Introdução
A violência contra a mulher, além de violar direitos, eleva a demanda por cuidados em saúde, caracterizando um grande desafio à saúde pública brasileira.1 Estima-se que uma em cada sete mulheres vivenciaram violência física e/ou sexual, perpetrada por parceiro íntimo, na América Latina e no Caribe.2 Este dado torna-se ainda mais preocupante quando há informações a respeito da exposição a violência psicológica ou abuso emocional, ao longo da vida.3
A violência psicológica é caracterizada por toda ação ou omissão que cause ou vise causar dano à autoestima, identidade ou desenvolvimento da pessoa.4 Ela é considerada uma das formas mais frequentes de agressão no meio doméstico, apesar de mais subnotificada e com maior dificuldade de identificação por parte da vítima, posto que, muitas vezes, a mulher não se percebe sendo agredida.5 Aponta-se ampla variação na literatura mundial quanto à prevalência de violência psicológica contra a mulher praticada por parceiro íntimo (VPMPI), inclusive entre aquelas que vivem na zona rural.6,7 Os principais fatores associados à ocorrência dessa natureza de violência são o estado civil de casada,8 baixa escolaridade,9,10 baixa renda familiar,11,12 idade superior a 30 anos13-15 e diagnóstico de depressão.16
Estudo pioneiro de base populacional conduzido no Brasil, na cidade de São Paulo e em 15 municípios localizados na Zona da Mata de Pernambuco, entre os anos 2000 e 2001, identificou prevalência de violência psicológica ocorrida pelo menos uma vez na vida de 41,8% - intervalo de confiança de 95% (IC95%) 38,7;45,1 - em São Paulo e de 48,9% (IC95% 45,9;51,7) na Zona da Mata pernambucana (sem se discriminar a sobreposição existente entre as violências de natureza física, psicológica ou sexual).17 No mesmo estudo, sobre o relato de ter sofrido exclusivamente violência psicológica na vida, as prevalências identificadas para mulheres residentes em São Paulo e na Zona da Mata de Pernambuco foram de 17,5% e 17,3%, respectivamente.17
A vida na zona rural é marcada pelo distanciamento das redes de apoio e dos serviços18 e, até mesmo, das redes afetivas, favorecendo o silêncio e a invisibilidade da violência. Diante disso, este trabalho procurou descrever um panorama da violência psicológica na área rural, contexto ainda pouco explorado, e de subgrupos de maior ocorrência, contribuindo para evidenciar possíveis caminhos na luta pela garantia de direitos das mulheres, dando visibilidade ao tema e à necessidade de romper com o silêncio frente a situações de violação.
O objetivo do presente estudo foi estimar a prevalência e fatores associados à violência psicológica praticada por parceiro íntimo contra a mulher residente na zona rural.
Métodos
Trata-se de um estudo transversal de base populacional, desenvolvido no consórcio de pesquisa do Mestrado de Saúde Pública da Universidade Federal do Rio Grande intitulado ‘Saúde da população rural Rio-Grandina’. Situado no extremo sul do estado do Rio Grande do Sul, Brasil, o município de Rio Grande tem uma extensão territorial total de 2.709,5 Km2 e possuía, em 2017, uma população de cerca de 209 mil habitantes, dos quais 4% residentes no perímetro rural.19
Neste estudo, foram incluídas mulheres (sexo feminino) de idades entre 18 e 49 anos, com residência permanente na área rural e que relataram ter tido ao menos um parceiro íntimo ao longo da vida, independentemente da orientação sexual. Foram excluídas as mulheres institucionalizadas e aquelas que não apresentaram condições físicas e/ou mentais para participar da entrevista sem auxílio de outrem.
O tamanho da amostra foi calculado visando atender aos objetivos da pesquisa, sendo o maior tamanho necessário de 931 mulheres, considerando-se a associação entre violência psicológica e escolaridade. O cálculo de tamanho amostral foi estimado a partir de uma prevalência de violência psicológica de aproximadamente 45%, um nível de confiança de 95% e margem de erro de 3 pontos percentuais. No cálculo de tamanho amostral para fatores associados, considerou-se um nível de confiança de 95%, poder de 80%, razão de prevalências de 1,5 e prevalência mínima de VPMPI de 25% para os grupos não expostos.
