Introdução
A obesidade vem crescendo no Brasil e no mundo, sendo considerada uma epidemia mundial, um grande desafio para a saúde pública.1 Segundo a Pesquisa Nacional de Saúde (PNS) publicada em 2019, a proporção de obesos entre indivíduos adultos chegou a 26,8%. Em relação ao excesso de peso, a prevalência observada em adultos foi de 63,3% para mulheres e 60,0% entre homens.2
A maior reserva de gordura no corpo, especificamente no tronco, predispõe à ocorrência de agravos como a intolerância à glicose, alterações do perfil lipídico plasmático e, principalmente, hipertensão arterial, todos estes considerados de risco para doença cardiovascular (DCV).3
Os métodos diagnósticos por imagem, considerados padrão ouro para avaliação da adiposidade, são caros e de difícil implementação em estudos epidemiológicos. Entre os indicadores antropométricos mais adotados, a Organização Mundial da Saúde (OMS) recomenda o índice de massa corporal (IMC) para definição da obesidade geral, porém este indicador não fornece informações sobre a distribuição da gordura corporal. A circunferência de cintura (CC) proporciona estimativas mais precisas da gordura visceral intra-abdominal, e, por ser uma medida simples e prática, passou a ser bastante utilizada na determinação da obesidade abdominal, que é um preditor de risco cardiovascular.3
Devido à necessidade de quantificar o efeito de cada fator de risco e estimar a gravidade da doença associada à DCV, escores de risco e diretrizes foram desenvolvidos para a prevenção e tratamento da DCV. O escore de risco de Framingham (ERF), por exemplo, é amplamente utilizado para avaliar o risco que o indivíduo tem de apresentar evento coronariano no prazo de dez anos.4
A hipertensão, o tabagismo e a hipercolesterolemia, fatores de risco utilizados no cálculo desse escore, são eventos frequentes na população brasileira, sendo foco primordial de prevenção, com vistas a melhora da qualidade de vida, mudança de hábitos alimentares, além da adoção da prática de atividade física. Uma dieta baseada em alimentos in natura, minimamente processados, e a prática regular de exercícios físicos desempenham importante função preventiva, especialmente em adultos de risco para DCV.5
Por outro lado, uma dieta rica em gorduras, açúcares, óleos sintéticos, sódio, aditivos e emulsificantes, e pobre em fibras, ômega 3 e nutrientes antioxidantes, como vitaminas A, C, D e E, está associada a risco elevado de DCV.6 Estudos destacam a relação entre maior consumo de carboidratos e risco elevado de morte, enquanto a maior ingestão de gordura saturada na dieta está associada a diminuição da ocorrência de acidente vascular cerebral (AVC).7 De fato, investigações isoladas dos nutrientes subestimam a possibilidade de interação entre esses e demais componentes do consumo alimentar.8
Vários estudos foram realizados com o propósito de avaliar a relação entre padrões de consumo e riscos de desenvolver DCV.8 É reconhecido que um padrão alimentar rico em frutas, vegetais, peixes e grãos integrais (definido como padrão ‘saudável’), dieta DASH (abordagens dietéticas para deter a hipertensão)9 e a chamada ‘dieta mediterrânea’10 reduzem o risco de DCV. Por sua vez, padrões de consumo de alimentos caracterizados por alto teor de gordura e açúcar, ou uma dieta a base de carnes, principalmente carnes processadas, têm efeitos deletérios, relacionados ao maior risco de obesidade, diabetes mellitus tipo 2 e DCV.11
No Brasil, poucos estudos investigaram a relação entre padrão alimentar, adiposidade por absorciometria com dupla emissão de raios X e fatores de risco cardiovasculares.12 Observou-se associação inversa entre o diabetes mellitus e o padrão de alimentação caracterizado por produtos lácteos, e a dieta DASH associada à síndrome metabólica.12 O padrão tradicional, tipicamente brasileiro, de consumo de alimentos esteve associado a maior IMC e maior CC, maiores níveis de colesterol total e suas frações de LDL-colesterol e HDL-colesterol, e maior pressão arterial sistêmica.13 Em outro estudo, observou-se que, de quatro padrões, três, denominados ‘tradicional’, ‘cafeteria’ e ‘aterogênico’, mostraram-se associados a fatores de risco para DCV.14
Considerando-se que o padrão de consumo alimentar é um fator determinante do desenvolvimento de excesso de peso e de doenças crônicas, o presente estudo teve como objetivo verificar a associação entre padrões de consumo de alimentos, excesso de peso e risco de DCV.
Métodos
Desenho de estudo
Estudo transversal, no contexto maior de um estudo de coorte denominado Estudo Pró-Saúde (EPS).
