Introdução
A busca pela redução das desigualdades em saúde tem sido uma diretriz da Organização Mundial da Saúde (OMS),1 incorporada por diversos países, ainda que de forma insuficiente.2-4 Embora suas principais causas sejam sociais, a oferta acessível de serviços de saúde de qualidade continua a ser destacada como importante ação para a redução dessas desigualdades.4
Algumas iniciativas relacionadas à expansão da cobertura assistencial e melhoria da acessibilidade aos serviços de saúde vêm sendo implementadas, em diferentes contextos nacionais, apresentando resultados diferenciados. Conclui-se, desses resultados, não ser o bastante ampliar a oferta para facilitar o acesso. Na Suécia, por exemplo, mostrou-se um efeito paradoxal: uma reforma pela livre escolha na Atenção Primária à Saúde, ao ampliar a oferta, veio a beneficiar grupos de maior renda, aumentando as desigualdades sociais no país.3,5 No Brasil, a expansão da cobertura da Estratégia Saúde da Família (ESF) tem sido relacionada à redução da mortalidade infantil em regiões com os piores indicadores sociais.6 Progressos na utilização dos serviços e melhoria da acessibilidade, a partir da adoção de práticas de acolhimento e reorganização do processo de trabalho, também são relatados em algumas cidades brasileiras.7-10
Embora existam vários estudos avaliativos dessas intervenções, e outros, sobre barreiras à utilização dos serviços de saúde pelos usuários,10-13 poucos analisaram a influência de desigualdades sociais sob situações concretas, em unidades de saúde alvo de intervenções para a melhoria de sua acessibilidade. Em outras palavras, pergunta-se: programas universais, voltados para melhoria do acesso à saúde, são utilizados igualmente por pessoas de diferentes grupos sociais?
A resposta a essa indagação requer investigação nos diversos níveis do sistema de saúde, diante da complexidade das intervenções sanitárias. Se as análises de âmbito nacional são necessárias para uma visão de larga escala, avaliações locais permitem uma compreensão em maior profundidade, a partir da observação de intervenções especificas, particularmente sobre o componente sócio-organizacional da acessibilidade.14
Em Salvador, estado da Bahia, a Secretaria Municipal de Saúde elaborou, em junho de 2005, um projeto visando melhorar a acessibilidade e aperfeiçoar o acolhimento ao usuário da Atenção Básica na principal cidade baiana. Entre outros objetivos, o projeto em questão visava extinguir filas evitáveis, implantar o agendamento de consultas e reorientar o fluxo de pacientes.15 No ano seguinte, uma avaliação da implantação do mesmo projeto revelou melhoria no acesso às unidades da rede básica de saúde, especialmente na redução de filas evitáveis e do tempo de espera para marcação de consultas. Contudo, naquelas mesmas unidades, alguns usuários não se beneficiavam das medidas adotadas e continuavam a ter dificuldades de acesso aos serviços.16 Decorridos 13 anos desde a intervenção citada, o problema da desigualdade social no acesso permanece.
Muito embora iniciativas voltadas à superação dessas barreiras tenham-se implementado, raros estudos avaliaram a persistência das desigualdades após a consecução de programas especialmente desenhados para a extinção das filas e a redução dos tempos de espera por atendimento, com a abrangência territorial da referida experiência. As evidências aqui produzidas sobre as possibilidades e limites desse tipo de intervenção sanitária poderão contribuir para o aperfeiçoamento das políticas e ações de saúde voltadas para a melhoria do acesso.
O presente artigo teve o objetivo de suprir, ainda que parcialmente, as lacunas assinaladas, e analisar a associação entre a posição no espaço social e o acesso aos serviços entre usuários de unidades da rede básica de saúde onde foi implementado um plano para melhoria da acessibilidade e humanização do acolhimento ao usuário do Sistema Único de Saúde (SUS).