O processo de amostragem foi sistemático e alcançou 83,1% dos domicílios da área rural do município. Para tanto, realizou-se o sorteio de um número entre 1 e 5, de modo que o número sorteado correspondeu ao domicílio considerado ‘pulo’. Assim, no caso de o número 2 ter sido sorteado, todo domicílio de número 2 em uma sequência de cinco não era amostrado, e sim, pulado. Este procedimento garantiu que fossem amostrados quatro em cada cinco domicílios.
A coleta de dados ocorreu entre os meses de abril e outubro de 2017, no domicílio. Foi aplicado um questionário disponível em tablets programados com o software REDCap® (Research Electronic Data Capture). Os dados coletados eram enviados para um servidor de internet, revisados pelos supervisores do estudo e armazenados na Universidade Federal do Rio Grande. As entrevistadoras foram previamente selecionadas e treinadas, e contavam com supervisão constante e acompanhamento diário em campo, para esclarecimentos de possíveis dúvidas e demais orientações necessárias. Posteriormente foi realizado um controle de qualidade, mediante reprodução aleatória de 5% das entrevistas.
Para avaliar a prevalência da VPMPI, principal desfecho do estudo, utilizou-se um recorte do questionário do World Health Organization Violence Against Women Study (WHO-VAW Study) em sua versão traduzida e validada para o português.20 Este instrumento avalia a violência psicológica por meio de quatro itens-questões: (i) Insultou-a ou fez com que você se sentisse mal a respeito de si mesma? (ii) Depreciou ou humilhou você diante de outras pessoas? (iii) Fez coisas para intimidá-la ou assustá-la de propósito? (iv) Ameaçou machucá-la ou alguém de quem você gosta?
Foi considerada vítima de violência psicológica a participante que respondeu afirmativamente a pelo menos uma das quatro questões supracitadas. Como o estudo se propôs a avaliar a prevalência da VPMPI, as participantes responderam primeiramente a uma pergunta-filtro, sobre ter tido parceiro íntimo ao longo da vida. Definiu-se como parceiro íntimo uma pessoa do sexo masculino com a qual a participante houvesse mantido relação sexual ao longo da vida. Com a intenção de preservar as participantes, optou-se por questionar a ocorrência da violência em todas as relações íntimas mantidas até a data da coleta e não necessariamente uma situação vivida na relação atual da mulher.
As variáveis independentes foram levantadas na aplicação do questionário, no bloco de variáveis socioeconômicas, a saber: idade (em anos: 18 a 29; 30 a 39; 40 a 49); raça/cor da pele autorreferida (branca; preta; parda); escolaridade (em anos de estudo: 0 a 4; 5 a 8; 9 ou mais); situação conjugal atual (casada ou com companheiro; solteira; separada, divorciada ou viúva); situação de trabalho no momento da entrevista (sim ou não); renda familiar (valor recebido por todos os moradores do domicílio no mês anterior à entrevista, classificada com base em quintis); autorrelato de depressão diagnosticada por um médico ou psicólogo ao longo da vida (sim ou não); crença religiosa (sim ou não); uso de bebida alcoólica na última semana (sim ou não); tabagismo (nunca fumou; ex-fumante; fumante); e número de filhos (nenhum; um; dois; três ou mais).
Após a realização das análises descritivas, calculou-se a prevalência da VPMPI e seu respectivo IC95%. Para as análises brutas e ajustadas, utilizou-se a regressão de Poisson com ajuste robusto de variância, para estimar as razões de prevalências (RP) e seus respectivos IC95%.
