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Epidemiologia e Serviços de Saúde

versão impressa ISSN 1679-4974versão On-line ISSN 2237-9622

Epidemiol. Serv. Saúde vol.30 no.3 Brasília set. 2021  Epub 13-Ago-2021

http://dx.doi.org/10.1590/s1679-49742021000300007 

ARTIGO ORIGINAL

Casos de violência contra pessoas com deficiência notificados por serviços de saúde brasileiros, 2011-2017*

Casos de violencia contra personas con discapacidad notificados por los servicios de salud brasileños, 2011-2017

Nicole Freitas de Mello (orcid: 0000-0002-5228-6691)1  , Éverton Luís Pereira (orcid: 0000-0002-7771-1594)2  , Vinícius Oliveira de Moura Pereira (orcid: 0000-0002-0529-7603)3  , Leonor Maria Pacheco Santos (orcid: 0000-0002-6739-6260)2 

1Fundação Oswaldo Cruz, Escola Fiocruz de Governo, Brasília, DF, Brasil

2Universidade de Brasília, Departamento de Saúde Coletiva, Brasília, DF, Brasil

3Universidade de Brasília, Programa de Pós-Graduação em Ciências e Tecnologias em Saúde, Brasília, DF, Brasil

Resumo

Objetivo:

Descrever os casos de violência contra pessoas com deficiência notificados por serviços de saúde brasileiros, em 2011-2017.

Métodos:

Estudo descritivo de dados secundários das notificações de violência contra pessoas com deficiência no Sistema de Informação de Agravos de Notificação (Sinan).

Resultados:

Foram registrados 116.219 casos de violência contra pessoas com deficiência no período. A maioria das vítimas era do sexo feminino (67%), branca (50,7%), na idade de 20 a 59 anos (61,6%), com deficiência mental (58,1%), sendo frequente a ocorrência de múltipla deficiência (15,9%), especialmente mental e intelectual. A violência autoprovocada correspondeu a 44,5% das notificações, enquanto a violência física foi a mais notificada (51,6%); em 36,5% das notificações, o provável agressor era um membro da família.

Conclusão:

A descrição dos casos de violência contra pessoas com deficiência, notificados por serviços de saúde brasileiros, pode contribuir para a formulação e aprimoramento de políticas públicas voltadas a esse importante problema.

Palavras-chave: Violência; Pessoas com Deficiência; Serviços de Saúde; Notificação; Sistemas de Informação em Saúde; Epidemiologia Descritiva.

Resumen

Objetivo:

Describir los casos de violencia contra personas con discapacidad notificados por servicios de salud brasileños en el período 2011 - 2017.

Métodos:

Estudio descriptivo de datos secundarios de notificaciones de violencia contra personas con discapacidad registradas en el Sistema de Información de Agravamiento de Notificación (Sinan).

Resultados:

En el período se registraron 116.219 casos de violencia contra personas con discapacidad. La mayoría de las víctimas eran mujeres (67%), blancas (50,7%), entre 20 y 59 años (61,6%) con discapacitad mental (58,1%), y con discapacidades múltiples, que ocurren con frecuencia (15,9%), especialmente mental e intelectual. La violencia autoinfligida representó el 44,5% de las notificaciones. La violencia física fue la más denunciada (51,6%) y en el 36,5% de las notificaciones, el probable agresor fue un miembro de la familia.

Conclusión:

La descripción de casos de violencia contra personas con discapacidad notificados por los servicios de salud puede contribuir a la formulación y mejora de las políticas públicas para enfrentar este importante problema.

Palabras clave: Violencia; Personas con Discapacidad; Servicios de Salud; Notificación; Sistemas de Información en Salud; Epidemiología Descriptiva.

Introdução

A violência afeta a vida de milhões de pessoas e gera importantes consequências,1 destacando-se, entre suas vítimas, as pessoas com deficiência, que representam cerca de 15% da população global.2

Estima-se que pessoas com deficiência apresentem probabilidade 50% maior de sofrer violência, comparadas às pessoas sem deficiência.3,4 Tamanha desproporção deve-se à assimetria nas relações de poder a que se submetem, sob grande vulnerabilidade, os que se encontram nessa condição.5,6

A notificação da violência contra pessoas com deficiência é uma exigência legal, cujo propósito é dar visibilidade a esse complexo problema e fortalecer a luta pela equidade nas políticas públicas.7 Nesse contexto, diversos instrumentos foram construídos para enfrentar a violência contra essas pessoas, destacando-se: a Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência,8 realizada em 2007; a Política Nacional de Saúde da Pessoa com Deficiência,9 instituída em 2010; e a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência, de 2015.10

Diante da relevância do tema, do ineditismo dos estudos sobre a violência contra pessoas com deficiência, até então, e de maneira a subsidiar as políticas públicas destinadas a abordar, prevenir e assistir as vítimas e os agentes dessa forma de violência, o presente estudo objetivou descrever os casos de violência contra pessoas com deficiência notificados por serviços de saúde brasileiros no período de 2011 a 2017.

