Introdução
A violência afeta a vida de milhões de pessoas e gera importantes consequências,1 destacando-se, entre suas vítimas, as pessoas com deficiência, que representam cerca de 15% da população global.2
Estima-se que pessoas com deficiência apresentem probabilidade 50% maior de sofrer violência, comparadas às pessoas sem deficiência.3,4 Tamanha desproporção deve-se à assimetria nas relações de poder a que se submetem, sob grande vulnerabilidade, os que se encontram nessa condição.5,6
A notificação da violência contra pessoas com deficiência é uma exigência legal, cujo propósito é dar visibilidade a esse complexo problema e fortalecer a luta pela equidade nas políticas públicas.7 Nesse contexto, diversos instrumentos foram construídos para enfrentar a violência contra essas pessoas, destacando-se: a Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência,8 realizada em 2007; a Política Nacional de Saúde da Pessoa com Deficiência,9 instituída em 2010; e a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência, de 2015.10
Diante da relevância do tema, do ineditismo dos estudos sobre a violência contra pessoas com deficiência, até então, e de maneira a subsidiar as políticas públicas destinadas a abordar, prevenir e assistir as vítimas e os agentes dessa forma de violência, o presente estudo objetivou descrever os casos de violência contra pessoas com deficiência notificados por serviços de saúde brasileiros no período de 2011 a 2017.
Métodos
Trata-se de um estudo epidemiológico descritivo dos casos de violência contra pessoas com deficiência, notificados em serviços de saúde brasileiros entre 2011 - 2017.
Os dados da pesquisa foram extraídos do Sistema de Informação de Agravos de Notificação (Sinan), no qual são compiladas as informações constantes das Fichas de Notificação Individual de Violência Interpessoal e Autoprovocada preenchidas nos serviços de saúde. Desde 2011, essa forma de violência passou a integrar a lista de notificação compulsória recomendada e adotada em todos os serviços de saúde do país.7
Foram definidas as seguintes variáveis para análise, referentes a:
a) Vítima
- Sexo (masculino ou feminino; foram desconsideradas as notificações com informação inválida ou em branco);
- Raça/cor da pele (branca, negra, amarela ou indígena; foram agregadas como ‘negra’ as categorias preta e parda);
- Faixa etária (em anos: até 9; 10-19; 20-59; 60 e mais);
- Tipo de deficiência (mental, intelectual, física, sensorial ou outras deficiências; foram agregadas como ‘deficiência mental’ as categorias ‘transtorno mental’ e ‘transtorno de comportamento’, e como ‘deficiência sensorial’, as categorias ‘deficiência visual’ e ‘deficiência auditiva’).
b) Evento
- Violência autoprovocada (sim ou não; foram considerados os casos em que a pessoa atendida/vítima provocou agressão contra si mesma ou tentou o suicídio, ou seja, atentou contra a própria vida, porém sem consumação);7
- Natureza da violência (violência física; violência psicológica/moral; negligência/abandono; violência sexual; violência financeira/econômica; tortura; intervenção legal; trabalho infantil; tráfico de seres humanos; outros tipos de violência);
- Violência de repetição (sim ou não).
c) Provável agressor
- Vínculo do provável agressor (familiar; parceiro íntimo; amigo/conhecido; outros vínculos; desconhecido);
- Sexo do provável autor (masculino; feminino; ambos os sexos);
- Suspeita de uso de álcool pelo provável agressor (sim ou não).
Foram utilizadas as tipologias de deficiência/transtorno e de violência apresentadas no documento VIVA - material instrutivo de notificação de violência interpessoal e autoprovocada, elaborado e publicado pelo Ministério da Saúde do Brasil.7
Realizou-se o teste qui-quadrado de Pearson para avaliar diferenças entre as proporções das variáveis segundo o sexo. As análises estatísticas foram realizadas pelo programa SPSS, em sua versão 21.0.
O projeto do estudo, fundamentado em dados secundários anônimos, foi dispensado de apreciação por Comitê de Ética em Pesquisa.
Resultados
No Brasil, no período de 2011 a 2017, foram notificados 1.429.931 casos de violência interpessoal ou autoprovocada, sendo 116.219 (8,1%) violências contra pessoas com deficiência.
Os casos notificados concentraram-se no sexo feminino (66,7%). Metade das vítimas (50,7%) eram de raça/cor da pele branca e 61,6% tinham entre 20 e 59 anos de idade. A deficiência mental foi a mais frequente, entre os tipos de deficiência objeto deste estudo (58,1%), seguida da deficiência intelectual (22,1%) (Tabela 1).