Para a análise ajustada, utilizou-se um modelo hieraquizado (Figura 1) em quatro níveis, para controle de possíveis fatores de confusão. Nesse modelo, as variáveis que se encontravam em um nível hierárquico igual ou superior foram consideradas como possíveis fatores de confusão na relação com o desfecho do estudo: no primeiro nível de análise, as variáveis ‘idade’, ‘raça/cor da pele’ e ‘escolaridade’; no segundo nível, ‘situação conjugal’, ‘renda familiar’, ‘trabalho’ e ‘número de filhos’; no terceiro nível, autorrelato de diagnóstico de ‘depressão’ e ‘religiosidade’; e no quarto nível, variáveis comportamentais como ‘uso de álcool’ e ‘tabagismo’. Utilizou-se o método de seleção de variáveis backward, com introdução em bloco das variáveis correspondentes a cada nível hierárquico. Foram mantidas na análise todas as associações que apresentaram p-valor<0,20 no teste de Wald de heterogeneidade ou no teste de tendência linear, sendo consideradas estatisticamente significativas as variáveis que obtiveram p-valor<0,05. Todas as análises foram realizadas com uso do software Stata/IC® versão 14.
O projeto do estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa na Área da Saúde, da Universidade Federal do Rio Grande (CEPAS/FURG), sob o Parecer nº 51/2017, emitido em 27 de abril de 2017: Processo nº 23116.009484/2016-26. Garantiu-se o sigilo dos dados e a voluntariedade na pesquisa, possibilitando o abandono do estudo a qualquer momento e sem a necessidade de justificativa. Todas as participantes assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido antes da aplicação dos questionários. Ao final da pesquisa, receberam um folder com endereços e telefones úteis dos serviços públicos de saúde, assistência e segurança da mulher.
Resultados
Nos 2.669 domicílios com moradores permanentes na área rural do município de Rio Grande, identificaram-se 1.391 mulheres em idade fértil, dos 15 aos 49 anos, e 1.199 foram amostradas. Destas, 103 mulheres não foram encontradas após a terceira tentativa (perdas) e 17 não quiseram participar da pesquisa (recusas), 83 não cumpriam o critério de inclusão de idade, 20 não tiveram parceiro íntimo ao longo da vida e 5 não tinham informação para a variável de desfecho, resultando em 971 observações válidas. Entre estas, 167 (17,2% - IC95% 14,9;19,7) relataram ter vivido ao menos uma situação de VPMPI na vida.
A Tabela 1 descreve as características da amostra estudada. Mais da metade das mulheres possuía cinco anos ou mais de escolaridade, declararam-se majoritariamente como brancas 85,9% (821/956), 84,7% (822/971) eram casadas ou viviam com companheiro, 37,7% (366/971) trabalhavam, 26,8% (260/970) relataram já ter recebido, de um psicólogo ou médico, o diagnóstico de depressão ao longo da vida, 67,2% (652/970) possuíam crença religiosa, 68,4% (665/971) nunca haviam fumado e 90,2% (876/971) relataram não ter feito uso de bebida alcoólica na última semana.