Métodos

Trata-se de um estudo epidemiológico descritivo dos casos de violência contra pessoas com deficiência, notificados em serviços de saúde brasileiros entre 2011 - 2017.

Os dados da pesquisa foram extraídos do Sistema de Informação de Agravos de Notificação (Sinan), no qual são compiladas as informações constantes das Fichas de Notificação Individual de Violência Interpessoal e Autoprovocada preenchidas nos serviços de saúde. Desde 2011, essa forma de violência passou a integrar a lista de notificação compulsória recomendada e adotada em todos os serviços de saúde do país.7

Foram definidas as seguintes variáveis para análise, referentes a:

  • a) Vítima

  • - Sexo (masculino ou feminino; foram desconsideradas as notificações com informação inválida ou em branco);

  • - Raça/cor da pele (branca, negra, amarela ou indígena; foram agregadas como ‘negra’ as categorias preta e parda);

  • - Faixa etária (em anos: até 9; 10-19; 20-59; 60 e mais);

  • - Tipo de deficiência (mental, intelectual, física, sensorial ou outras deficiências; foram agregadas como ‘deficiência mental’ as categorias ‘transtorno mental’ e ‘transtorno de comportamento’, e como ‘deficiência sensorial’, as categorias ‘deficiência visual’ e ‘deficiência auditiva’).

  • b) Evento

  • - Violência autoprovocada (sim ou não; foram considerados os casos em que a pessoa atendida/vítima provocou agressão contra si mesma ou tentou o suicídio, ou seja, atentou contra a própria vida, porém sem consumação);7

  • - Natureza da violência (violência física; violência psicológica/moral; negligência/abandono; violência sexual; violência financeira/econômica; tortura; intervenção legal; trabalho infantil; tráfico de seres humanos; outros tipos de violência);

  • - Violência de repetição (sim ou não).

  • c) Provável agressor

  • - Vínculo do provável agressor (familiar; parceiro íntimo; amigo/conhecido; outros vínculos; desconhecido);

  • - Sexo do provável autor (masculino; feminino; ambos os sexos);

  • - Suspeita de uso de álcool pelo provável agressor (sim ou não).

Foram utilizadas as tipologias de deficiência/transtorno e de violência apresentadas no documento VIVA - material instrutivo de notificação de violência interpessoal e autoprovocada, elaborado e publicado pelo Ministério da Saúde do Brasil.7

Realizou-se o teste qui-quadrado de Pearson para avaliar diferenças entre as proporções das variáveis segundo o sexo. As análises estatísticas foram realizadas pelo programa SPSS, em sua versão 21.0.

O projeto do estudo, fundamentado em dados secundários anônimos, foi dispensado de apreciação por Comitê de Ética em Pesquisa.

Resultados

No Brasil, no período de 2011 a 2017, foram notificados 1.429.931 casos de violência interpessoal ou autoprovocada, sendo 116.219 (8,1%) violências contra pessoas com deficiência.

Os casos notificados concentraram-se no sexo feminino (66,7%). Metade das vítimas (50,7%) eram de raça/cor da pele branca e 61,6% tinham entre 20 e 59 anos de idade. A deficiência mental foi a mais frequente, entre os tipos de deficiência objeto deste estudo (58,1%), seguida da deficiência intelectual (22,1%) (Tabela 1).

Não se encontrou registro da tipologia de deficiência da vítima em 5.855 notificações (5,0%), enquanto 18.486 (15,9%) referiam pessoas com múltiplas deficiências, destacando-se 8.405 casos de sobreposição entre deficiência mental e deficiência intelectual.

