Introdução
O ano de 2020 foi marcado pela propagação mundial do SARS-CoV-2, vírus causador da COVID-19, declarada doença pandêmica pela Organização Mundial da Saúde (OMS).1 A velocidade com que ocorre a transmissão do vírus tem-se evidenciado no crescimento e magnitude de casos registrados no mundo. Segundo dados da OMS, até 19 de novembro de 2020, cerca de 55 milhões de pessoas haviam se infectado e mais de 1,3 milhão morrera em decorrência da COVID-19. No Brasil, no mesmo período, foram mais de 5,9 milhões de infectados e 168 mil mortes,2 e no estado do Espírito Santo especialmente, 175.300 casos confirmados e 4.082 mortes. A letalidade capixaba foi estimada em 2,4%.3
Embora inicialmente o vírus cause doença respiratória leve, essa infeção pode conduzir a síndrome respiratória grave. Estas formas severas da COVID-19 apresentam maior probabilidade de se desenvolver em pessoas idosas e portadores de doenças crônicas prévias.4 Estudo realizado no Brasil, sobre comorbidades acima dos 50 anos de idade, encontrou uma prevalência de 67,8% de indivíduos com duas doenças ou mais, e 47,1% com três ou mais: 26 milhões e 18 milhões de brasileiros, respectivamente.5 São pessoas que estariam sob maior risco de desfechos graves caso se infectassem pelo SARS-CoV-2.
Grande parte das doenças decorre das situações em que se nasce, vive, estuda, trabalha, e até se diverte. Este conjunto de condições, identificado como ‘determinantes sociais da saúde’ e principais responsáveis por gerar diferenças sistemáticas segundo diversos grupos populacionais, encontram-se na essência das desigualdades de saúde.6 No contexto de profundos problemas sociais do país, é difícil discutir questões sanitárias sem considerar as desigualdades presentes, e seus reflexos são evidentes nas condições de vida e moradia.
Diante da pandemia do novo coronavírus, tem-se observado importante relação entre multimorbidade, COVID-19 e determinantes sociais, sendo os indivíduos com piores condições socioeconômicas os mais afetados.7 A prevalência e a gravidade da COVID-19 estão intimamente ligadas a outras morbidades incidentes, principalmente entre os mais pobres, de menor escolaridade e menos acesso aos serviços de saúde.
A compreensão de como determinantes sociais da saúde podem influenciar negativamente os desfechos da COVID-19, somada ao conhecimento da forma de exposição a esses determinantes, permite que as políticas de Saúde Pública considerem os riscos acrescidos pelas comorbidades, de forma a que, entre suas ações coordenadas, atendam também, e especialmente, aqueles sob maior risco, menor visibilidade e proteção.
Objetivou-se com o presente estudo analisar a associação entre determinantes sociais e morbidades, e os desfechos ‘internação’, ‘internação em unidade de terapia intensiva (UTI)’ e ‘óbito’ por COVID-19 no estado do Espírito Santo, região Sudeste do Brasil.
Métodos
Trata-se de um estudo analítico de dados secundários, transversal, realizado com informações de casos confirmados de COVID-19 no Espírito Santo, disponíveis no Sistema de Informação de Agravos de Notificação (Sinan).
O Espírito Santo é o menor estado da região Sudeste, conta uma população estimada de 4.018.650 habitantes8 e sua economia, majoritariamente, está baseada no setor de serviços. A estrutura etária da população do estado passa por intensa transformação: 13,55% têm mais de 60 anos e a expectativa de vida é de 78,8 anos, de acordo com projeções para 2020.9 A rede assistencial regional passou por intensas adaptações para atender às demandas relacionadas à COVID-19. Em novembro de 2020, sua capacidade instalada era de 1.532 leitos: 715 de UTI e 817 de enfermaria.10
Analisou-se a totalidade dos casos confirmados de COVID-19 no Espírito Santo, mediante testes laboratoriais ou critérios diagnósticos clínico-epidemiológicos. Desde o primeiro caso, notificado em 28 de fevereiro de 2020, até o último registro no dia 1º de setembro de 2020, todos foram acompanhados por 15 dias, para avaliação dos desfechos nesse período. O banco de dados utilizado, tornado disponível pela Secretaria de Estado da Saúde do Espírito Santo, proveio do sistema on-line de notificação compulsória de casos. Durante o processo de notificação, coletam-se informações sociodemográficas, sintomas do indivíduo, morbidades preexistentes e dados de acompanhamento de cada caso.
