Introdução
Estatísticas confiáveis sobre causas de morte fornecem evidências válidas para subsidiar a formulação de políticas.1 As causas externas representaram porcentagem maior de mortes no Brasil (12,3%), em comparação com outros países nas Américas (9,5%), Ásia (8,5%), África (7,5%) e Europa (5,6%), em 2017.2
As declarações de óbito, muitas vezes, não especificam a circunstância de morte da causa externa e, portanto, são pouco úteis para a Saúde Pública.3,4 Esse tipo de registro inespecífico, conhecido por código garbage, é um indicador de qualidade da causa básica de óbito.1 A baixa precisão no registro das causas obriga setores da saúde a despender recursos nas investigações de campo. Em 2016, após checagem e resgate de informações, 15% das 160 mil mortes por causas externas permaneceram sem registro específico no Brasil.5
As normas brasileiras regulam a obrigatoriedade dos serviços de medicina forense de fornecerem a declaração de óbito para mortes não naturais.6 Em locais sem esse serviço, qualquer médico deve emitir a declaração. No Brasil, o sistema médico-legal de investigação da morte combina a investigação médica e científica com o inquérito policial em tribunal aberto, conhecido como sistema médico-legista.7 Embora esse sistema não determine a responsabilidade civil ou criminal, seu objetivo é estabelecer fatos que servirão de base para a definição da causa legal da morte.8
Os institutos de medicina forense integram o Sistema Único de Segurança Pública (SUSP) brasileiro.9 A autoridade do sistema médico-legal de investigação da morte, portanto, é reconhecida dentro da aplicação da lei. A gestão da saúde do município, no entanto, é responsável por executar os procedimentos locais necessários à inserção de registros no Sistema de Informações sobre Mortalidade (SIM) do Ministério da Saúde, logo compartilhado com a autoridade nacional para a compilação de estatísticas de óbitos.6
Além de buscar, na estrutura normativa do sistema médico-legal de investigação da morte, elementos de entendimento da produção de informações menos precisas, o objetivo da pesquisa foi analisar a frequência e fatores associados ao registro inespecífico de óbitos por causas externas no Brasil.
Métodos
Este estudo transversal, com dados secundários, utilizou-se da base de dados do SIM.
Consideram-se mortes com causa básica original - causa anterior à investigação da vigilância de óbito - como causas externas aquelas previstas nos códigos V01 a Y98 da 10a Revisão da Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde (CID-10). A certificação desse tipo de causa é uma atribuição do médico-legista ou outro investido na função pela autoridade judicial ou policial.6
A variável de desfecho do estudo foram as causas externas, subagrupadas em causas inespecíficas e causas definidas. Neste estudo, causa inespecífica correspondeu ao registro não especificado da circunstância de morte na declaração de óbito, conforme a lista do Global Burden of Disease, 2015.5,10
Com base na literatura,3,5,11,12 a partir dos campos da declaração de óbito, foram criadas duas variáveis de explicação, organizadas em categorias binárias:
Local de ocorrência do óbito - hospitalar (hospital; estabelecimentos de saúde); e não hospitalar (domicílio; via pública; outro);
Médico atestante - registro certificado por instituto forense (médico-legista); e não certificado por instituto forense (médico assistente; substituto; serviço de verificação de óbito; outro).
Inicialmente, as variáveis de desfecho e as variáveis explicativas foram representadas em um diagrama de fluxo da frequência de registros inespecíficos; a existência de uma possível multicolinearidade foi testada mediante regressão linear, utilizando-se tolerance e variance inflation factors (VIF). Por fim, aplicou-se a regressão logística binária univariada para testar o quanto a causa externa inespecífica foi modificada pelo óbito de ocorrência hospitalar e, em seguida, pelo registro certificado por instituto forense. A medida dessa alteração foi obtida pelas razões de probabilidades (odds ratios [OR]), seus respectivos intervalos de confiança (IC) a 95% (IC95%) e p-valor <0,05. Em todas as análises, adotou-se o programa R (versão 4.0.2).
O estudo pautou-se em dados secundários não nominais, de acordo com a Resolução do Conselho Nacional de Saúde (CNS) nº 466, de 12 de dezembro de 2012, normatizadora da pesquisa com seres humanos.
Resultados
Em 2017, o Brasil registrou 159.720 óbitos por causas externas, dos quais 38,9% foram hospitalares, 83,4% certificados pela medicina forense e 21,7% atribuídos a causas inespecíficas. Médicos-legistas certificaram 74,9% das mortes hospitalares e 93,0% dos eventos em residência/via pública (Figura 1).

Fonte: Sistema de Informações sobre Mortalidade, Ministério da Saúde.
Nota: Foram excluídos dados não informados: 0,4% (n=630) de ocorrências no local do óbito; e 3,1% (n=4.898) de médico certificador/atestante.
Figura 1 Representação esquemática da frequência de registros inespecíficos de óbitos por causas externas, segundo local de ocorrência e médico atestante, Brasil, 2017
Óbitos de ocorrência hospitalar (n=61.922) certificados por legistas (n=44.702) apresentaram 30,7% (13.726) de códigos inespecíficos, enquanto os emitidos por outros certificadores foram 24,5% (n=3.670). Por sua vez, mortes de ocorrência em domicílio/via pública (n=87.976) certificadas por legistas exibiram 17,5% (n=15.353) de causas inespecíficas, e as emitidas por outros certificadores, 11,9% (n=785) (Figura 1).
