Introdução
A sífilis congênita é um problema de Saúde Pública mundial, responsável por graves sequelas nos nascidos vivos, e óbitos fetais e infantis.1,2 Sua ocorrência reflete falhas na atenção à saúde materna e infantil, a despeito da doença poder ser prevenida, diagnosticada e tratada durante o acompanhamento pré-natal.3
Em 2016, estimou-se a ocorrência anual de aproximadamente meio milhão de óbitos fetais e infantis por sífilis congênita no mundo.4 Com o propósito de reduzir a mortalidade infantil, uma das metas inscritas nos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável, definidos na Assembleia Geral das Nações Unidas, é ter eliminado a sífilis congênita até 2030, reduzindo sua incidência ao patamar aceitável de 0,5 caso por 1 mil nascidos vivos.5
No Brasil, a incidência de sífilis congênita apresentou aumento contínuo, nas cinco grandes regiões do país, entre os anos de 2010 e 2015. O Nordeste e o Sudeste brasileiros obtiveram as maiores taxas de incidência, reportando 2,7 e 6,9 por 1 mil nascidos vivos, respectivamente. Também se observou, durante o mesmo período, aumento nas taxas médias de óbito infantil, aborto espontâneo e natimortos, por ano. Em 2016, as maiores taxas médias de mortalidade infantil por sífilis congênita foram encontradas no Norte (6,27 casos por 100 mil nascidos vivos), Sudeste (5,50 casos por 100 mil nascidos vivos) e Nordeste (5,28 casos por 100 mil nascidos vivos) do Brasil.6
O estado de Pernambuco registrou taxa de incidência de sífilis congênita de 11,8 casos por 1 mil nascidos vivos, superando a média nacional de 6,5 casos por 1 mil nascidos vivos em 2016. No Recife, a taxa de incidência de sífilis congênita foi de 29,1 casos por 1 mil nascidos vivos, a maior do estado naquele ano.7
A sífilis congênita é uma doença de notificação compulsória para todos os países-membros da Organização Mundial da Saúde (OMS), sendo obrigatória a comunicação dos casos às autoridades de saúde e a investigação de cada um. No Brasil, o monitoramento dos casos e óbitos por sífilis congênita é realizado pelo Sistema de Informação de Agravos de Notificação (Sinan) e pelo Sistema de Informações sobre Mortalidade (SIM).8
Estes sistemas disponibilizam informações sobre características dos casos notificados, assistência prestada ao paciente, causa básica ou associada ao óbito, permitindo a construção de importantes indicadores para o delineamento do perfil de saúde-doença de uma região.9 Entretanto, a falta de qualidade nos dados e a presença de subnotificações nos sistemas de informações em saúde subestimam a verdadeira magnitude de uma doença.10,11
A subnotificação de óbitos por sífilis congênita refere-se àquele caso suspeito ou confirmado que, uma vez reconhecido pelo profissional de saúde, não foi notificado à autoridade competente;7 ou indica que houve falhas no preenchimento dos campos obrigatórios das fichas de notificação e investigação; ou, ainda, problemas na identificação das causas básicas ou associadas ao óbito, na Declaração de Óbito (DO).12
Este estudo teve como objetivo estimar as subnotificações de óbitos fetais e infantis que tiveram a sífilis congênita como causa básica ou associada, ocorridos no Recife, estado de Pernambuco, Brasil, entre 2010 e 2016.
Métodos
Trata-se de estudo transversal, realizado no Recife, com dados secundários relativos ao período entre 2010 e 2016.
A cidade do Recife ocupa uma área de 218,435 km2, dividida em 94 bairros, por sua vez distribuídos entre oito distritos sanitários, todos incluídos no estudo. Em 2016, Recife contava com uma população estimada de 1.625.583 habitantes, dos quais 19.142 (1,2%) menores de 1 ano de idade.13 A rede municipal de saúde local destinada ao cuidado materno e infantil é composta por 122 unidades da Estratégia Saúde da Família (ESF), 268 equipes de ESF, quatro maternidades e um hospital pediátrico.14
As fontes de dados do estudo foram o Sinan e o SIM. No Sinan, principal instrumento de coleta dos dados de notificação compulsória, são inseridas as notificações de sífilis congênita com todas as informações sobre ocorrência de abortos, natimortos e nascidos vivos, permitindo o acompanhamento da evolução de cada caso. A partir dos dados registrados em cada notificação, é construída a base para os cálculos epidemiológicos e operacionais do país.7 O SIM, por sua vez, tem a Declaração de Óbito (DO) como documento principal, um valoroso dispositivo para o Sistema Nacional de Vigilância Epidemiológica, especialmente quando há falhas na captação de casos pelo Sinan.15
Foram analisadas todas as notificações de sífilis congênita no Sinan e registros de óbitos fetais e infantis do SIM. Inicialmente, aplicou-se o relacionamento entre as bases, do tipo probabilístico,16 utilizando-se o programa Reclink III versão 3.1.6.3160. Foram relacionados os casos notificados de sífilis congênita, registrados no Sinan, com os óbitos fetais e infantis registrados no SIM, que tiveram a sífilis congênita como causa básica ou associada (códigos compreendidos no intervalo de A50 a A50.9 da 10a Revisão da Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde, CID-10).