Os desfechos do estudo foram ‘internação’, ‘internação em UTI’ e ‘óbito’ por COVID-19 (sim; não). As variáveis independentes foram:
Sexo (feminino; masculino);
Raça/cor da pele (branca; preta; parda [mistura de duas ou mais raças/cores da pele]; amarela [pessoas de origem asiática]; indígena);
Idade (anos completos: 18-29; 30-39; 40-49; 50-59; 60 ou mais);
Escolaridade (sem instrução; ensino fundamental completo; ensino médio completo; ensino superior completo e mais);
Presença de morbidades (nenhuma; uma; multimorbidade [≥2 morbidades]).
Por se tratar de um estudo com dados secundários, avaliou-se a completude dos dados das variáveis independentes. As seguintes morbidades foram selecionadas:
Doenças pulmonares preexistentes;
Doença cardiovascular;
Doença renal crônica;
Doença hepática crônica;
Diabetes mellitus;
Infecção pelo HIV;
Obesidade;
Tuberculose;
Doença neurológica crônica;
Neoplasias.
Entretanto, de maneira isolada, foram avaliadas as doenças pulmonares preexistentes, neoplasias, doença cardiovascular, doença neurológica, doença renal, diabetes mellitus, tabagismo, obesidade e infecção pelo HIV. Morbidades como tuberculose, doença hepática e outras imunodeficiências (exceto infecção pelo HIV) não puderam ser avaliadas separadamente, dado o pequeno número de casos notificados. Todas as condições foram estimadas pelo relato do indivíduo notificado, relato de familiar ou identificação pelo profissional responsável do atendimento, como no caso - por exemplo - da obesidade.
Os dados foram organizados sobre plataforma Microsoft Excel® e posteriormente analisados com uso do programa estatístico Stata 13.0. Por se tratar de um estudo com dados secundários, realizou-se avaliação da completude (percentual de preenchimento) das variáveis independentes observadas. A análise transcorreu em múltiplas etapas, adotando-se nível de significância de 5%. Primeiramente, foi verificada a frequência das variáveis independentes (sexo; raça/cor da pele; idade; escolaridade; presença de morbidades) e sua associação com os desfechos em estudo, por meio do teste qui-quadrado de Pearson. Na segunda etapa, verificou-se a possível associação entre as exposições (variáveis independentes) e os desfechos (internação; internação em UTI; óbito), por meio da regressão de Poisson, com variância robusta, cálculo da razão de prevalências bruta e respectivo intervalo de confiança de 95% (IC95%).
Finalmente, foi realizada a análise multivariável, na qual se considerou, enquanto potenciais fatores de confusão, as variáveis que apresentaram p-valor<0,2 na análise bruta, logo incluídas no modelo, de uma única vez, adotando-se p-valor<0,05 para o resultado final. Na avaliação da qualidade dos ajustes de cada modelo, utilizou-se do teste de Hosmer e Lemeshow após cada regressão de Poisson, naquelas situações em que, para todos os modelos apresentados, a estatística do teste fosse não significativa, quando p>0,05 e, portanto, o ajuste considerado adequado. Para avaliar a possibilidade de efeito dose-resposta entre as variáveis de exposição categóricas ordinais e a probabilidade dos desfechos em estudo, foi utilizado o teste qui-quadrado de tendência linear, com nível de significância de 5%.
Para todas as associações entre exposições e desfechos, foi realizado o cálculo de poder da amostra com uso do programa estatístico OpenEpi versão 3.01, utilizando-se, como parâmetros, um intervalo de confiança de 95% (IC95%) e razão de prevalências mínima de 1,2. A associação que apresentou menor poder foi ‘infecção pelo HIV e risco de óbito por COVID-19’, igual a 78,61%.
O projeto do estudo foi submetido ao Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos, do Centro de Ciências da Saúde da Universidade Federal do Espírito Santo (CEP/CCS/UFES), sendo aprovado sob Parecer nº 4.036.052, emitido em 19 de maio de 2020.
Resultados
Foram investigados 104.384 casos de COVID-19 confirmados no estado do Espírito Santo. Em relação à completude, as variáveis ‘sexo’ e ‘idade’ foram as mais bem preenchidas, com 99,98% e 100,00% de informação respectivamente, seguidas por ‘presença de morbidade’ (98,80%), ‘raça/cor da pele’ (81,33%) e, com pior preenchimento, ‘escolaridade’ (68,15%).
A maior parte dos participantes era do sexo feminino (53,09%), raça/cor da pele branca (42,25%) e parda (41,23%), idade entre 30 e 49 anos (48,33%) e ensino médio completo (44,46%); 18,17% tinham uma morbidade preexistente, e 8,47%, multimorbidades (Tabela 1).