Contexto
O EPS é realizado com servidores técnico-administrativos efetivos, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), e propõe-se, como objetivo principal, investigar o papel de marcadores de posição social e outras dimensões relacionadas à saúde em populações adultas do Brasil.15
Participantes
O EPS teve início em 1999, e, no período 2012-2013, realizou uma quarta onda de coleta de dados com uma amostra de 520 participantes, cerca de um quinto da população da linha de base. Essa amostra foi selecionada aleatoriamente, no interior de estratos de sexo, idade (em anos: <50; ≥50) e escolaridade (<ensino médio; ≥ensino médio). O tamanho dos estratos correspondeu às proporções observadas entre participantes da linha de base, e o tamanho da amostra obedeceu a limitações orçamentárias do projeto. Foram excluídos os técnicos administrativos aposentados e os que se mudaram do estado do Rio de Janeiro. Os dados foram investigados mediante padronização, e a coleta aconteceu entre julho de 2012 e julho de 2013, e foi realizada por entrevistadores e técnicos previamente treinados.
Variáveis
Desfechos:
a) A adiposidade, avaliada por massa corporal total, estatura e IMC, além da massa gorda total, androide e ginoide;
b) Risco cardiovascular, aferido pela CC e o escore de risco de Framingham.
As covariáveis investigadas constituíram-se do perfil socioeconômico, representado pela idade, escolaridade e renda familiar per capita.
Fonte de dados e mensuração
A avaliação dietética partiu da aplicação de questionário de frequência alimentar (QFA), semiquantitativo, validado,16 contemplando 82 alimentos ou grupo de alimentos, em quantidades previamente estipuladas e pautadas pela medida caseira ou pela unidade do alimento. Os participantes foram convidados a relatar a frequência de consumo alimentar nos seis meses anteriores, dividida em oito categorias, que variaram entre ≥3 vezes/dia até nunca ou quase nunca; e a quantidade média, variável segundo cada alimento.
As medidas de massa corporal total, massa gorda total e das regiões androide e ginoide foram aferidas pela absorciometria por dupla emissão de raios X (Dual Energy X-ray absorptiometry, DXA), utilizando-se o equipamento iDXA Lunar (GE, Health Care) e o software EnCoRe 2008 em sua versão 12.20. Os escaneamentos foram realizados pelo mesmo profissional e diariamente o equipamento era calibrado, conforme instruções do fabricante. Durante o agendamento, os participantes eram orientados a utilizar roupas leves, sem componentes metálicos.
A região androide foi definida pelo limite superior acima do corte da pelve, a 20% da distância entre os cortes da pelve e do colo; e a região ginoide, pelo limite superior abaixo da linha da pelve, com ponto de corte de 1,5 vez a altura da região androide.
A massa gorda androide (MGA) e a massa gorda ginoide (MGG) foram expressas como percentual da massa gorda total (MGT%), obtida pela DXA. A razão massa gorda androide/massa gorda ginoide foi expressa pela relação entre o percentual da gordura androide e o percentual da gordura ginoide: MGA%/MGG%.
A CC foi mensurada em centímetros. A avaliação do risco de alterações metabólicas associadas à obesidade seguiu o critério proposto pela OMS, com base na medida da CC segundo sexo,17 assim classificada: de risco elevado, quando a CC ≥94 cm para homens e ≥80 cm para mulheres; e de risco muito elevado, quando a CC ≥102 cm para homens e ≥88 cm para mulheres.
A estatura foi aferida em metros, utilizando-se estadiômetro, sobre o qual os indivíduos são dispostos descalços, em posição ortostática, com a cabeça orientada pelo plano de Frankfurt. A estatura foi mensurada utilizando-se o ângulo de 90º em relação à escala. A massa corporal total (em kg) foi aferida sobre balança digital (marca Filizola). O IMC foi calculado pela razão entre massa corporal total (em kg) e quadrado da estatura (em metros), adotando-se os pontos de corte propostos para adultos e para aqueles acima de 60 anos.
Utilizou-se o ERF para avaliação do risco cardiovascular. Ele baseia-se em um algoritmo, associando-se fatores múltiplos para estimar o risco de evento cardiovascular no prazo de dez anos, entre indivíduos não previamente diagnosticados com doença coronariana.18
Os fatores de riscos adotados para estimar o ERF foram idade, sexo, presença de dislipidemia (colesterol total e HDL-colesterol), pressão arterial sistêmica e tabagismo. Cada variável recebeu uma pontuação, e a soma final representou risco cardiovascular baixo (menos de 10%), médio (10 a 20%) ou alto (mais de 20%). Os indivíduos com histórico de diabetes mellitus e DCV foram classificados com risco alto, de mais de 20%.