Não se encontrou registro da tipologia de deficiência da vítima em 5.855 notificações (5,0%), enquanto 18.486 (15,9%) referiam pessoas com múltiplas deficiências, destacando-se 8.405 casos de sobreposição entre deficiência mental e deficiência intelectual.
A violência autoprovocada entre pessoas com deficiência correspondeu a 44,5% das notificações. Quanto à violência interpessoal, a violência física foi a mais notificada (51,6%), destacando-se, também, a violência psicológica/moral (23%) e a negligência/abandono (15,0%); além da violência sexual (12,2%), contra mulheres especialmente. Mais da metade das notificações (51,7%) referiu violência recorrente, sendo a maioria de suas vítimas mulheres (54,6%) (Tabela 2).
Os principais prováveis agressores foram familiares (36,5%), seguidos de parceiros íntimos (21,5%). A maior proporção de agressores foi do sexo masculino (60,2%). Na maioria dos casos, não havia suspeita de uso de álcool (48,0%) (Tabela 3).
Características da vítima | Masculino | Feminino | Total | p-valora | |||||
---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|
N | % | N | % | N | % | ||||
Raça/cor da pele | |||||||||
Branca | 19.153 | 49,5 | 39.757 | 51,3 | 58.910 | 50,7 | <0,001 | ||
Negra | 15.528 | 40,2 | 30.542 | 39,4 | 46.070 | 39,6 | |||
Amarela | 254 | 0,7 | 548 | 0,7 | 802 | 0,7 | |||
Indígena | 207 | 0,5 | 345 | 0,4 | 552 | 0,5 | |||
Em branco/ignorado | 3.522 | 9,1 | 6.354 | 8,2 | 9.876 | 8,5 | |||
Faixa etária (anos) | |||||||||
0-9 | 3.814 | 9,9 | 3.287 | 4,2 | 7.101 | 6,1 | <0,001 | ||
10-19 | 8.591 | 22,2 | 14.870 | 19,2 | 23.461 | 20,2 | |||
20-59 | 20.671 | 53,5 | 50.901 | 65,6 | 71.572 | 61,6 | |||
60 e mais | 5.559 | 14,3 | 8.436 | 10,9 | 13.995 | 12,0 | |||
Em branco/ignorado | 29 | 0,1 | 52 | 0,1 | 81 | 0,1 | |||
Tipo de deficiênciab | |||||||||
Mental | 21.824 | 56,4 | 45.692 | 58,9 | 67.516 | 58,1 | <0,001 | ||
Intelectual | 8.654 | 22,4 | 17.013 | 21,9 | 25.667 | 22,1 | 0,086 | ||
Física | 5.894 | 15,2 | 8.756 | 11,3 | 14.651 | 12,6 | <0,001 | ||
Sensorial | 3.085 | 8,0 | 5.802 | 7,5 | 8.887 | 7,6 | 0,003 | ||
Outras deficiências | 5.081 | 13,1 | 10.130 | 13,1 | 15.211 | 13,1 | 0,710 |
a) Teste qui-quadrado de Pearson; b) Não totaliza 100% porque se trata de variável com múltipla resposta.
Características do evento | Masculino (N=38.664; 33%) | Feminino (N=77.546; 67%) | Total (N=116.219; 100%) | p-valora | |||||
---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|
N | % | N | % | N | % | ||||
Violência autoprovocada | |||||||||
Sim | 17.449 | 45,1 | 34.238 | 44,2 | 51.687 | 44,5 | 0,001 | ||
Não | 18.675 | 48,3 | 38.306 | 49,3 | 56.981 | 49,0 | |||
Em branco/ignorado | 2.540 | 6,6 | 5.002 | 6,5 | 7.542 | 6,5 | |||
Natureza da violênciab | |||||||||
Violência física | 20.108 | 52,0 | 39.866 | 51,4 | 59.974 | 51,6 | 0,107 | ||
Violência psicológica/moral | 6.705 | 17,3 | 19.994 | 25,8 | 26.699 | 23,0 | <0,001 | ||
Negligência/abandono | 8.220 | 21,3 | 9.247 | 11,9 | 17.467 | 15,0 | <0,001 | ||
Violência sexual | 2.295 | 5,9 | 11.877 | 15,3 | 14.172 | 12,2 | <0,001 | ||
Violência financeira/econômica | 1.088 | 2,8 | 2.424 | 3,1 | 3.512 | 3,0 | 0,003 | ||
Tortura | 935 | 2,4 | 2.549 | 3,3 | 3.484 | 3,0 | <0,001 | ||
Intervenção legal | 173 | 0,4 | 221 | 0,3 | 394 | 0,3 | <0,001 | ||
Trabalho infantil | 131 | 0,3 | 97 | 0,1 | 228 | 0,2 | <0,001 | ||
Tráfico de seres humanos | 17 | 0,0 | 56 | 0,1 | 73 | 0,1 | <0,001 | ||
Outros tipos de violência | 9.617 | 24,9 | 20.902 | 27,0 | 30.519 | 26,3 | <0,001 | ||
Violência de repetição | |||||||||
Sim | 17.737 | 45,9 | 42.309 | 54,3 | 60.046 | 51,7 | <0,001 | ||
Não | 12.430 | 32,1 | 21.776 | 28,1 | 34.206 | 29,4 | |||
Em branco/ignorado | 8.497 | 22,0 | 13.461 | 17,4 | 21.958 | 18,9 |
a) Teste qui-quadrado de Pearson; b) Não totaliza 100% porque se trata de variável com múltipla resposta.