As variáveis empregadas no relacionamento probabilístico foram: nome do paciente; sexo; data de nascimento; nome da mãe; e bairro de residência. Registros sem nome foram excluídos.
Aplicou-se um conjunto de passos para a execução do relacionamento probabilístico, a saber:
padronização das variáveis nos bancos (foram retirados os acentos, gráficos, cedilhas, espaços e caracteres especiais; e foram mantidos formatos de campos idênticos em diferentes arquivos);
elaboração de blocos lógicos de registros (blocagem), justamente a criação de conjuntos comuns de registros a partir de códigos de identificação;
comparações aproximadas das cadeias de caracteres, visando controlar erros fonéticos e de grafia, mediante aplicação de algoritmos;
cálculo de escores que indicam o grau de concordância entre os pares de registros formados;
determinação de limiares para o relacionamento dos pares de registros, os quais foram classificados como verdadeiros, duvidosos e não pares; e
revisão e reclassificação dos pares duvidosos como verdadeiros ou não pares.
O cálculo do escore foi realizado pelo programa RecLink III. Os escores superiores a 21,7 foram considerados pares verdadeiros, e os inferiores a -6,9 não pares, permanecendo os escores intermediários como duvidosos. A revisão dos pares duvidosos foi realizada por dois pesquisadores, e em caso de discordância, um terceiro foi consultado, obedecendo-se ao seguinte critério de desempate: nome do paciente, nome da mãe e data de nascimento. Após a revisão, os pares duvidosos foram reclassificados em pares verdadeiros ou não pares.
Os limiares estabelecidos para o nome do paciente foram de 92% (probabilidade de acerto), 1% (probabilidade de erro) e 85% (concordância entre ambos os registros); e para data de nascimento, 90%, 5% e 65%, respectivamente. As chaves fonéticas do primeiro e último nomes (paciente e mãe), sexo e ano de nascimento serviram para a identificação de duplicidades nos bancos de dados do Sinan e do SIM. Durante a aplicação do método de relacionamento, registros de óbito foram vinculados a mais de uma notificação do mesmo indivíduo no Sinan. Para eliminar essas repetições, as notificações com data de diagnóstico mais recente foram excluídas.
Após a realização do relacionamento probabilístico, procedeu-se a busca manual entre os casos notificados de sífilis congênita no Sinan, com evolução para óbito pela mesma causa, e todos os registros de óbitos fetais e infantis do SIM, ocorridos no período do estudo. Esta etapa teve a finalidade de identificar as notificações com evolução para óbito por sífilis congênita, presentes no Sinan mas registradas no SIM como óbito por outra causa. Os dados foram analisados e tabulados pelo programa Epi Info versão 7.2.2.6.
O projeto da pesquisa foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos do Instituto de Medicina Integral Prof. Fernando Figueira (CEP/IMIP), mediante o Parecer nº 2.543.590, emitido em 14 de março de 2018, e contou com a anuência da Secretaria de Saúde do Recife para o acesso aos bancos de dados.
Resultados
Entre os anos de 2010 e 2016, foram notificados 2.983 casos de sífilis congênita no Sinan. Dessas notificações, 63 (2,2%) evoluíram para óbito. No mesmo período, identificaram-se 3.258 registros de óbitos fetais e infantis no SIM, sendo 241 (7,4%) por sífilis congênita.
Uma vez realizado o pareamento entre 170 (70,5%) notificações e registros de óbitos fetais e infantis por sífilis congênita, dos 241 óbitos fetais e infantis que tinham a doença como causa básica ou associada no SIM, 71 (29,5%) não foram notificados para sífilis congênita no Sinan (Figura 1). A busca manual, realizada entre as 63 notificações do Sinan com desfecho para óbito por sífilis congênita, e todos os óbitos fetais e infantis presentes no SIM, identificou 46 pares verdadeiros. Contudo, 17 notificações com esse desfecho, presentes no Sinan, não foram encontradas no SIM. Esse resultado permitiu observar que, dos 241 óbitos por sífilis congênita registrados no SIM, 46 (19,1%) apresentavam a notificação para sífilis congênita no Sinan com o preenchimento do desfecho do caso para óbito pela doença.