Métodos
Trata-se de um estudo transversal, abrangendo usuários de unidades da rede básica de saúde de Salvador, Bahia, onde foi implantado um amplo projeto de intervenção intitulado ‘Acolhimento na atenção básica em Salvador, BA: plano para melhoria da acessibilidade e humanização do acolhimento’.15
Em 2007, Salvador contava com 419 estabelecimentos de saúde (unidades básicas, especializadas e serviços de emergência), sendo 38% públicos, 6% filantrópicos e 56% privados/lucrativos.17 A cobertura da Atenção Básica em dezembro de 2007 era de 34%, segundo o Departamento de Atenção Básica do Ministério da Saúde (DAB/MS).18
A intervenção para melhorar a acessibilidade e humanizar o acolhimento ocorreu em 2005, em todas as 103 unidades da Atenção Básica do município, e consistiu na implantação de sistema de marcação permanente de consultas, presencial ou por telefone, e na implantação de lista de espera, visando extinguir as filas e viabilizar atendimentos no mesmo dia da procura. Posteriormente, foram incluídas outras ações para qualificar o atendimento ao usuário.19
O impacto dessas ações foi avaliado em junho de 2006, mediante um inquérito entre usuários de unidades da rede básica de saúde.16 Estimou-se em 600 o número total de usuários a serem incluído no inquérito, considerando-se uma proporção máxima de 0,50, precisão de 0,02 e poder de 0,80; e definindo-se um intervalo de confiança de 95% (IC95%). Ao valor encontrado, foram acrescidos 20% para compensar perdas, totalizando 720 usuários. Logo, foram entrevistados 740 usuários, porém 30 entrevistas foram descartadas devido a incompletude dos dados, resultando em uma amostra final de 710 usuários, dos quais 467 oriundos das dez unidades de saúde onde a intervenção fora completamente implantada. A seleção dos usuários foi realizada a partir do número total de atendimentos por unidade de saúde em 2005, mediante amostragem aleatória simples, sem reposição, com alocação proporcional à capacidade de atendimento de cada unidade. Todos os 467 entrevistados constituíram a população a ser analisada. Não foi encontrada diferença no poder das duas amostras: (i) a amostra de 710 usuários do estudo anterior, do qual foi extraída (ii) a amostra de 467 usuários das unidades de saúde abordadas no presente estudo. Tampouco observou-se discrepância entre as principais características sociodemográficas dos usuários que constituíram ambas as amostras, que foram razoavelmente similares.
Considerou-se como ‘acessibilidade’ o leque de características das unidades de saúde que permitem a elas serem mais facilmente utilizadas pelos usuários do sistema, conforme definição de Avedis Donabedian.14 Já o ‘espaço social’, definido por Bourdieu, é o das relações entre agentes sociais, no caso os usuários da rede básica de saúde de Salvador que ocupam diferentes posições na sociedade, de acordo com a quantidade e composição das diferentes espécies de capitais próprias desses indivíduos, em particular o capital econômico e o capital cultural, bem como sua trajetória social.20
As categorias ‘capital cultural’ e ‘capital econômico’ foram aferidas de forma aproximada, pautadas na escolaridade e na renda familiar respectivamente. Para estimar o capital cultural, foram propostas questões sobre o nível de escolaridade do usuário, de seus pais e de seu cônjuge. As diferentes escolaridades foram agrupadas em duas categorias: médio-baixa, para aqueles que haviam cursado o ensino fundamental incompleto ou completo e os que tinham o ensino médio incompleto; e alta, para os que concluíram o ensino médio e aqueles com ensino superior incompleto, completo ou mais.
A trajetória social foi obtida da comparação da escolaridade do usuário com a de sua família. Das respostas sobre os níveis de escolaridade da mãe e do pai, selecionou-se o maior, para a categoria ‘escolaridade familiar’. Assim, a trajetória social foi classificada da seguinte forma: ascendente (escolaridade do usuário maior que a escolaridade familiar); estável (escolaridade do usuário igual à escolaridade familiar); e descendente (escolaridade do usuário menor que a escolaridade familiar). Posteriormente, as categorias ‘descendente’ e ‘estável’ foram unificadas por não discriminarem - suficientemente bem - essas diferenças, devido à relativa homogeneidade social da amostra.
O capital econômico foi definido a partir da renda mensal familiar dos usuários das unidades da rede básica de saúde, estratificada pelo número de salários mínimos recebidos: capital econômico alto/médio (para usuários com renda familiar mensal a partir de dois salários mínimos); e baixo (para aqueles com renda familiar mensal inferior a dois salários mínimos). Cumpre observar que, em 2006, o valor do salário mínimo no Brasil era de R$ 350,00.