Características do provável agressor | Masculino (N=38.664; 33%) | Feminino (N=77.546; 67%) | Total (N=116.219; 100%) | p-valora | |||||
---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|
N | % | N | % | N | % | ||||
Familiar | 10.172 | 46,7 | 14.225 | 31,5 | 24.397 | 36,4 | <0,001 | ||
Parceiro íntimo | 1.612 | 7,4 | 12.772 | 28,3 | 14.384 | 21,5 | <0,001 | ||
Amigo/conhecido | 4.169 | 19,1 | 7.319 | 16,2 | 11.488 | 17,2 | <0,001 | ||
Outros vínculos | 3.251 | 14,9 | 5.759 | 12,8 | 9.010 | 13,5 | <0,001 | ||
Desconhecido | 2.582 | 11,9 | 5.033 | 11,2 | 7.615 | 11,4 | 0,054 | ||
Total | 21.786 | 100,0 | 45.108 | 100,0 | 66.894 | 100,0 | - | ||
Sexo do provável autorb | |||||||||
Masculino | 26.136 | 67,6 | 30.573 | 39,4 | 56.709 | 48,8 | <0,001 | ||
Feminino | 4.987 | 12,9 | 37.243 | 48,0 | 42.230 | 36,3 | |||
Ambos os sexos | 3.875 | 10,0 | 4.330 | 5,6 | 8.205 | 7,1 | |||
Em branco/ignorado | 3.666 | 9,5 | 5.400 | 7,0 | 9.066 | 7,8 | |||
Suspeita de uso de álcool pelo provável agressor | |||||||||
Sim | 8.696 | 22,5 | 17.211 | 22,2 | 25.907 | 22,3 | <0,001 | ||
Não | 17.492 | 45,2 | 38.280 | 49,4 | 55.772 | 48,0 | |||
Em branco/ignorado | 12.476 | 32,3 | 22.055 | 28,4 | 34.531 | 29,7 |
a) Teste qui-quadrado de Pearson; b) Incluídos os casos de violência autoprovocada.
Nota: O caráter ‘familiar’ do agressor inclui pai, mãe, padrasto, madrasta, irmão(ã) e filho(a); amigos/conhecidos incluem amigos/conhecidos, cuidadores, patrão/chefe; parceiros íntimos incluem cônjuge, ex-cônjuge, namorado(a) e ex-namorado(a); outros vínculos incluem pessoa com relação institucional, policial/agente da lei e outros, não especificados.
Discussão
A maioria dos casos de violência contra pessoas com deficiência notificados em serviços de saúde brasileiros, no período de 2011 a 2017, referiu-se a vítimas do sexo feminino, pessoas brancas, adultos, com deficiência mental, sendo frequente a ocorrência de múltipla deficiência, especialmente mental e intelectual. Destacaram-se as notificações de violência autoprovocada e violência física, além de o principal provável agressor ser um membro da própria família da vítima.
A principal limitação do estudo reside na possibilidade de subnotificação dos casos. As notificações analisadas significam uma aproximação, não a totalidade dos casos. Elas se limitam às pessoas em situação de violência que procuraram um serviço de saúde, foram atendidas e seus casos notificados pelos profissionais da unidade.11
Outra limitação da pesquisa é a fragilidade ou imprecisão das informações sobre tipologia de deficiência, tornando difícil a análise dos dados correspondentes a cada uma. No caso específico das deficiências mental e intelectual, diversas mudanças nessas definições ao longo dos anos - e da história - levaram a uma possível confusão entre as terminologias usadas;12,13 além da qualidade da informação produzida, por vezes incompleta ou com erros.