Os resultados demonstraram subnotificação nos dois sistemas (Tabela 1). No Sinan, 71 (29,5%) registros de óbitos não foram encontrados e 124 (51,4%) notificações de sífilis congênita não estavam classificadas com evolução para óbito pela doença. Somados os óbitos não notificados e as notificações sem evolução para óbito por sífilis congênita, verificou-se um total de 195 (80,9%) subnotificações de óbitos fetais e infantis por sífilis congênita no Sinan. Ademais, observou-se que 17 (7,0%) notificações presentes no Sinan, com evolução para óbito fetal ou infantil por sífilis congênita, não foram localizadas no SIM, dentro do período do estudo.
Verificou-se um incremento ao banco final do Sinan de 2,3%, de 2.983 para 3.054 notificações de sífilis congênita. Para o SIM, o acréscimo total foi de 7,0%, passando de 241 para 258 registros de óbitos fetais e infantis por/com sífilis congênita. Não se realizou teste estatístico para verificar a significância de tal acréscimo.
Subnotificações | Sinana N (%) | SIMb N (%) |
---|---|---|
Óbitos não notificados | 71 (29,5%) | 17 (7,0%) |
Notificações sem evolução para óbito por/com sífilis congênita | 124 (51,4%) | - |
Total de subnotificações | 195 (0,9%) | 17 (7,0%) |
Total de óbitos identificados no SIMb utilizados para os cálculos proporcionais de subnotificaçãoc | 241 |
a) Sinan: Sistema de Informação de Agravos de Notificação; b) SIM: Sistema de Informações sobre Mortalidade; c) Utilizou-se o total de óbitos que mencionavam a sífilis congênita como causa básica ou associada no SIM (N=241) para o cálculo proporcional de subnotificação de óbitos por sífilis congênita no Sinan e no SIM.
Discussão
Considerando-se os óbitos por sífilis congênita ocorridos em Recife entre os anos de 2010 e 2016, ao se relacionarem as bases de dados do Sinan e do SIM, foram identificados 71 casos registrados no SIM que não constavam no Sinan; e 17 casos notificados no Sinan, mas sem registro no SIM. Estes achados apontam para subnotificação de óbitos por sífilis congênita em ambos os sistemas. Proporcionalmente, o incremento de casos no Sinan (2,3%) foi menor que no SIM (7,0%).
Apesar do baixo número de casos acrescidos, cumpre destacar (i) o caráter prevenível da sífilis congênita durante a gestação e (ii) o fato de ser uma doença de notificação compulsória. A subnotificação observada no estudo reflete a fragilidade presente entre a assistência materna e infantil e a vigilância epidemiológica12 do município.
Verificou-se, como uma primeira limitação da pesquisa, o uso de dados secundários com falhas no processo de preenchimento de variáveis nos sistemas de informações, levando a possíveis erros, quando se espera maior exatidão, completude e confiabilidade dos dados. Essa limitação não só pode comprometer a qualidade dos registros, mas também acarretar vieses nos resultados obtidos. Apesar disso, a metodologia de relacionamento entre bases de dados, bastante utilizada para identificação de subnotificações nos sistemas de informações,8,13 não requer exatidão quanto aos valores das variáveis entre os registros pareados, minimizando o problema de não se encontrarem todos os dados de um mesmo paciente nas duas bases diferentes. Contudo, a incompletude das variáveis escolhidas para o relacionamento, bem como a presença de homônimos, pode ter reduzido o número de pares formados. A aplicação da técnica de relacionamento visa diminuir essas inconsistências nos sistemas de informações.
Outro fator limitante do estudo foi a não integração dos casos de sífilis em gestante, notificados no Sinan, o que pode subestimar os óbitos fetais e infantis por sífilis congênita. No entanto, os dados contidos nas notificações de sífilis em gestante são limitados, quando comparados aos presentes na notificação de sífilis congênita.
O óbito por sífilis congênita é considerado um evento sentinela da assistência pré-natal,17 conceito que demonstra a possibilidade de evitar o óbito, mediante ações eficazes nos serviços de saúde, e a importância de sua notificação/investigação ser realizada pela vigilância epidemiológica, no sentido de serem propostas medidas de prevenção.