As ocupações informadas pelos usuários, assim como as ocupações de seu pai, mãe e cônjuge, foram codificadas segundo a Classificação Brasileira de Ocupações em sua versão de 2002, e agrupadas conforme Santos,21 com as devidas adaptações: empregados qualificados; trabalhadores; trabalhadores elementares; por conta própria; precários; empregados domésticos; empregados especialistas; supervisores; estudantes e estagiários; ‘do lar’ (trabalho doméstico não remunerado); e ‘nunca trabalhou’. Estas ocupações foram reagrupadas em duas categorias sócio-ocupacionais: categoria elementar (empregado doméstico; por conta própria; precário; trabalhador elementar); e categorias intermediária e qualificada (empregado qualificado; empregado especialista; supervisor). Para a categoria sócio-ocupacional dos estudantes/estagiários, ‘do lar’ ou que nunca haviam trabalhado, considerou-se o capital escolar. Assim, os indivíduos com escolaridade médio-baixa foram inseridos na categoria ocupacional elementar, e aqueles com escolaridade alta integraram a categoria ocupacional intermediária/qualificada. Alguns usuários não souberam informar a escolaridade da mãe; nestes casos, a informação foi inferida pela categoria sócio-ocupacional do pai do usuário.
As variáveis relacionadas à acessibilidade ao serviço de saúde foram: hora de chegada à unidade (não pegou fila e horário administrativo; na noite anterior ou até as 8h da manhã); forma de marcação da consulta (por profissional da unidade ou por telefone ou por lista de espera; presencial); tempo de espera para marcação da consulta (não esperou ou esperou até 15 minutos; esperou de 15 minutos até mais que uma hora); e tempo transcorrido desde o agendamento até a realização da consulta (no mesmo dia ou até duas semanas; entre três semanas e mais que um mês).
Procedeu-se a análise descritiva uni e bivariada, mediante distribuição de frequências das variáveis sociodemográficas e das variáveis de acesso segundo a posição socioeconômica do indivíduo (escolaridade, renda, ocupação e trajetória social). Para verificar possíveis diferenças entre os grupos, foi aplicado o teste qui-quadrado de Pearson. A associação entre as variáveis de posição socioeconômica e acesso foi verificada pela razão de prevalências (RP) e seus respectivos intervalos de confiança de 95% - IC95% -, estimados em função da odds ratio (OR), por regressão logística bivariada. Adotou-se o nível de significância de 5%.
O projeto do estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa do Instituto de Saúde Coletiva da Universidade Federal da Bahia (CEP/ISC/UFBA): Pareceres n° 046/2005 e nº 1.023.121/2015. Todas as entrevistas foram realizadas após os participantes assinarem o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido.
Resultados
Entre os 467 usuários de unidades da rede básica de saúde onde se havia implantado o projeto de intervenção, 77,3% eram do sexo feminino, 64,7% tinham de 20 a 49 anos de idade, 60,4% eram casados/conviventes, 75,6% não haviam concluído o ensino médio e 78,7% tinham renda familiar inferior a dois salários mínimos; 71,1% estavam desempregados e 51,8% tinham ocupações intermediárias ou qualificadas (Tabela 1).
A Tabela 2 apresenta a distribuição dos usuários de acordo com as características de posição no espaço social e indicadores de utilização dos serviços de saúde. Observou-se que um capital econômico médio-alto foi associado a maior acesso aos serviços, principalmente a hora de chegada na fila (p=0,017), tempo de espera (p=0,032) e tempo de agendamento (p=0,048). Possuir uma ocupação intermediária ou qualificada foi uma condição sócio-ocupacional associada à marcação da consulta por telefone, presencialmente na unidade de saúde, ou mediante inscrição em lista de espera (p=0,007).