Variável de exposição | n | % | Internação n (%)a | UTIc n (%)a | Óbito n (%)a |
---|---|---|---|---|---|
Sim | Sim | Sim | |||
p<0,001b | p<0,001b | p<0,001b | |||
Sexo (104.359) | |||||
Feminino | 55.401 | 53,09 | 2.794 (7,10) | 1.292 (4,14) | 1.363 (2,63) |
Masculino | 48.958 | 46,91 | 3.476 (9,93) | 1.653 (5,87) | 1.764 (3,85) |
Raça/cor da pele (81.338) | |||||
Branca | 34.366 | 42,25 | 1.972 (7,59) | 909 (4,53) | 1.106 (3,44) |
Preta | 6.253 | 7,69 | 468 (9,79) | 231 (5,91) | 251 (4,27) |
Amarela | 7.018 | 8,63 | 553 (10,32) | 310 (7,31) | 324 (4,88) |
Parda | 33.536 | 41,23 | 2.127 (8,58) | 995 (4,99) | 1.094 (3,55) |
Indígena | 165 | 0,20 | 7 (5,56) | 2 (1,85) | 3 (2,00) |
Idade (anos) (104.384) | |||||
18-29 | 19.603 | 18,78 | 222 (1,60) | 55 (0,94) | 27 (0,37) |
30-39 | 27.566 | 26,41 | 527 (2,75) | 143 (1,55) | 71 (0,60) |
40-49 | 22.885 | 21,92 | 842 (5,14) | 250 (3,07) | 144 (1,45) |
50-69 | 16.514 | 15,82 | 1.086 (9,22) | 380 (6,42) | 267 (3,67) |
≥60 | 17.816 | 17,07 | 3.595 (27,35) | 1.309 (18,37) | 1.575 (19,17) |
Escolaridade (68.152) | |||||
Sem instrução | 13.127 | 19,26 | 1.395 (13,39) | 650 (7,75) | 893 (7,34) |
Ensino fundamental | 9.642 | 14,15 | 562 (7,51) | 244 (4,17) | 308 (3,44) |
Ensino médio | 30.298 | 44,46 | 910 (3,88) | 353 (1,93) | 300 (1,06) |
Ensino superior | 15.085 | 22,13 | 394 (3,33) | 142 (1,59) | 82 (0,58) |
Morbidade (103.136) | |||||
Nenhuma | 75.661 | 73,36 | 2.155 (4,17) | 858 (2,12) | 790 (1,12) |
Uma morbidade | 18.741 | 18,17 | 1.978 (12,99) | 926 (7,47) | 988 (5,65) |
Multimorbidade | 8.734 | 8,47 | 2.053 (28,32) | 1.121 (18,18) | 1.295 (15,79) |
a) Foram incluídos sujeitos com campo preenchido em ambas as variáveis; b) Teste qui-quadrado de Pearson; c) UTI: unidade de terapia intensiva
Internações por COVID-19 foram mais frequentes entre os indivíduos do sexo masculino (9,93%) e os de raça/cor da pele amarela (10,32%). A prevalência de internações aumentou com a idade, variando de 1,60% nos indivíduos com 18 a 29 anos a 27,35% entre os de 60 anos ou mais (Tabela 1). Relação inversa pode ser observada nas categorias de escolaridade, com prevalências mais altas de internação entre pessoas que referiram níveis mais baixos de educação escolar. A prevalência de internações entre indivíduos com uma única morbidade foi de 12,99%; e de 28,32% para aqueles com multimorbidade, enquanto para pessoas sem morbidades a prevalência de internações foi de 4,17% (Tabela 1).
As internações em UTI seguiram o mesmo padrão de ocorrência das internações para as variáveis de exposição, sendo mais frequentes entre os indivíduos do sexo masculino (5,87%), raça/cor amarela (7,31%), 60 anos ou mais de idade (18,37%), sem instrução (7,75%) e com multimorbidade (18,18%) (Tabela 1).
Em relação aos óbitos por COVID-19, entre os casos notificados, foram mais frequentes o sexo masculino (3,85%), comparado ao feminino (2,63%); nas pessoas de raça/cor da pele amarela, a prevalência de óbito foi de 4,88%, e entre brancos, de 3,44% (Tabela 1). A maior proporção de óbitos por categorias de idade ocorreu em pessoas de 60 anos ou mais (19,17%), e em relação à escolaridade, a maior proporção de óbitos correspondeu àqueles sem instrução (7,34%). A proporção de óbitos em indivíduos com multimorbidade foi de 15,79%, de 5,65% naqueles com apenas uma morbidade e de 1,12% nos casos sem qualquer morbidade (Tabela 1).
A Tabela 2 apresenta as razões de prevalências brutas e ajustadas para os três desfechos, segundo características sociodemográficas e morbidades. Ser do sexo feminino esteve negativamente associado aos três desfechos (internações, internações em UTI e óbito). Após ajuste, ser do sexo feminino reduziu em 33% (RP=0,67 - IC95% 0,62;0,71) a probabilidade de ser internada por COVID-19, frente ao sexo masculino; a redução na probabilidade de uma pessoa do sexo feminino ser internada em UTI por conta da COVID-19 foi de 38% (RP=0,62 - IC95% 0,56;0,69), e na probabilidade de vir a óbito, de 37% (RP=0,63 - IC95% 0,57;0,70), em comparação aos indivíduos do sexo masculino (Tabela 2).