Características | n | % |
---|---|---|
Idade (anos) | ||
18-29 | 332 | 34,2 |
30-39 | 328 | 33,8 |
40-49 | 311 | 32,0 |
Raça/cor da pele | ||
Branca | 821 | 85,9 |
Preta | 66 | 6,9 |
Parda | 69 | 7,2 |
Escolaridade (anos de estudo) | ||
0-4 | 212 | 21,9 |
5-8 | 341 | 35,1 |
≥9 | 420 | 43,0 |
Situação conjugal | ||
Casada ou com companheiro | 822 | 84,7 |
Solteira | 103 | 10,6 |
Separada, divorciada ou viúva | 46 | 4,7 |
Renda familiar (quintil) | ||
Q1 (mais pobres) | 181 | 19,9 |
Q2 | 184 | 20,2 |
Q3 | 201 | 22,2 |
Q4 | 171 | 18,8 |
Q5 (mais ricos) | 172 | 18,9 |
Número de filhos | ||
Nenhum | 15 | 1,8 |
1 | 313 | 37,6 |
2 | 295 | 35,5 |
3 ou mais | 209 | 25,1 |
Trabalha | ||
Não | 605 | 62,3 |
Sim | 366 | 37,7 |
Religiosidade | ||
Não | 318 | 32,8 |
Sim | 652 | 67,2 |
Depressão | ||
Não | 710 | 73,2 |
Sim | 260 | 26,8 |
Uso de álcool | ||
Não | 876 | 90,2 |
Sim | 95 | 9,8 |
Tabagismo | ||
Nunca fumou | 665 | 68,4 |
Ex-fumante | 154 | 15,9 |
Fumante | 152 | 15,7 |
Diferentes manifestações de violência psicológica foram identificadas. Aproximadamente 12,0% (IC95% 10,1;14,3) relataram insulto; 10,5% (IC95% 8,7;12,6), humilhação ou depreciação; 10,1% (IC95% 8,3;12,2), intimidação; e 9,5% (IC95% 7,8;11,5), ameaça (Tabela 2). Cento e cinquenta das 167 mulheres que relataram a ocorrência de VPMPI em sua vida reportaram que o relacionamento abusivo mencionado teve um ano ou mais de duração.
Variável | n | % | (IC95%a) |
---|---|---|---|
Insultar ou fazer com que se sinta mal a respeito de si mesma | |||
Não | 854 | 88,0 | (85,7;89,9) |
Sim | 117 | 12,0 | (10,1;14,3) |
Humilhar ou depreciar diante de outras pessoas | |||
Não | 869 | 89,5 | (87,4;91,3) |
Sim | 102 | 10,5 | (8,7;12,6) |
Fazer coisas para intimidá-la ou assustá-la de propósito | |||
Não | 873 | 89,9 | (87,8;91,7) |
Sim | 98 | 10,1 | (8,3;12,2) |
Ameaçar machucá-la ou alguém de que ela gostasse | |||
Não | 877 | 90,5 | (88,5;92,2) |
Sim | 92 | 9,5 | (7,8;11,5) |
a) IC95%: intervalo de confiança de 95%;.
Na Tabela 3 é possível observar que, na análise ajustada, as mulheres solteiras (RP=1,86 - IC95% 1,32;2,63) e as mulheres separadas, divorciadas e viúvas (RP=1,96 - IC95% 1,23;3,13) tiveram probabilidade significativamente maior de serem vítimas de VPMPI, comparadas às casadas ou que viviam com companheiro. A probabilidade de VPMPI também se mostrou mais elevada para as mulheres que apresentaram autorrelato de depressão diagnosticada por um psicólogo ou médico ao longo da vida (RP=2,23 - IC95% 1,70;2,91), e para aquelas que fizeram uso de bebidas alcoólicas na última semana (RP=1,53 - IC95% 1,07;2,17).
Características | VPMPIb % | Análise bruta | Análise ajustada | ||
---|---|---|---|---|---|
RPc (IC95%d) | p-valor | RPc (IC95%d) | p-valor | ||
Idade (anos) | 0,504e | 0,691e | |||
18-29 | 18,1 | 1,00 | 1,00 | ||
30-39 | 17,4 | 0,96 (0,69;1,34) | 0,97 (0,70;1,34) | ||
40-49 | 16,1 | 0,89 (0,63;1,25) | 0,93 (0,64;1,34) | ||
Raça/cor da pele | 0,165 | 0,165 | |||
Branca | 17,4 | 1,00 | 1,00 | ||
Preta | 10,6 | 0,61 (0,30;1,25) | 0,61 (0,30;1,25) | ||
Parda | 23,2 | 1,33 (0,84;2,10) | 1,33 (0,84;2,10) | ||