Possuir capital econômico baixo associou-se ao dobro da chance de o usuário esperar em fila (OR=2,09 - IC95% 1,13;3,87) e de chegar na unidade de saúde na noite anterior ou antes das 8 horas da manhã, e ainda, de aguardar mais tempo para marcação da consulta (OR=2,13 - IC95% 1,05;4,31). O fato de o usuário se encontrar na categoria de ocupação elementar associou-se a marcar a consulta de forma presencial (OR=1,68 - IC95% 1,14;2,45), quando comparado ao usuário exercendo ocupação intermediária ou qualificada; e, portanto, sem ter utilizado as demais opções de marcação disponibilizadas pela intervenção para um melhor acesso à unidade básica de saúde. Não foram encontradas associações significativas entre os indicadores de utilização dos serviços de saúde, quando consideradas a escolaridade e a trajetória social dos usuários (Tabela 3).
Características | n | % |
---|---|---|
Sexo | ||
Masculino | 106 | 22,7 |
Feminino | 361 | 77,3 |
Grupo etário (em anos) | ||
10-19 | 55 | 11,8 |
20-49 | 302 | 64,7 |
50-59 | 43 | 9,2 |
≥60 | 67 | 14,3 |
Escolaridade | ||
Médio-baixa | 353 | 75,6 |
Alta | 114 | 24,4 |
Situação conjugal | ||
Solteiro | 140 | 29,9 |
Viúvo(a) | 20 | 4,3 |
Casado/convivente | 282 | 60,4 |
Divorciado(a) | 25 | 5,4 |
Situação profissional | ||
Empregado | 135 | 28,9 |
Desempregado | 332 | 71,1 |
Renda familiar (em salários mínimos)a,b,c | ||
<2 | 350 | 78,7 |
≥2 | 95 | 21,3 |
Tempo de residência no município | ||
Não é residente | 4 | 0,9 |
<10 | 47 | 10,1 |
≥10 | 166 | 35,5 |
Sempre morou | 250 | 53,5 |
Categoria sócio-ocupacionalb | ||
Elementar | 222 | 48,2 |
Intermediária e qualificada | 239 | 51,8 |
a) Oito usuários apresentaram renda familiar superior a cinco salários mínimos; b) Excluídos os usuários com informação ignorada; c) Salário mínimo vigente no Brasil em 2006: R$ 350,00.
Indicadores de acesso | Hora de chegada | Forma de marcação | Tempo de espera | Tempo de agendamento | |||||||||||||
---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|
Espaço social | n | Não pegou fila | Noite anterior até as 6h e entre 6h e 8h | P-valora | n | Telefone, profissional e lista de espera | Presencial | P-valora | n | Não esperou/esperou até 15 minutos | De 15 minutos até mais de 1 hora | P-valora | n | Mesmo dia até 2 semanas | Entre 3 semanas e mais de 1 mês | P-valora | |
Capital cultural | Médio-baixo | 353 | 74,8 | 25,2 | 0,814 | 352 | 37,2 | 62,8 | 0,351 | 352 | 80,7 | 19,3 | 0,528 | 325 | 68,6 | 31,4 | 0,180 |
Alto | 114 | 73,7 | 26,3 | 114 | 42,1 | 57,9 | 114 | 83,3 | 16,7 | 106 | 75,5 | 24,5 | |||||
Capital econômicob | Baixo | 350 | 73,4 | 26,6 | 0,017 | 349 | 37,3 | 62,8 | 0,074 | 349 | 79,9 | 20,1 | 0,032 | 317 | 67,5 | 32,5 | 0,048 |
Médio-alto | 95 | 85,3 | 14,7 | 95 | 47,4 | 52,6 | 95 | 89,5 | 10,5 | 92 | 78,3 | 21,7 | |||||
Categoria Sócio-ocupacionalb | Elementar | 222 | 72,9 | 27,0 | 0,433 | 222 | 31,9 | 68,0 | 0,007 | 222 | 80,6 | 19,4 | 0,720 | 206 | 67,5 | 32,5 | 0,249 |
Intermediária e qualificada | 239 | 76,1 | 23,9 | 238 | 44,1 | 55,9 | 238 | 81,9 | 18,1 | 219 | 72,6 | 27,4 | |||||
Trajetóriab | Descendente e estável | 187 | 78,6 | 21,4 | 0,662 | 187 | 40,6 | 59,4 | 0,203 | 187 | 85,0 | 15,0 | 0,791 | 169 | 66,9 | 33,1 | 0,619 |
Ascendente | 99 | 80,8 | 19,2 | 99 | 48,5 | 51,5 | 99 | 83,8 | 16,2 | 94 | 63,8 | 36,2 |
a) Oito usuários apresentaram renda familiar superior a cinco salários mínimos; b) Excluídos os usuários com informação ignorada; c) Salário mínimo vigente no Brasil em 2006: R$ 350,00.