Variável | Análise bruta | Análise ajustada | |||||
---|---|---|---|---|---|---|---|
Internação RP (IC95%) | Internação em UTI RP (IC95%) | Óbito RP (IC95%) | Internação RP (IC95%) | Internação em UTI RP (IC95%) | Óbito RP (IC95%) | ||
Morbidadea | |||||||
Nenhuma | 1,00 | 1,00 | 1,00 | 1,00 | 1,00 | 1,00 | |
Uma morbidade | 3,11 (2,93;3,29) | 3,53 (3,22;3,86) | 5,06 (4,62;5,55) | 1,49 (1,36;1,64) | 1,65 (1,42;1,92) | 1,78 (1,54;2,05) | |
Multimorbidade | 6,78 (6,42;7,16) | 8,59 (7,89;9,35) | 14,15 (12,99;15,41) | 2,66 (2,43;2,93) | 3,09 (2,65 - 3,60) | 3,63 (3,16;4,17) | |
Qui-quadrado de tendência | <0,001 | <0,001 | <0,001 | <0,001 | <0,001 | <0,001 | |
Sexob | |||||||
Masculino | 1,00 | 1,00 | 1,00 | 1,00 | 1,00 | 1,00 | |
Feminino | 0,71 (0,68;0,75) | 0,70 (0,65;0,75) | 0,68 (0,63;0,73) | 0,67 (0,62;0,71) | 0,62 (0,56;0,69) | 0,63 (0,57;0,70) | |
Raça/cor da pelec | |||||||
Branca | 1,00 | 1,00 | 1,00 | 1,00 | 1,00 | 1,00 | |
Preta | 1,28 (1,17;1,41) | 1,35 (1,13;1,50) | 1,24 (1,08;1,42) | 1,28 (1,13;1,44) | 1,34 (1,11;1,62) | 1,22 (1,03;1,45) | |
Amarela | 1,35 (1,24;1,48) | 1,61 (1,42;1,82) | 1,42 (1,25;1,60) | 1,35 (1,19;1,52) | 1,81 (1,52;2,16) | 1,27 (1,08;1,50) | |
Parda | 1,12 (1,06;1,19) | 1,10 (1,01;1,20) | 1,03 (0,95;1,12) | 1,17 (1,08;1,26) | 1,21 (1,07;1,37) | 1,11 (0,99;1,23) | |
Indígena | 0,73 (0,35;1,50) | 0,40 (0,10;1,61) | 0,58 (0,18;1,78) | 0,52 (0,17;1,59) | 0,76 (0,19;2,95) | 0,80 (0,20;3,12) | |
Escolaridaded | |||||||
Ensino superior | 1,00 | 1,00 | 1,00 | 1,00 | 1,00 | 1,00 | |
Ensino médio | 1,16 (1,03;1,30) | 1,21 (1,00;1,47) | 1,84 (1,44;2,34) | 1,19 (1,06;1,35) | 1,28 (1,04;1,59) | 1,71 (1,33;2,20) | |
Ensino fundamental | 2,25 (1,99;2,55) | 2,63 (2,14;3,22) | 5,95 (4,67;7,59) | 1,51 (1,31;1,73) | 1,74 (1,38;2,18) | 2,76 (2,14;3,56) | |
Sem instrução | 4,02 (3,60;4,48) | 4,88 (4,08;5,84) | 12,72 (10,16;15,93) | 1,78 (1,58;2,02) | 2,08 (1,69;2,56) | 3,35 (2,63;4,26 | |
Qui-quadrado de tendência | <0,001 | <0,001 | <0,001 | <0,001 | <0,001 | <0,001 | |
Idade (anos)e | |||||||
18-29 | 1,00 | 1,00 | 1,00 | 1,00 | 1,00 | 1,00 | |
30-39 | 1,71 (1,47;2,00) | 1,65 (1,27;2,13) | 1,98 (1,32;2,97) | 1,64 (1,34;2,02) | 1,72 (1,20;2,46) | 2,07 (1,16;3,67) | |
40-49 | 3,31 (2,77;3,72) | 3,16 (2,48;4,02) | 5,78 (3,99;8,38) | 2,89 (2,38;3,51) | 2,69 (1,91;3,78) | 5,39 (3,18;9,11) | |
50-59 | 5,76 (5,00;6,64) | 6,99 (5,54;8,80) | 14,60 (10,19;20,92) | 4,38 (3,61;5,30) | 4,23 (3,88;7,49) | 11,39 (6,83;18,99) | |
≥60 | 17,10 (14,96;19,54) | 21,33 (17,12;26,57) | 83,49 (58,94;118,26) | 11,39 (9,49;13,68) | 10,70 (10,34;19,48) | 56,31 (34,24;92,61) | |
Qui-quadrado de tendência | <0,001 | <0,001 | <0,001 | <0,001 | <0,001 | <0,001 |
a) Análise ajustada para sexo, raça/cor da pele, escolaridade e idade; b) Análise ajustada para morbidade, raça/cor da pele, escolaridade e idade; c) Análise ajustada para morbidade, sexo, escolaridade e idade; d) Análise ajustada para morbidade, sexo, raça/cor da pele e idade; e) Análise ajustada para morbidade, sexo, raça/cor da pele e escolaridade.