A violência autoprovocada entre pessoas com deficiência correspondeu a 44,5% das notificações. Quanto à violência interpessoal, a violência física foi a mais notificada (51,6%), destacando-se, também, a violência psicológica/moral (23%) e a negligência/abandono (15,0%); além da violência sexual (12,2%), contra mulheres especialmente. Mais da metade das notificações (51,7%) referiu violência recorrente, sendo a maioria de suas vítimas mulheres (54,6%) (Tabela 2).

Os principais prováveis agressores foram familiares (36,5%), seguidos de parceiros íntimos (21,5%). A maior proporção de agressores foi do sexo masculino (60,2%). Na maioria dos casos, não havia suspeita de uso de álcool (48,0%) (Tabela 3).

Tabela 1 - Distribuição das notificações de violência contra pessoas com deficiência (n=116.219), de acordo com características da vítima, Brasil, 2011-2017 

Características da vítima Masculino Feminino Total p-valora
N % N % N %
Raça/cor da pele
Branca 19.153 49,5 39.757 51,3 58.910 50,7 <0,001
Negra 15.528 40,2 30.542 39,4 46.070 39,6
Amarela 254 0,7 548 0,7 802 0,7
Indígena 207 0,5 345 0,4 552 0,5
Em branco/ignorado 3.522 9,1 6.354 8,2 9.876 8,5
Faixa etária (anos)
0-9 3.814 9,9 3.287 4,2 7.101 6,1 <0,001
10-19 8.591 22,2 14.870 19,2 23.461 20,2
20-59 20.671 53,5 50.901 65,6 71.572 61,6
60 e mais 5.559 14,3 8.436 10,9 13.995 12,0
Em branco/ignorado 29 0,1 52 0,1 81 0,1
Tipo de deficiênciab
Mental 21.824 56,4 45.692 58,9 67.516 58,1 <0,001
Intelectual 8.654 22,4 17.013 21,9 25.667 22,1 0,086
Física 5.894 15,2 8.756 11,3 14.651 12,6 <0,001
Sensorial 3.085 8,0 5.802 7,5 8.887 7,6 0,003
Outras deficiências 5.081 13,1 10.130 13,1 15.211 13,1 0,710

a) Teste qui-quadrado de Pearson; b) Não totaliza 100% porque se trata de variável com múltipla resposta.

Tabela 2 - Distribuição das notificações de violência contra pessoas com deficiência (n=116.219), de acordo com características do evento, Brasil, 2011-2017 

Características do evento Masculino (N=38.664; 33%) Feminino (N=77.546; 67%) Total (N=116.219; 100%) p-valora
N % N % N %
Violência autoprovocada
Sim 17.449 45,1 34.238 44,2 51.687 44,5 0,001
Não 18.675 48,3 38.306 49,3 56.981 49,0
Em branco/ignorado 2.540 6,6 5.002 6,5 7.542 6,5
Natureza da violênciab
Violência física 20.108 52,0 39.866 51,4 59.974 51,6 0,107
Violência psicológica/moral 6.705 17,3 19.994 25,8 26.699 23,0 <0,001
Negligência/abandono 8.220 21,3 9.247 11,9 17.467 15,0 <0,001
Violência sexual 2.295 5,9 11.877 15,3 14.172 12,2 <0,001
Violência financeira/econômica 1.088 2,8 2.424 3,1 3.512 3,0 0,003
Tortura 935 2,4 2.549 3,3 3.484 3,0 <0,001
Intervenção legal 173 0,4 221 0,3 394 0,3 <0,001
Trabalho infantil 131 0,3 97 0,1 228 0,2 <0,001
Tráfico de seres humanos 17 0,0 56 0,1 73 0,1 <0,001
Outros tipos de violência 9.617 24,9 20.902 27,0 30.519 26,3 <0,001
Violência de repetição
Sim 17.737 45,9 42.309 54,3 60.046 51,7 <0,001
Não 12.430 32,1 21.776 28,1 34.206 29,4
Em branco/ignorado 8.497 22,0 13.461 17,4 21.958 18,9

a) Teste qui-quadrado de Pearson; b) Não totaliza 100% porque se trata de variável com múltipla resposta.