Indicadores de acesso | Hora de chegada | Forma de marcação | Tempo de marcação | Tempo de agendamento | ||||
---|---|---|---|---|---|---|---|---|
Espaço social | ORb | IC95% c | ORb | IC95% c | ORb | IC95% c | ORb | IC95% c |
Capital cultural | ||||||||
Alto | 1,00 | 1,00 | 1,00 | 1,00 | ||||
Médio-baixo | 0,95 | 0,67;1,36 | 1,08 | 0,90;1,29 | 1,15 | 0,72;1,84 | 1,27 | 0,88;1,85 |
Capital econômicoa | ||||||||
Médio-alto | 1,00 | 1,00 | 1,00 | 1,00 | ||||
Baixo | 2,09 | 1,13;3,87 | 1,19 | 0,96;1,46 | 2,13 | 1,05;4,31 | 1,49 | 0,98;2,27 |
Categoria sócio-ocupacionala | ||||||||
Intermediária e qualificada | 1,00 | 1,00 | 1,00 | 1,00 | ||||
Elementar | 1,13 | 0,82;1,54 | 1,68 | 1,14;2,45 | 1,07 | 0,73;1,56 | 1,18 | 0,88;1,58 |
Trajetóriaa | ||||||||
Ascendente | 1,00 | 1,00 | 1,00 | 1,00 | ||||
Descendente e estável | 1,11 | 0,68;1,81 | 1,15 | 0,92;1,44 | 0,92 | 0,52;1,62 | 0,91 | 0,64;1,29 |
a) Excluídos os usuários com informação ignorada; b) OR: odds ratio (razão de chances); c) IC95%: intervalo de confiança de 95%.
Discussão
Os resultados do presente estudo revelaram que, entre os usuários das unidades da rede básica de saúde onde foi realizada a intervenção para melhoria da acessibilidade, não houve diferenças significativas na utilização dos serviços, quando foram consideradas sua escolaridade e trajetória social. Porém, aqueles de baixa renda apresentaram chances maiores de dispender mais tempo para obter acesso, em relação à hora de chegada na unidade, tempo para agendamento e espera pela consulta. Exercer uma ocupação classificada como elementar também foi um fato associado à marcação de consultas de forma presencial. Ou seja, apesar da implantação de um projeto especificamente voltado para a melhoria da acessibilidade, persistem em Salvador desigualdades no acesso aos serviços da Atenção Básica e a outros serviços de saúde, no que diz respeito a renda e ocupação.
Esses achados podem estar relacionados às características da população estudada, bastante homogênea quanto ao perfil sociodemográfico, e são consistentes com os de outros trabalhos similares: predominância do sexo feminino, baixa renda e baixa escolaridade.22,23
Possivelmente, a ausência de diferença estatisticamente significante entre o nível de escolaridade dos usuários, sua trajetória social e a utilização dos serviços de saúde, a exemplo do que se verifica em outras pesquisas, decorreu da relativa homogeneidade da amostra quando analisada sob esses fatores.
As diferenças encontradas entre os usuários de baixa renda (menos de dois salários mínimos), em relação à hora de chegada na unidade, tempo de espera e tempo de agendamento da consulta, podem ser explicadas tanto por questões objetivas como pela escassez de recursos financeiros para transporte, além de outras razões, de ordem subjetiva, relacionadas ao chamado ‘habitus de necessidade’.20 Este conceito, desenvolvido por Bourdieu, pode explicar diversas práticas das classes populares que priorizam o que é certo e seguro.
Dormir na fila e chegar antes da abertura do posto, apesar de se poder conseguir uma consulta no horário administrativo, pode resultar ou de uma decisão movida pela pequena autonomia frente ao trabalho, ou da otimização do tempo disponível, ou simplesmente do desconhecimento da existência da facilidade no agendamento implantada.