Indivíduos de raça/cor da pele amarela apresentaram uma probabilidade 35% maior (IC95% 1,19;1,52) de serem internados, e um aumento de 81% (IC95% 1,52;2,16) na probabilidade de serem internados em UTI, em relação a brancos. Ser de raça/cor da pele amarela ainda esteve associado a um aumento de 27% (IC95% 1,08;1,50) na probabilidade de vir a óbito por COVID-19, na comparação com indivíduos brancos. Indivíduos de raça/cor da pele preta, por sua vez, apresentaram uma probabilidade 28% maior (IC95% 1,13;1,44) de serem internados, e um aumento de 34% (IC95% 1,11;1,62) na probabilidade de serem internados em UTI, frente aos de raça/cor da pele branca; em relação aos óbitos por COVID-19, a probabilidade de indivíduos de raça/cor amarela foi 22% maior (IC95% 1,03;1,45), comparativamente aos brancos (Tabela 2).
Os três desfechos estudados apresentaram uma relação inversa com as categorias de escolaridade. Níveis mais baixos de instrução referiram maiores probabilidades de um desfecho negativo relacionado à COVID-19. Indivíduos sem instrução apresentaram um aumento de 78% e 108% na probabilidade de serem internados e serem internados em UTI, respectivamente, comparados aos indivíduos com nível superior completo (Tabela 2). Quanto aos óbitos, não ter instrução esteve associado a um aumento de 3,35 vezes (IC95% 2,63;4,26) na probabilidade de vir a óbito por COVID-19, relativamente àqueles com nível superior (Tabela 2).
A probabilidade de um desfecho negativo aumentou com o avançar da idade: a de ser internado foi 11,39 vezes maior entre indivíduos com 60 anos ou mais, em relação àqueles com 18 a 29 anos, enquanto ter 60 anos ou mais esteve associado a um aumento de 10,70 vezes na probabilidade de ser internado em UTI, na comparação com o estrato mais jovem (Tabela 2). Quando avaliado o óbito, a razão de prevalências foi de 56,31 (IC95% 34,24;92,61) para os mais velhos, com 60 anos ou mais, comparados aos mais novos, de 18 a 29 anos (Tabela 2).
Apresentar uma única morbidade aumentou em 49% (IC95% 1,36;1,64) a probabilidade de ser internado; e ter multimorbidade associou-se a um aumento de 2,66 vezes (IC95% 2,43;2,93) no mesmo desfecho, tendo como referência indivíduos sem nenhuma morbidade. Para internações em UTI, esse aumento foi de 65% (IC95% 1,42;1,92) entre aqueles com uma morbidade e 3,09 vezes maior (IC95% 2,65;3,60) em indivíduos com multimorbidade. Ter uma morbidade aumentou 78% (IC95% 1,54;2,05) a probabilidade de vir a óbito por COVID-19; ter multimorbidade aumentou essa probabilidade 3,63 vezes (IC95% 3,16;4,17), em comparação a não ter nenhuma morbidade (Tabela 2).
As análises de tendência sugeriram um efeito linear entre as variáveis ‘idade’, ‘escolaridade’ e ‘morbidade’, e os desfechos estudados. Para a variável ‘idade’, a prevalência de internações, internações em UTI e óbitos aumentou significativamente, com o passar dos anos de vida (p<0,001); o mesmo ocorreu para a variável ‘morbidade’, cujas prevalências dos desfechos aumentaram à medida que aumentava o número de morbidades (p<0,001); já para a variável ‘escolaridade’, a probabilidade dos desfechos revelou-se inversamente proporcional, sendo maior a prevalência de internação, internação em UTI e óbito por COVID-19 à medida que diminuía o nível de estudo escolar (p<0,001).