O encontro de subnotificações relacionadas ao desfecho dos casos no Sinan reflete a baixa qualidade dos dados inseridos,18,19 dificultando uma análise confiável sobre a morbimortalidade por sífilis congênita no município. A principal função dos dados sobre doenças é fornecer um arcabouço para a implementação de políticas de promoção e proteção da saúde da população, além de prover informações para a vigilância e análises epidemiológicas.20
Importante ressaltar que a investigação dos casos notificados de sífilis congênita é realizada pela vigilância epidemiológica, e a variável ‘evolução do caso’, presente na ficha de notificação/investigação da sífilis congênita, é de preenchimento obrigatório. A existência de subnotificações relacionadas ao desfecho dos casos reforça a importância da fidedignidade no repasse dos dados às fichas de notificação/investigação, e na informação transmitida ao Sinan.21 Acima de tudo, essa constatação aponta para a necessidade de fortalecer as vigilâncias epidemiológicas municipais no monitoramento permanente dos casos notificados de sífilis congênita, sendo essa ação conjunta essencial para que o Brasil encontre o caminho do cumprimento dos objetivos de eliminação da sífilis congênita.21,22
Resultados semelhantes foram identificados em outras cidades brasileiras, onde a subnotificação de óbitos fetais e infantis por sífilis congênita variou entre 67% e 90%.8,13,23 Esta variação nas proporções de subnotificação de óbitos no Sinan dificulta as análises de indicadores de mortalidade por sífilis congênita, mascarando o real conhecimento desse desfecho.24 No Sinan, tanto a não notificação como o não preenchimento da evolução dos casos para óbito por sífilis congênita, identificados neste estudo, implicam consequências na eficácia das ações de controle, sobretudo porque o sistema é o principal instrumento de coleta de dados utilizado pela vigilância epidemiológica.
A subnotificação de registros de óbitos fetais e infantis por sífilis congênita no SIM também foi observada em outra pesquisa que utilizou a técnica de relacionamento entre Sinan e SIM.25 Estudos apontam que uma das causas associadas à subnotificação encontrada no SIM é a qualidade de preenchimento da DO. Encarregado a um profissional médico, o preenchimento da DO mostra-se insatisfatório, seja no registro das variáveis, seja na definição da causa básica ou associada ao óbito.26,27
A subnotificação de óbitos fetais e infantis no SIM pode ser minimizada com a análise dos dados pelos Comitês de Prevenção do Óbito Infantil e Fetal. Estes comitês devem incluir a sífilis congênita como uma das causas de morte se a mãe ou a criança tiverem sido diagnosticadas com a doença, e notificar o caso no Sinan.23 A Vigilância do Óbito Infantil e Fetal, estratégia implantada no Brasil em 2010, tem como um de seus atributos melhorar a qualidade dos registros de óbitos fetais e infantis a partir da sua investigação.8 Ao atuar em conjunto com a assistência à saúde, a vigilância abrange os processos de notificação, investigação, discussão e classificação da evitabilidade desses óbitos, contribuindo para a veracidade das informações repassadas aos sistemas de informações.17
Algumas lacunas podem explicar a não identificação, no SIM, de notificações com evolução para óbito no Sinan: falhas no processo de relacionamento, erros de digitação na variável ‘encerramento do caso’ e probabilidade de o óbito ter ocorrido em outro município. Existe, portanto, a possibilidade de esses casos de sífilis congênita não terem o óbito como desfecho. A existência de subnotificação no SIM não apenas contribui para o não conhecimento dos casos fatais por sífilis congênita - ela colabora para sua invisibilidade, conquanto poderia fundamentar as tomadas de decisão da gestão em saúde municipal.23,28
O relacionamento dos bancos de dados, realizado neste estudo, permitiu o incremento de notificações de óbitos por sífilis congênita em ambos os sistemas de informações: o Sinan teve um acréscimo em seu banco de 2,3%, enquanto o SIM, de 7,0%. Variações como essas também foram identificadas em outros estudos, que utilizaram a técnica de relacionamento entre bancos de dados com o propósito de melhorar as informações contidas nesses sistemas.23,25
Os resultados apresentados indicam subnotificações de óbitos fetais e infantis por sífilis congênita nas bases de dados do Sinan e do SIM na cidade do Recife. O relacionamento probabilístico mostrou-se uma técnica de fácil acesso e baixo custo operacional, possível de ser empregada na rotina dos serviços de vigilância da sífilis. Essa prática pode facilitar o monitoramento das subnotificações e contribuir para a qualidade das informações utilizadas, de forma a subsidiar a implantação de políticas públicas e estratégias de prevenção da sífilis congênita.