Essa relação entre o nível de renda e a melhor utilização dos serviços de saúde tem sido evidenciada em outros estudos, tanto em escala nacional, a exemplo das análises de Cambota e Rocha para as macrorregiões e estados do país24 e de Andrade et al. para as macrorregiões,25 como metropolitana, a exemplo da investigação de Barata sobre a região metropolitana de São Paulo.26
Já o pertencimento a uma categoria sócio-ocupacional intermediária ou qualificada pode influir em maior renda e escolaridade, ampliação das redes sociais, além de provocar outros efeitos importantes, como o aumento do capital simbólico de reconhecimento. Tudo isso, associado a uma trajetória social ascendente, pode estar relacionado com a maior normatividade27 dessas pessoas, e assim explicar o melhor uso observado das facilidades introduzidas: marcação de consultas por telefone, presencialmente ou em lista de espera, e outras formas.
A relação já estabelecida entre trabalho e acesso aos serviços de saúde,24,28 também encontrada na população estudada, pode revelar mais do que uma incompatibilidade entre o horário de funcionamento do serviço e o horário disponível para o usuário empregado. Ela também pode se dever ao fato de o SUS ser a única alternativa assistencial para os desempregados.
A análise da amostra de usuários da rede básica de saúde, participantes deste estudo, revelou uma pequena diferenciação interna entre seus participantes, a despeito de, majoritariamente, serem classificados como pertencentes a categorias socioocupacionais intermediárias e qualificadas. Assim, ocupar uma posição no espaço social definida por um maior volume de capital econômico, e exercer ocupação classificada como intermediária ou qualificada, influenciou positivamente na utilização dos rearranjos organizacionais introduzidos pelo programa e, consequentemente, assegurou melhor acesso.
O presente estudo traz elementos para a discussão acerca da potencialidade e dos limites de intervenções focadas na dimensão sócio-organizacional da acessibilidade aos serviços de saúde. Ademais, revela-se um nó crítico no acesso à Atenção Básica em Saúde, no caso observado: as filas para marcação de consultas. Diferentemente de iniciativas recentes e relevantes, indutoras de modificações mediante avaliação, a exemplo do Programa Nacional de Melhoria do Acesso e da Qualidade da Atenção Básica (PMAQ-AB), o projeto para melhoria da acessibilidade na rede básica de saúde de Salvador implantou e monitorou mudanças. Seus resultados apontam que a melhoria da acessibilidade e a redução das barreiras na utilização dos serviços de saúde requerem ações específicas, focadas em grupos mais vulneráveis, mesmo no interior das classes populares. Eles também corroboram conclusões de estudos anteriores: não se reduzem desigualdades unicamente com intervenções sobre os serviços de saúde, e sim, também, ainda que parcialmente, com ações que extrapolam o setor, políticas econômicas e sociais.29,30 A incipiente produção científica, no que concerne à avaliação de intervenções promotoras da acessibilidade à saúde e da influência das desigualdades sociais, reflete, outrossim, a escassez dessas intervenções específicas, seja no âmbito municipal, seja nos âmbitos estadual ou nacional.
A extrapolação dos achados aqui apresentados deve ser cautelosa, haja vista o estudo referir-se a um único município e sua amostra não ter base populacional, pois foram entrevistados somente usuários que procuraram os serviços de saúde da rede básica e a eles tiveram acesso. Como os dados apresentados resultaram de um estudo transversal, não é possível estabelecer relação de temporalidade. Não obstante o tempo decorrido, a intervenção avaliada representa um caso exemplar, a ser observado em seu tempo histórico, capaz de contribuir para o monitoramento de programas de redução das desigualdades no acesso à Atenção Básica em Saúde e seu aperfeiçoamento.
Sem descuidar da busca pela melhoria da qualidade e da efetividade das ações de saúde, a adoção de estratégias direcionadas à discriminação positiva pode diminuir as iniquidades em saúde e favorecer a utilização dos serviços por parte dos usuários mais desprovidos de recursos econômicos e culturais. Eis uma medida importante para o cumprimento de um direito garantido pela Constituição de 1988, o acesso universal à saúde, sobretudo em uma conjuntura de ajuste fiscal e cortes orçamentários na Saúde Pública.