Morbidade | n (%) | Análise bruta | Análise ajustadaa | |||||
---|---|---|---|---|---|---|---|---|
Internação RP (IC95%) | Internação em UTI RP (IC95%) | Óbito RP (IC95%) | Internação RP (IC95%) | Internação em UTI RP (IC95%) | Óbito RP (IC95%) | |||
Doença pulmonar | ||||||||
Não | 100.093 (96,87) | 1,00 | 1,00 | 1,00 | 1,00 | 1,00 | 1,00 | |
Sim | 3.235 (3,13) | 2,28 (2,10;2,48) | 2,47 (2,19;2,79) | 3,13 (2,79;3,52) | 1,86 (1,65;2,09) | 2,02 (1,68;2,43) | 2,01 (1,70;2,36) | |
Neoplasias | ||||||||
Não | 102.966 (99,65) | 1,00 | 1,00 | 1,00 | 1,00 | 1,00 | 1,00 | |
Sim | 363 (0,35) | 5,29 (4,85;5,78) | 3,49 (2,93;4,17) | 8,89 (7,88;10,04) | 2,76 (2,23;3,41) | 1,72 (1,10;2,68) | 3,15 (2,41;4,13) | |
Doença cardiovascular | ||||||||
Não | 83.249 (80,55) | 1,00 | 1,00 | 1,00 | 1,00 | 1,00 | 1,00 | |
Sim | 20.100 (19,45) | 3,56 (3,40;3,73) | 4,37 (4,07;4,69) | 5,92 (5,52;6,35) | 1,16 (1,07;1,26) | 1,34 (1,18;1,52) | 1,36 (1,21;1,52) | |
Doença renal | ||||||||
Não | 102.555 (99,23) | 1,00 | 1,00 | 1,00 | 1,00 | 1,00 | 1,00 | |
Sim | 793 (0,77) | 5,85 (5,38;6,36) | 6,45 (5,67;7,34) | 9,46 (8,38;10,67) | 2,81 (2,41;3,27) | 2,90 (2,28;3,69) | 3,42 (2,81;4,15) | |
Diabetes mellitus | ||||||||
Não | 95.523 (92,44) | 1,00 | 1,00 | 1,00 | 1,00 | 1,00 | 1,00 | |
Sim | 7.810 (7,56) | 3,82 (3,63;4,02) | 4,65 (4,33;5,00) | 6,02 (5,61;6,47) | 1,73 (1,60;1,88) | 2,04 (1,81;2,30) | 2,07 (1,86;2,30) | |
Tabagismo | ||||||||
Não | 101.424 (98,16) | 1,00 | 1,00 | 1,00 | 1,00 | 1,00 | 1,00 | |
Sim | 1.905 (1,84) | 2,68 (2,44;2,96) | 3,13 (2,74;3,58) | 3,40 (2,95;3,91) | 1,72 (1,50;1,97) | 1,94 (1,59;2,38) | 1,72 (1,42;2,08) | |
Obesidade | ||||||||
Não | 99.268 (96,18) | 1,00 | 1,00 | 1,00 | 1,00 | 1,00 | 1,00 | |
Sim | 3940 (3,82) | 2,00 (1,85;2,18) | 1,96 (1,73;2,22) | 2,48 (2,20;2,79) | 1,81 (1,62;2,02) | 1,72 (1,44;2,06) | 2,03 (1,74; 2,36) | |
Infecção pelo HIV | ||||||||
Não | 103.126 (99,80) | 1,00 | 1,00 | 1,00 | 1,00 | 1,00 | 1,00 | |
Sim | 209 (0,20) | 3,39 (2,66;4,32) | 3,44 (2,39;4,97) | 2,93 (1,88;4,56) | 3,18 (2,28;4,43) | 3,34 (1,98;5,62) | 2,40 (1,26;4,57) | |
Doenças neurológicas | ||||||||
Não | 102.495 (99,19) | 1,00 | 1,00 | 1,00 | 1,00 | 1,00 | 1,00 | |
Sim | 839 (0,81) | 4,44 (4,01;4,92) | 4,15 (3,52;4,89) | 7,50 (6,57;8,57) | 1,96 (1,64;2,34) | 1,41 (1.02;1,96) | 2,38 (1,92;2,94) |
a) Ajustada para sexo, raça/cor da pele, idade e escolaridade
A Tabela 3 apresenta os riscos de desfechos desfavoráveis de acordo com as morbidades notificadas, após análise ajustada para potenciais fatores de confusão. Todas as morbidades foram significativamente associadas a maiores riscos de internação, internação em UTI e óbito, sendo a infecção pelo HIV (RP=2,40 - IC95% 1,26;4,57), neoplasias (RP=3,15 - IC95% 2,41;4,13) e doença renal (RP=3,42 - IC95% 2,81;4,15) as que levaram a maior risco de óbito por COVID-19.
