroconversão, recidivas, entre outros. Acompanha-se uma população com características definidas.

Do ponto de vista da análise epidemiológica, na coorte descritiva, calcula-se a frequência de aparecimento desses eventos novos, como incidência em relação ao total de pessoas da comunidade efetivamente acompanhadas (incidência acumulada). Nos casos de óbito como evento incidente, calcula-se a taxa de mortalidade. Nos dois casos, os denominadores expressam a população “em risco” de acontecer o evento do numerador. Tanto na mortalidade como na morbidade, é possível aferir a densidade de incidência, com a criação do artifício pessoa-tempo no denominador.

Apresenta-se, como exemplo, uma coorte de estudantes de escolas de ensino fundamental na Tailândia, cuja experiência é acompanhada para aferir a incidência de dengue.22

2.3. Estudos ecológicos descritivos

Finalmente, é necessário considerar os estudos com base em dados agregados, taxas ou proporções calculadas para um grupo populacional, em que os numeradores correspondem ao número de eventos notificados ou registrados (óbitos, casos de doença de notificação, outros eventos, acidentes, violência), e os denominadores são estimativas de população intercensitária. Neste caso, os numeradores são finitos, mas os denominadores correspondem a estimativas, e qualquer comparação torna-se difícil, tanto pelas diferenças existentes na base populacional - o que faz necessário padronizar as taxas, recorrendo a outros dados (distribuição etária, por exempo) - quanto pela dificuldade de estabelecer o status de exposição de indivíduos, porque se avaliam agregados. A pergunta de pesquisa seria: qual é a frequência (incidência, mortalidade) do evento em determinada população? Como evoluiu ao longo dos anos? Assim, a agregação nos leva a uma abordagem ecológica, frequentemente com base em dados secundários. Também poderiam ser utilizados para examinar, de modo ecológico, os efeitos de uma vacinação no nível da população, comparando-se a taxa de incidência antes e depois de uma intervenção.23

Conclusão

Os estudos descritivos têm sido relegados ao ostracismo na literatura científica geral e na epidemiológica em particular. Foi demonstrado anteriormente que eles respondem a perguntas científicas válidas e relevantes. A sobrevalorização de métodos de inferência para responder a questões de pesquisas pertinentes aos métodos da epidemiologia analítica levou a uma rejeição sistemática da epidemiologia descritiva, cujo resgate foi reivindicado no passado.2 Ao descrever os estudos, há o cuidado de colocar as perguntas científicas às quais cada tipo responderia. Tais descrições levam à formulação de hipóteses que seriam ulteriormente testadas mediante estudos analíticos, com apoio da estatística inferencial.

Ao se mostrar que vale a pena refletir sobre o papel dos estudos descritivos e sua classificação, podem-se enxergar outras potencialidades destes estudos. Algumas técnicas que apoiam a análise descritiva podem ter sido subutilizadas, em virtude da hegemonia dos estudos analíticos inferenciais. Por exemplo, a utilização de análise fatorial de correspondência e de análise de componentes principais para descrever a agregação de indivíduos conforme variáveis, as análises geográficas com base em dados georreferenciados, apoiadas pela estatística espacial, as séries temporais e análises de sobrevida. Um maior emprego de técnicas e de métodos quantitativos enriqueceria os estudos acima classificados e contribuiria para os objetivos e a melhor utilização da epidemiologia descritiva.

Para propósitos de vigilância epidemiológica, a repetição de estudos de prevalência, em amostras obtidas a partir da mesma população-fonte ou marco amostral, pode indicar tendências na existência de desfechos em saúde-doença. Pode se tratar de hábitos ou práticas relevantes à saúde, infecção (marcadores de sorologia), ou doença. Tais estudos seriados de prevalência ou estudos de painel (pannel studies) utilizam a mesma população-fonte - a exemplo de detentores de linhas telefônicas, moradores cadastrados em setores censitários, estudantes matriculados em um sistema escolar, entre outros. Obviamente, com o transcorrer dos anos, a população real pode mudar (os adolescentes de um sistema escolar já não estarão na escola cinco anos depois), mas a população-alvo a ser monitorada (adolescentes) continua a ser a mesma. Por exemplo, a repetição do Vigitel, da PeNSE, da PNS, ou de outras pesquisas de base populacional, produz dados relevantes, indicando tendências ou novas hipóteses a serem testadas.

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Endereço para correspondência: Edgar Merchán-Hamann - Universidade de Brasília, Departamento de Saúde Coletiva, Campus Universitário Darcy Ribeiro, Brasília, DF, Brasil. CEP: 70910-900. E-mail: hamann@unb.br

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