Tabela 3 - Distribuição das notificações de violência contra pessoas com deficiência (n=116.219), de acordo com características do provável agressor, Brasil, 2011-2017 

Características do provável agressor Masculino (N=38.664; 33%) Feminino (N=77.546; 67%) Total (N=116.219; 100%) p-valora
N % N % N %
Familiar 10.172 46,7 14.225 31,5 24.397 36,4 <0,001
Parceiro íntimo 1.612 7,4 12.772 28,3 14.384 21,5 <0,001
Amigo/conhecido 4.169 19,1 7.319 16,2 11.488 17,2 <0,001
Outros vínculos 3.251 14,9 5.759 12,8 9.010 13,5 <0,001
Desconhecido 2.582 11,9 5.033 11,2 7.615 11,4 0,054
Total 21.786 100,0 45.108 100,0 66.894 100,0 -
Sexo do provável autorb
Masculino 26.136 67,6 30.573 39,4 56.709 48,8 <0,001
Feminino 4.987 12,9 37.243 48,0 42.230 36,3
Ambos os sexos 3.875 10,0 4.330 5,6 8.205 7,1
Em branco/ignorado 3.666 9,5 5.400 7,0 9.066 7,8
Suspeita de uso de álcool pelo provável agressor
Sim 8.696 22,5 17.211 22,2 25.907 22,3 <0,001
Não 17.492 45,2 38.280 49,4 55.772 48,0
Em branco/ignorado 12.476 32,3 22.055 28,4 34.531 29,7

a) Teste qui-quadrado de Pearson; b) Incluídos os casos de violência autoprovocada.

Nota: O caráter ‘familiar’ do agressor inclui pai, mãe, padrasto, madrasta, irmão(ã) e filho(a); amigos/conhecidos incluem amigos/conhecidos, cuidadores, patrão/chefe; parceiros íntimos incluem cônjuge, ex-cônjuge, namorado(a) e ex-namorado(a); outros vínculos incluem pessoa com relação institucional, policial/agente da lei e outros, não especificados.

Discussão

A maioria dos casos de violência contra pessoas com deficiência notificados em serviços de saúde brasileiros, no período de 2011 a 2017, referiu-se a vítimas do sexo feminino, pessoas brancas, adultos, com deficiência mental, sendo frequente a ocorrência de múltipla deficiência, especialmente mental e intelectual. Destacaram-se as notificações de violência autoprovocada e violência física, além de o principal provável agressor ser um membro da própria família da vítima.

A principal limitação do estudo reside na possibilidade de subnotificação dos casos. As notificações analisadas significam uma aproximação, não a totalidade dos casos. Elas se limitam às pessoas em situação de violência que procuraram um serviço de saúde, foram atendidas e seus casos notificados pelos profissionais da unidade.11

Outra limitação da pesquisa é a fragilidade ou imprecisão das informações sobre tipologia de deficiência, tornando difícil a análise dos dados correspondentes a cada uma. No caso específico das deficiências mental e intelectual, diversas mudanças nessas definições ao longo dos anos - e da história - levaram a uma possível confusão entre as terminologias usadas;12,13 além da qualidade da informação produzida, por vezes incompleta ou com erros.

A violência contra pessoas com deficiência ocorreu mais frequentemente no sexo feminino, corroborando os achados da literatura.3,14,15 Percebeu-se que a sobreposição de vulnerabilidades da deficiência, raça/cor/etnia, classe social e faixa etária pode tornar algumas pessoas ainda mais propensas a sofrer violência.14,16

As notificações indicaram pessoas com deficiência em situação de violência predominantemente de raça/cor da pele branca. Contudo, existe a possibilidade de subnotificação, resultante, por exemplo, do menor acesso da população negra aos serviços de saúde, ademais da naturalização da violência nessa mesma população.17 O alto percentual de notificações sem informação de raça/cor da pele também poderia influenciar a análise em tela.

Essa subnotificação ainda pode ser importante para as faixas etárias mais vulneráveis, como idosos e crianças. Estes costumam apresentar maior grau de dependência, mais dificuldades de acesso aos serviços de saúde e impedimentos outros; ou, simplesmente, resistência à comunicação do ocorrido, sobretudo quando o agressor é o próprio acompanhante, pai e/ou mãe da vítima.3

As principais deficiências relatadas foram a mental e a intelectual, semelhantemente ao observado na literatura.2,3,18 A maior exposição a diferentes tipos de violência, entre as crianças e jovens com deficiência mental ou múltiplas deficiências, justificar-se-ia na dificuldade de manejo dessas pessoas em suas atividades diárias, e também, na atenção prestada pelos cuidadores.18

A grande proporção de notificações de violência autoprovocada em pessoas com deficiência (44,5%), especialmente naquelas com deficiência mental, foi revelada em pesquisas e análises da relação entre deficiência mental, violência autoprovocada e suicídio. Segundo esses estudos, a presença de um transtorno mental é um importante fator de risco para o suicídio.19-21