Discussão
Os resultados do estudo revelaram que idade avançada (60 anos ou mais), sexo masculino, baixa escolaridade, raça/cor da pele amarela e preta, presença de morbidade e multimorbidade foram condições associadas a um maior risco de internações, internações em UTI e mortalidade por COVID-19, enquanto ser do sexo feminino apontou um efeito protetor. Duas revisões sistemáticas recentes encontraram no sexo masculino, idade avançada e comorbidades, fortes evidências de associação com a gravidade e pior prognóstico para COVID-19.4,11
Assim como em outros estudos, a chance de desfechos negativos relacionados a COVID-19, com risco de óbito, foi maior para o sexo masculino.12,13 Na Itália, riscos menores de mortalidade também foram relatados em indivíduos do sexo feminino.14 Até o momento, acredita-se que as diferenças nos níveis e tipos de hormônios sexuais circulantes, entre indivíduos do sexo masculino e do sexo feminino, podem influenciar a suscetibilidade à infecção por SARS-CoV-2. Estudo anterior mostrou que os hormônios sexuais modulam as respostas da imunidade adaptativa e inata.13
Menor letalidade e outros desfechos negativos podem estar associados a maior percepção dos sintomas da doença e rápida procura por serviços de saúde, tratando-se do sexo feminino. Indivíduos do sexo masculino tendem a buscar os serviços de saúde apenas nas fases mais graves da doença, quando geralmente são menores os recursos terapêuticos.12,15
Embora a COVID-19 tenha sido considerada, inicialmente, uma grande equalizadora, necessitando de medidas de distanciamento físico em todo o mundo, está cada vez mais demonstrado que as desigualdades sociais na saúde impactam a morbidade e mortalidade pela doença.16 Nos Estados Unidos, a taxa de infecção por SARS-CoV-2 é três vezes maior em condados predominantemente negros, relativamente a condados predominantemente brancos; e a taxa de mortalidade, seis vezes maior.17 Maiores riscos de internação, internação em UTI e óbito foram identificados em pessoas pretas, pardas e amarelas. Essa diferença não foi encontrada em pessoas indígenas, provavelmente pelo pequeno número de pessoas classificadas nesse grupo.
No Reino Unido, um estudo demonstrou que, no controle por idade, negros tiveram 4,3 vezes mais probabilidade de morrer por COVID-19 do que brancos. Estes dados também revelam que, na comparação com brancos, os bangladeshis, paquistaneses, indianos e pessoas de etnias mistas estão sob maior risco de morrer por COVID-19.18
Acredita-se que os determinantes sociais subjacentes às condições de saúde que afetam essas populações tornam-nas mais vulneráveis ao vírus. Esses determinantes incluem - mas não se limitam a - menor acesso à saúde, insegurança econômica, vizinhança e condições de moradia precárias, além da menor disponibilidade de recursos.19
Raça e etnia, por sua vez, estão inextricavelmente ligadas à posição socioeconômica. Pessoas autodeclaradas não brancas são desproporcionalmente representadas nos segmentos sociais de renda mais baixa ou menos educação.20 Menor renda e menor nível educacional resultam em condições de habitação mais precárias, menos facilidade para adquirir alimentos saudáveis, empregos com salários mais baixos e pior acesso a cuidados de saúde, entre outras situações que afetam a transmissão de COVID-19 e suas complicações.
O presente estudo encontrou prevalências mais altas de desfechos negativos entre indivíduos de raça/cor da pele preta/amarela/parda/indígena e nas categorias mais baixas de escolaridade. Isto reforça, fortemente, o argumento de que os determinantes da saúde devem estar no centro das políticas de abordagem da COVID-19. Medidas de distanciamento físico, necessárias para prevenir a disseminação da COVID-19, são substancialmente mais difíceis para aqueles cujos determinantes sociais são mais adversos.16 Outrossim, muitos que não podem trabalhar em casa, frequentemente, dependem do transporte público para comparecer ao trabalho, aumentando ainda mais o risco de transmissão do SARS-CoV-2.20 Estudo de Baqui et al.,7 também realizado no Brasil, demonstrou que o fator ‘etnicidade’ (por exemplo, ser de raça/cor da pele preta ou parda) é o segundo fator de risco mais importante para o desfecho de mortalidade, atrás apenas do fator ‘idade’, reforçando a relevância dos determinantes sociais.
Este estudo constatou probabilidades mais altas de desfechos negativos de saúde com o avançar da idade. Tais achados estão parcialmente de acordo com a revisão anterior.21 Uma metanálise recente confirmou que idade avançada (65 anos) foi associada à morte em indivíduos com COVID-19.13,22 No Brasil, estima-se que pelo menos 34 milhões de indivíduos com 50 anos ou mais apresentem alguma morbidade associada ao risco de desenvolvimento de formas clinicamente graves da COVID-19.23
Uma metanálise11 apontou que a presença de comorbidades leva a um maior risco de desenvolver eventos graves quando se está infectado pelo SARS-CoV-2, ou seja, admissão na UTI, intubação e mortalidade. Outra metanálise,24 sobre o impacto das doenças cardiovasculares na COVID-19, encontrou que a hipertensão e as doenças cerebrocardiovasculares tiveram um impacto estatisticamente significativo na admissão em UTI.