As mortes ocorridas em hospital apresentaram chance de registro com código inespecífico de 2,00 (OR) (IC95% 1,96;2,05), comparadas àquelas ocorridas em domicílio/via pública, observando-se efeito semelhante na interação das variáveis independentes. Porém, quando a variável independente foi apenas o óbito certificado por legista, essa chance foi menor: OR=1,08 - IC95% 1,04;1,11 (Tabela 1). As variáveis independentes não apresentaram multicolinearidade: tolerance >0,7 e VIF <1,5.
Tabela 1 Frequência da mortalidade por causas externas inespecíficas, razões de chances e respectivos intervalos de confiança de 95%, segundo local de ocorrência e médico atestante, Brasil, 2017
Variáveis | Total (n) | Causas externas inespecíficas | Odds ratio | Intervalo de confiança de 95% | p-valora | |
---|---|---|---|---|---|---|
(n) | (%) | |||||
Local de ocorrência | ||||||
Residência/via pública | 97.168 | 16.518 | 17,0 | 1,00 | - | - |
Óbito hospitalar | 61.922 | 18.022 | 29,1 | 2,00 | 1,96; 2,05 | <0,001 |
Médico atestante | ||||||
Outro médico certificador | 21.573 | 4.460 | 20,7 | 1,00 | - | - |
Médico-legista | 133.249 | 29.173 | 21,9 | 1,08 | 1,04; 1,11 | <0,001 |
Interação | ||||||
Residência/via pública e médico-legista | 87.976 | 15.353 | 17,5 | 1,00 | - | - |
Óbito hospitalar e médico-legista | 44.702 | 13.726 | 30,7 | 2,01 | 1,96; 2,06 | <0,001 |
a) p-valor da razão de chances, calculado pelo teste de Wald.
Discussão
Os óbitos de ocorrência hospitalar e certificados por institutos forenses foram associados ao registro de óbito inespecífico por causas externas. Esse tipo de código garbage teve, no entanto, maior chance de ser modificado pelo evento hospitalar e por sua interação com o registro emitido por legistas.
Achados anteriores apontaram o óbito de ocorrência hospitalar e o registro certificado por legista como preditores do registro inespecífico. O óbito hospitalar foi associado a causas inespecíficas,11,12 enquanto o registro emitido por legista, fortemente associado à causa mal definida, se revelou fator de proteção para causa inespecífica.11
A ocorrência de garbage em registros emitidos pela medicina forense pode envolver distintos motivos relacionados ao preenchimento da declaração de óbito. Algumas vezes, certos dados não são bem utilizados ou estão disponíveis somente após a emissão da declaração.3 Há outras situações, todavia, em que o legista não aproveita ao máximo as informações disponíveis, que podem ser desconsideradas por não terem como fonte os laudos da polícia, por exemplo.13
O correto registro da causa externa de morte depende de resultados de inquéritos policiais e exames, nem sempre realizados ou concluídos, afetados pela baixa qualidade de investigações nas cenas do crime.8 Esse caráter técnico-legal do diagnóstico da causa de morte no sistema médico-legal de investigação da morte, sob gestão operacional da polícia, produz informações que dependem de procedimentos de validação normatizados por órgãos da Segurança Pública e da Justiça.8,9
No sistema médico-legal de investigação da morte, não é prerrogativa do legista determinar a causa jurídica da morte por causa não natural, senão contribuir para seu esclarecimento. Isto se baseia no fato de o médico não ter competência legal para atestar o óbito como concreto, mesmo quando é alta a probabilidade de o evento ser atribuído a determinada circunstância de causa externa.8 Assim, não é raro que o legista seja levado a registrar um código garbage de morte, para evitar prováveis imprecisões no exercício de sua função.5,13,14 Como resultado, é possível que informações de registros hospitalares não sejam utilizadas, quando não são confirmadas por laudos policiais.5,13 Nas mortes por causas naturais, diferentemente, toda a sequência de eventos é de responsabilidade exclusiva do médico, sendo aceitável certificar uma causa altamente provável com base na história clínica do indivíduo. Nesses casos, para o setor da saúde, prevalece a finalidade epidemiológica do evento.1,4,15
Embora a estrutura legal dos sistemas médico-legais de investigação da morte varie bastante em todo o mundo, as experiências do Brasil e outros países exemplificam caminhos possíveis para lidar com as questões e desafios dos registros de óbitos por causas externas, discutidos brevemente neste artigo como notas preliminares de uma investigação em andamento.13,16,17 Em determinados países, a declaração de óbito é um formulário bifurcado, com (i) uma seção para informações pessoais de uso no registro civil e sepultamento e (ii) outra seção para registro da causa de morte. Este formato do documento permite ao médico-legista considerar resultados de exames e relatórios criminais a posteriori.18
Embora os achados ajudem a pensar como as mortes hospitalares por causas externas podem elevar o registro de causas inespecíficas certificado pelo legista no Brasil, o artigo aponta caminhos para a construção de um modelo de associação clássico, com ajuste de potenciais variáveis de confundimento, a exemplo de um modelo completo e com maior capacidade preditiva. Ademais, são necessárias pesquisas qualitativas, juntamente com o levantamento de dados epidemiológicos, para se alcançar uma compreensão mais precisa do fenômeno.
A possibilidade de predição das causas externas inespecíficas, a partir das variáveis ‘óbito hospitalar’ e ‘certificado por legista’, pode apoiar ações de aprimoramento do registro das causas violentas de morte no SIM. Como as informações da investigação médico-legal são compartilhadas por diferentes esferas sociais, a promoção de um diálogo interinstitucional Justiça-Saúde, fundamentado em evidências, pode significar mais um incentivo à construção de interseções entre políticas nacionais de melhoria da qualidade do registro e do significado de mortes por causas externas, além de apoiar a identificação das melhores práticas colaborativas da medicina forense com os serviços de vigilância em saúde.