Escolaridade (anos de estudo) | 0,341e | 0,358e | |||
0-4 | 14,2 | 1,00 | 1,00 | ||
5-8 | 18,5 | 1,31 (0,88;1,95) | 1,32 (0,88;1,97) | ||
≥9 | 17,7 | 1,25 (0,85;1,85) | 1,25 (0,84;1,85) | ||
Situação conjugal | <0,001 | <0,001 | |||
Casada ou com companheiro | 15,1 | 1,00 | 1,00 | ||
Solteira | 28,2 | 1,87 (1,32;2,65) | 1,86 (1,32;2,63) | ||
Separada, divorciada ou viúva | 30,4 | 2,02 (1,27;3,22) | 1,96 (1,23;3,13) | ||
Renda familiar (quintil) | 0,188e | 0,603e | |||
Q1 (mais pobres) | 22,7 | 1,34 (0,88;2,06) | 1,10 (0,68;1,76) | ||
Q2 | 15,2 | 0,90 (0,56;1,45) | 0,90 (0,53;1,54) | ||
Q3 | 16,9 | 1,00 (0,64;1,58) | 0,96 (0,58;1,59) | ||
Q4 | 14,6 | 0,87 (0,53;1,42) | 0,85 (0,50;1,46) | ||
Q5 (mais ricos) | 16,9 | 1,00 | 1,00 | ||
Número de filhos | 0,910e | 0,558e | |||
Nenhum | 13,3 | 0,70 (0,19;2,61) | 0,57 (0,14;2,31) | ||
1 | 18,5 | 0,97 (0,67;1,39) | 0,90 (0,62;1,31) | ||
2 | 14,6 | 0,76 (0,51;1,13) | 0,77 (0,52;1,14) | ||
3 ou mais | 19,1 | 1,00 | 1,00 | ||
Trabalha | 0,606 | 0,892 | |||
Não | 17,7 | 1,00 | 1,00 | ||
Sim | 16,4 | 0,93 (0,69;1,24) | 0,98 (0,70;1,36) | ||
Religiosidade | 0,393 | 0,303 | |||
Não | 15,7 | 1,00 | 1,00 | ||
Sim | 17,9 | 1,14 (0,84;1,55) | 1,17 (0,87;1,57) | ||
Depressão | <0,001 | <0,001 | |||
Não | 13,0 | 1,00 | 1,00 | ||
Sim | 28,9 | 2,23 (1,70;2,92) | 2,23 (1,70;2,91) | ||
Uso de álcool | 0,023 | 0,018 | |||
Não | 16,3 | 1,00 | 1,00 | ||
Sim | 25,3 | 1,55 (1,06;2,26) | 1,53 (1,07;2,17) | ||
Tabagismo | 0,298 | 0,599 | |||
Nunca fumou | 15,9 | 1,00 | 1,00 | ||
Ex-fumante | 19,5 | 1,22 (0,85;1,76) | 1,12 (0,79;1,59) | ||
Fumante | 20,4 | 1,28 (0,89;1,83) | 1,18 (0,83;1,66) |
a) Modelo hierárquico em quatro níveis: Nível 1 - faixa etária, raça/cor da pele e escolaridade; Nível 2 - renda familiar, trabalho, situação conjugal e número de filhos; Nível 3 - autorrelato de diagnóstico de depressão e religiosidade; Nível 4 - uso de álcool e tabagismo. Regressão de Poisson com ajuste robusto da variância, com as variáveis que se mantiveram no modelo final (p-valor<0,200); b) VPMPI: violência psicológica contra a mulher praticada por parceiro íntimo; c) RP: razão de prevalências; d) IC95%: intervalo de confiança de 95%; e) Teste de Wald para tendência linear.
Discussão
Cerca de uma em cada cinco mulheres participantes deste estudo relatou ter vivido ao menos um episódio de VPMPI na vida. As mulheres solteiras, separadas, divorciadas ou viúvas apresentaram maior probabilidade de terem sido vítimas de VPMPI na vida, em comparação àquelas que estavam casadas ou que viviam com companheiro. As participantes que relataram diagnóstico de depressão e aquelas que fizeram uso de bebidas alcoólicas na última semana apresentaram maior probabilidade de terem sido vítimas de VPMPI, em comparação àquelas que não referiram diagnóstico de depressão ou uso de álcool. Estes achados contribuem para evidenciar que mulheres da área rural, de diferentes subgrupos identificados, sofrem essa natureza de violência, apontando para a necessidade de políticas públicas e de serviços de saúde, entre outros, que ofereçam o apoio necessário frente à questão.