Um estudo realizado na China constatou que indivíduos com pelo menos uma comorbidade eram mais velhos (idade média de 60,8 anos versus 44,8 anos), e ter pelo menos uma comorbidade foi comumente mais observada em casos graves, comparados aos não graves (32,8% versus 10,3%). Além disso, indivíduos com multimorbidades tiveram riscos significativamente mais altos de alcançar um desfecho negativo (admissão em UTI, ventilação invasiva ou morte), na comparação com aqueles que tinham uma única comorbidade; e risco ainda maior, frente àqueles sem comorbidades.25
Conforme apresentado neste estudo, pessoas portadoras de doenças crônicas estão sob maior risco de desfechos desfavoráveis por COVID-19, mesmo após controle para potenciais fatores de confusão como idade, sexo e escolaridade. As evidências, até então, apontam para um risco significativamente maior de complicações e morte por COVID-19 em pessoas com certas morbidades. Estudo de casos registrados na China mostrou que a letalidade geral da doença foi de 2,3%, mais elevada entre os grupos de pessoas com morbidades preexistentes: 10,5% para doença cardiovascular, 7,3% para diabetes mellitus, 6,3% para doença respiratória crônica, 6,0% para hipertensão e 5,6% para neoplasias.26
A obesidade não foi estudada como um potencial fator de complicações de COVID-19 nos primeiros estudos realizados, sendo a hipótese considerada mais tardiamente.26,27 Na China, entre 383 indivíduos analisados, o sobrepeso foi associado a um risco 86% maior e a obesidade a um risco 142% maior de desenvolver pneumonia grave, na comparação com indivíduos eutróficos, mesmo após controle para potenciais fatores de confusão.28 Estudo com 4.103 indivíduos norte-americanos mostrou que ter IMC>40kg/m2 foi o segundo preditor independente mais forte de hospitalização, depois da velhice.29 Ter IMC>35kg/m2 também foi associado a maiores chances de ventilação mecânica invasiva, independentemente de outras comorbidades.30
Desde que munida de evidências, uma investigação cuidadosa sobre o histórico médico durante a triagem de indivíduos com COVID-19 deve ser priorizada, contribuindo para a identificação daqueles com maior probabilidade de desenvolver resultados adversos graves de COVID-19. Maior atenção deve ser dada aos indivíduos com COVID-19 que apresentavam comorbidades, quando confirmado o diagnóstico. Identificar essas pessoas pode ajudar na estratificação pelo nível de maior risco, permitindo uma abordagem direcionada e específica para a prevenção de eventos fatais.11 Os achados deste estudo evidenciam o quão frágil ainda é nosso Sistema Único de Saúde (SUS) na abordagem adequada às desigualdades sociais em saúde. A despeito dos avanços nos últimos anos, as persistentes desigualdades sociais e geográficas no acesso e utilização dos serviços do SUS tendem a impactar os desfechos de saúde nas populações mais vulneráveis, principalmente em situações de pandemia.
O estudo em tela pauta-se em um grande volume de observações; porém, apresenta limitações, muitas delas inerentes a pesquisas com dados secundários, como a possibilidade de erros de preenchimento e informações faltantes. A subnotificação de comorbidades, possivelmente atribuível à falta de conhecimento ou indisponibilidade de testes diagnósticos, pode favorecer uma superestimativa da força da associação com desfechos negativos, uma vez que, em indivíduos graves, essas informações costumam ser mais bem preenchidas. Outra limitação da pesquisa remete ao não relacionamento de seus dados com os do Sistema de Informações sobre Mortalidade (SIM) e, portanto, cabe considerar a possibilidade de subnotificação. Por fim, o estudo teve como data-limite para coleta do desfecho o período de 15 dias após a data de notificação, sendo que muitos desfechos, especialmente o óbito, podem ocorrer com um intervalo de tempo maior. Contudo, trata-se de um viés não diferencial, pois não existe base teórica ou evidências de que esse tempo, entre a notificação e o desfecho, seja diferente entre os diferentes grupos populacionais.
Os determinantes sociais da saúde devem ser incluídos entre as prioridades de pesquisa da pandemia e, em um sentido mais amplo, contemplados na definição dos objetivos da Saúde Pública e na implementação de políticas para o setor. Compreender como os determinantes sociais da saúde contribuem para a incidência, prevalência, tratamento e mortalidade associados à COVID-19 pode ajudar no desenvolvimento de intervenções mais eficazes, no sentido de mitigar a transmissão da doença.