A violência contra pessoas com deficiência ocorreu mais frequentemente no sexo feminino, corroborando os achados da literatura.3,14,15 Percebeu-se que a sobreposição de vulnerabilidades da deficiência, raça/cor/etnia, classe social e faixa etária pode tornar algumas pessoas ainda mais propensas a sofrer violência.14,16
As notificações indicaram pessoas com deficiência em situação de violência predominantemente de raça/cor da pele branca. Contudo, existe a possibilidade de subnotificação, resultante, por exemplo, do menor acesso da população negra aos serviços de saúde, ademais da naturalização da violência nessa mesma população.17 O alto percentual de notificações sem informação de raça/cor da pele também poderia influenciar a análise em tela.
Essa subnotificação ainda pode ser importante para as faixas etárias mais vulneráveis, como idosos e crianças. Estes costumam apresentar maior grau de dependência, mais dificuldades de acesso aos serviços de saúde e impedimentos outros; ou, simplesmente, resistência à comunicação do ocorrido, sobretudo quando o agressor é o próprio acompanhante, pai e/ou mãe da vítima.3
As principais deficiências relatadas foram a mental e a intelectual, semelhantemente ao observado na literatura.2,3,18 A maior exposição a diferentes tipos de violência, entre as crianças e jovens com deficiência mental ou múltiplas deficiências, justificar-se-ia na dificuldade de manejo dessas pessoas em suas atividades diárias, e também, na atenção prestada pelos cuidadores.18
A grande proporção de notificações de violência autoprovocada em pessoas com deficiência (44,5%), especialmente naquelas com deficiência mental, foi revelada em pesquisas e análises da relação entre deficiência mental, violência autoprovocada e suicídio. Segundo esses estudos, a presença de um transtorno mental é um importante fator de risco para o suicídio.19-21
Quando alguém com deficiência apresenta dificuldade de comunicação, seu responsável ou cuidador é a pessoa indicada a dar informações sobre ela.7 Nesses casos, é possível que parte das violências notificadas como autoprovocadas sejam, de fato, ocasionadas pelos próprios responsáveis/cuidadores.21
A maior notificação de violência física observada pode estar relacionada à presença de marcas corporais visíveis, de mais fácil identificação; o que não ocorre nas demais formas de violência, necessitadas de investigação mais detalhada.1,12
Destacou-se, ainda, a ocorrência de violência psicológica/moral e de violência sexual em mulheres com deficiência, além da violência de repetição, igualmente ratificadas pela literatura.15,22 Nesse contexto, a análise interseccional permitiu examinar e entender problemas transversais às mulheres com deficiência e vítimas de violência, incluindo questões sociais, atitudinais e assistenciais.23
Os prováveis perpetradores de violência contra pessoas com deficiência eram predominantemente do sexo masculino, com envolvimento próximo ou íntimo com as vítimas.3 Dada essa constatação, revela-se maior a dificuldade em visibilizar o problema, haja vista o caráter relacional da ocorrência, a menor autonomia da vítima para comunicar o evento ou, ainda, o estigma e o sentimento de vergonha da agressão sofrida.
Outra questão importante a ser apontada foi a identificação do cuidador (em muitos casos, um familiar) como agressor. A sobrecarga do trabalho de cuidar também pode gerar violências24 e, nesses casos, é importante o olhar atento dos profissionais de saúde para captar a violência oculta ou sublimada, prover o cuidado devido e o encaminhamento oportuno, de forma humanizada, dentro da rede de atenção à saúde e proteção social. Nesse sentido, urgem políticas de regulamentação, capacitação e fortalecimento do ato de cuidar, possibilitando a qualificação do cuidador da pessoa com deficiência.
Estados e municípios apresentam distintos níveis de cobertura do sistema de vigilância de violências e da rede de atenção à saúde da pessoa com deficiência. Somam-se a isso as dificuldades das famílias para buscar a garantia de seus direitos, o acesso aos serviços de saúde e, consequentemente, a notificação da violência que experimentam.11,25,26
O estudo revelou que a violência causa sérias consequências às pessoas que a vivenciam, representando um desafio ainda maior para as pessoas com deficiência quando enfrentam barreiras de diversas naturezas e sofrem todo tipo de discriminação, preconceito, estigma e opressão.1,2
Conclui-se que a descrição e avaliação dos casos de violência contra pessoas com deficiência, notificados por serviços de saúde brasileiros, pode contribuir para a formulação e aprimoramento de políticas públicas específicas sobre esse importante problema. Estudos futuros devem aprofundar o conhecimento e análise do tema.