A prevalência de VPMPI foi mais baixa do que a encontrada em mulheres da Zona da Mata de Pernambuco, embora seja similar ao relato de violência psicológica de forma exclusiva, pelo menos uma vez na vida, identificado no mesmo estudo.17 A violência psicológica tem-se destacado nos registros dos serviços especializados de atendimento à mulher. Estudo realizado na Paraíba, em 2015, identificou que 80% dos casos notificados envolviam violência psicológica.21 Embora a violência seja identificada em várias localidades, as zonas rurais tendem a apresentar índices mais elevados de violência contra a mulher do que as zonas urbanas.20 Alguns autores atribuem esse fato às relações de gênero, mais desiguais no âmbito rural do que no urbano, posto que mulheres residentes em locais mais isolados, geralmente, contam com uma infraestrutura mais deficitária de serviços de apoio e são menos engajadas em movimentos relacionados a questões de gênero.17,22,23 Tais dados corroboram o modelo ecológico que aborda a multifatoriedade associada à ocorrência da violência.24 Apenas características socioeconômicas e comportamentais da mulher podem não explicar com exatidão a violência psicológica, uma vez que o contexto socioambiental da vítima, as características dos parceiros e questões culturais também podem influenciar na ocorrência das agressões.2,5
Conforme evidenciado, as mulheres que relataram já ter recebido diagnóstico de depressão na vida apresentaram 123% maior probabilidade de ter vivido situação de violência psicológica. Estudo de revisão sugere que sintomas depressivos estejam associados à perpetração de violência psicológica e, em alguns casos, sejam preditores.25 No entanto, o estudo em tela apresenta delineamento transversal, de modo que se recomenda cautela na extrapolação desse resultado, pois os dados foram coletados de maneira simultânea. Sendo assim, não é possível preencher o critério de temporalidade para se estabelecer, com precisão, o que antevia: diagnóstico de depressão ou ter vivido situação de violência doméstica; e o que é causa ou efeito, nessa relação.
O uso de bebidas alcoólicas também foi um fator associado com significância estatística, corroborando outros estudos.13,26 As mulheres que vivenciam violência psicológica têm seu papel social e autoestima prejudicados,5 e o uso de álcool pode ser uma estratégia para lidar com a situação.27 O uso nocivo de bebidas alcoólicas é um problema de saúde pública adjacente à violência. Há evidências de associação entre álcool e situações de vitimização, embora essas relações não sejam claras. Neste estudo, foi investigado o uso de bebida alcoólica apenas por parte da mulher. Pesquisas recentes sugerem que também seja avaliado o consumo de álcool por parte do agressor,27 e que outros fatores sejam mensurados, como, por exemplo, o comportamento antissocial e o consumo de outras substâncias psicoativas.24
O achado de que as mulheres solteiras, divorciadas, separadas ou viúvas apresentaram maior probabilidade para vitimização do que as casadas ou que viviam com companheiro diverge de outros estudos, para os quais as mulheres casadas apresentam maiores prevalências de VPMPI, comparadas às solteiras.3,28 É possível elencar algumas hipóteses para esse resultado. Uma primeira hipótese seria a de que a violência psicológica, dentro de relações estáveis, pode ser de difícil reconhecimento.5,8 Acredita-se, ainda, que mulheres não envolvidas em uma relação estável podem se colocar disponíveis para um maior número de parceiros, aumentando a probabilidade de encontrar algum parceiro violento; e podem estar mais atentas, para reconhecer e romper o relacionamento violento; entretanto, esses aspectos precisam ser estudados em maior profundidade. Estudo realizado a partir dos dados do Sistema de Informação de Agravos de Notificação (Sinan) do Distrito Federal, no período de 2009 a 2012, identificou quase um terço das mulheres que haviam sofrido violência como solteiras.29 Tendo em vista que o presente estudo investigou a ocorrência de violência por parceiro íntimo na vida, possivelmente as diferenças nos achados demonstram