Quando alguém com deficiência apresenta dificuldade de comunicação, seu responsável ou cuidador é a pessoa indicada a dar informações sobre ela.7 Nesses casos, é possível que parte das violências notificadas como autoprovocadas sejam, de fato, ocasionadas pelos próprios responsáveis/cuidadores.21

A maior notificação de violência física observada pode estar relacionada à presença de marcas corporais visíveis, de mais fácil identificação; o que não ocorre nas demais formas de violência, necessitadas de investigação mais detalhada.1,12

Destacou-se, ainda, a ocorrência de violência psicológica/moral e de violência sexual em mulheres com deficiência, além da violência de repetição, igualmente ratificadas pela literatura.15,22 Nesse contexto, a análise interseccional permitiu examinar e entender problemas transversais às mulheres com deficiência e vítimas de violência, incluindo questões sociais, atitudinais e assistenciais.23

Os prováveis perpetradores de violência contra pessoas com deficiência eram predominantemente do sexo masculino, com envolvimento próximo ou íntimo com as vítimas.3 Dada essa constatação, revela-se maior a dificuldade em visibilizar o problema, haja vista o caráter relacional da ocorrência, a menor autonomia da vítima para comunicar o evento ou, ainda, o estigma e o sentimento de vergonha da agressão sofrida.

Outra questão importante a ser apontada foi a identificação do cuidador (em muitos casos, um familiar) como agressor. A sobrecarga do trabalho de cuidar também pode gerar violências24 e, nesses casos, é importante o olhar atento dos profissionais de saúde para captar a violência oculta ou sublimada, prover o cuidado devido e o encaminhamento oportuno, de forma humanizada, dentro da rede de atenção à saúde e proteção social. Nesse sentido, urgem políticas de regulamentação, capacitação e fortalecimento do ato de cuidar, possibilitando a qualificação do cuidador da pessoa com deficiência.

Estados e municípios apresentam distintos níveis de cobertura do sistema de vigilância de violências e da rede de atenção à saúde da pessoa com deficiência. Somam-se a isso as dificuldades das famílias para buscar a garantia de seus direitos, o acesso aos serviços de saúde e, consequentemente, a notificação da violência que experimentam.11,25,26

O estudo revelou que a violência causa sérias consequências às pessoas que a vivenciam, representando um desafio ainda maior para as pessoas com deficiência quando enfrentam barreiras de diversas naturezas e sofrem todo tipo de discriminação, preconceito, estigma e opressão.1,2

Conclui-se que a descrição e avaliação dos casos de violência contra pessoas com deficiência, notificados por serviços de saúde brasileiros, pode contribuir para a formulação e aprimoramento de políticas públicas específicas sobre esse importante problema. Estudos futuros devem aprofundar o conhecimento e análise do tema.

Referências

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*Artigo derivado de dissertação de mestrado intitulada ‘Violência contra pessoas com deficiência: notificações realizadas por serviços de saúde brasileiros, 2011 a 2017’, defendida por Nicole Freitas de Mello junto ao Programa de Pós-Graduação em Políticas Públicas de Saúde da Fundação Oswaldo Cruz, em 2020.

3Editora associada: Suele Manjourany Duro - orcid.org/0000-0001-5730-0811

4Editora científica: Taís Freire Galvão - orcid.org/0000-0003-2072-4834

5Editora geral: Leila Posenato Garcia - orcid.org/0000-0003-1146-2641

Recebido: 23 de Setembro de 2020; Aceito: 19 de Janeiro de 2021

Endereço para correspondência: Nicole Freitas de Mello - Fundação Oswaldo Cruz, Escola Fiocruz de Governo, Programa de Pós-Graduação em Políticas Públicas de Saúde, Avenida L3 Norte, S/N, Campus Universitário Darcy Ribeiro, Gleba A, Brasília, DF, Brasil. CEP: 70904-130 E-mail:nfmello@hotmail.com

Contribuições dos autores

Mello NF contribuiu no delineamento, análise dos dados e redação do manuscrito. Pereira EL, Pereira VOM e Santos LMP contribuíram no delineamento, análise dos dados e revisão do manuscrito. Todos os autores aprovaram a versão final do manuscrito e são responsáveis por todos os seus aspectos, incluindo a garantia de sua precisão e integridade.

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