que mulheres com história de relações abusivas conseguiram romper com elas em algum momento. Porém, esse rompimento nem sempre aconteceu de forma rápida. Neste estudo, aproximadamente 90% das mulheres vítimas de violência psicológica afirmaram que a relação abusiva teve duração superior a um ano. Esta informação remete a uma reflexão sobre as etapas iniciais dos relacionamentos, quando o casal está mais disposto a integrar e adaptar os modelos de conjugalidade aprendidos em suas famílias de origem,30 mesmo se disfuncionais. Testemunhar violência doméstica cometida por pais e familiares, ainda na infância, pode ser um fator de risco para o envolvimento em relações violentas no futuro, conforme revelou um estudo de revisão.25
O presente estudo não se deteve na avaliação da situação atual de VPMPI e sim em sua ocorrência ao longo da vida. O motivo da adoção dessa premissa foi o entendimento de que uma exposição de tal magnitude pode ter consequências na vida da mulher, não só no curto prazo.24 Contudo, não se pode descartar as limitações da própria aferição. É importante considerar possíveis vieses recordatórios e de informação, além do que, cabe mencionar a possibilidade de subnotificação do desfecho decorrente de dificuldades das mulheres em relatar situações de violência psicológica vivenciadas, bem como a obtenção de dados do uso de álcool na última semana, tão somente, não identificando uso abusivo.
Apesar das limitações mencionadas, trata-se de um estudo de base populacional realizado mediante inquérito domiciliar, com baixo percentual de perdas e recusas, investigando a zona rural de um município com cobertura total da Estratégia Saúde da Família. Aferir a prevalência de violência psicológica, por meio de um instrumento validado para a população brasileira22 e amplamente utilizado em outros países,2 além de favorecer a compreensão dos possíveis fatores associados, permite o planejamento de novas estratégias de prevenção e cuidados primários em saúde, visando diminuir a ocorrência de eventos de violência, assim como atenuar seu impacto na vida daquelas mulheres que vivenciaram episódios de violação de direitos. Quanto ao entendimento das mulheres sobre as questões presentes no questionário do WHO-VAW Study, não foi identificada qualquer limitação que comprometesse o andamento da pesquisa. As mulheres entrevistadas compreenderam as perguntas e não demonstraram dificuldades em falar sobre o tema. A questão do domínio e praticidade do questionário corrobora o descrito em estudo que se propôs a validar o instrumento para o português, aplicando-o nas áreas urbana e rural do país.20
Conclui-se que a violência psicológica contra a mulher está presente no perímetro rural do município de Rio Grande, RS, apresentando relação com depressão e uso de álcool, além de afetar diferentes subgrupos. É interessante atentar para o fato de que as prevalências das diferentes formas de violência psicológica identificadas foram inferiores às encontradas no estudo pioneiro na validação do instrumento utilizado,20 realizado há mais de uma década. Contudo, cabe destacar que um país heterogêneo como o Brasil necessita de melhorias na organização de ações e serviços de saúde que atendam a suas peculiaridades regionais. As áreas rurais apresentam contextos específicos, e as mulheres nelas residentes podem se sentir mais desafiadas a relatar situações de violência e buscar apoio.17,22,23
Finalmente, o estudo salienta a importância de olhar para a violência contra a mulher como um problema de saúde pública também presente na zona rural. Por ser uma questão multifatorial, como pressupõe o modelo ecológico,24 é mister refletir sobre o uso de álcool e a depressão em sua relação complexa - e não unidirecional - com a violência doméstica no contexto rural. Mostra-se necessário o planejamento de políticas e ações intersetoriais e integradas, em regiões rurais, de forma a se promover a igualdade de gêneros, a saúde mental e a redução do uso de álcool e outras drogas, com a ampliação da rede de saúde e assistência social no âmbito rural, além de descentralizar e desburocratizar seu acesso.