Avaliou-se, pelas respostas ao questionário da onda 4 do presente estudo, a presença de diabetes mellitus, DCV e consumo de cigarros.
A medida da pressão arterial (PA) foi realizada com aparelho da marca OMRON®, devidamente calibrado pelo fabricante. Todas as aferições da PA foram realizadas no braço direito, após repouso de cinco minutos, utilizando-se braçadeira; elas foram tomadas por três vezes, com intervalo de dois minutos entre cada uma, sendo considerada a média entre as três medidas.
Para determinação do colesterol total e HDL-colesterol, amostras de sangue foram coletadas posteriormente, dos funcionários da UERJ participantes em jejum de 12 horas. A coleta ficou a cargo de um profissional capacitado, que utilizou tubos vacutainer® (Becton, Dickinson e Company do Brasil) contendo EDTA-Na como anticoagulante, e tubos sem anticoagulante para obtenção do soro. O processamento e as análises bioquímicas foram realizados no Laboratório de Lípides (LabLip). Foram adotados valores de ponto de corte estabelecidos para os níveis de colesterol total (<190 mg/dl) e Hdl-colesterol (>40 mg/dl).
Viés
Visando minimizar possíveis vieses, foram investigadas as seguintes covariáveis:
a) Idade categorizada em anos: menos de 35; 35 a 44; 45 a 49; 50 a 54; 55 a 59; 60 ou mais;
b) Sexo (feminino; masculino);
c) Escolaridade categorizada em: até ensino fundamental completo (incluindo 1º e 2º graus incompletos); ensino médio completo (incluindo o 3º grau incompleto); ensino superior completo ou mais;
d) Renda familiar per capita calculada a partir do ponto médio da categoria da renda líquida relatada, dividida pelos dependentes da renda; esse quociente foi dividido pelo salário-mínimo vigente à época (R$ 622,00), e o valor resultante, estratificado em três categorias: menos de 3 salários-mínimos; 3 a 6 salários mínimos; mais de 6 salários mínimos.
Padrão de consumo alimentar
Os padrões alimentares foram identificados utilizando-se análise de componentes principais (ACP). Os alimentos contidos no QFA foram agrupados segundo as semelhanças nutricionais ou preparações culinárias (Quadro 1). As premissas para aplicação da ACP foram verificadas pelos testes de adequação da amostra de Kaiser-Meyer-Olkin (KMO), cujo valor obtido foi de 0,752 (>0,6 é considerado adequado), e pelo teste de esfericidade de Bartlett. Neste segundo teste, a hipótese nula foi rejeitada (p<0,001), indicando adequação dos dados para utilização do método. Adotou-se rotação ortogonal varimax, sendo consideradas como pertencentes aos padrões as cargas fatoriais iguais ou superiores a 0,30. Posteriormente à ACP, uma variável padronizada foi predita (contínua, simétrica), indicando o quanto cada indivíduo aderia a cada padrão identificado.
Grupos de alimentos | Itens alimentares |
---|---|
Arroz | Arroz |
Massas | Macarrão, lasanha, nhoque ou ravióli |
Pães e biscoitos salgados | Pão francês ou de forma e biscoito salgado |
Frutas | Laranja ou tangerina, banana, mamão, maçã, melancia, melão, abacaxi, manga, limão, maracujá, uva |
Hortaliças | Alface, couve, repolho, couve-flor ou brócolis, tomate, pepino, chuchu, abobrinha, abóbora, cenoura, beterraba, quiabo, vagem, alho, cebola e pimentão |
Vegetais em conserva | Palmito, azeitona, milho |
Carne bovina e miúdos | Carne de boi, bucho, fígado, moela, coração e churrasco |
Carne suína | Carne de porco |
Carnes e pescados processados | Carnes ou peixes conservados em sal, bacon ou toucinho, sardinha ou atum enlatados |
Carnes ultraprocessadas | Hambúrguer, salsicha, linguiça, mortadela, apresuntado, presunto e salame |
Aves e pescados frescos | Peixe fresco e frango |
Leite e derivados | Queijo, leite, iogurte e requeijão |
Ovos | Ovos |
Feijão | Feijão |
Gorduras | Manteiga ou margarina e maionese |
Doces | Bolo, biscoito recheado, biscoito doce, sorvete, balas, doces à base de leite, doces à base de frutas, chocolate em barra ou bombom, chocolate em pó e açúcar |
Salgados e pizzas | Pizza, salgados do tipo risoles, coxinha, pastel |
Café e infusões | Café, chá e chá mate |
Refrigerantes | Refrigerantes de cola e outros refrigerantes |
Suco natural | Suco de fruta ou polpa |
Bebida alcoólica | Cerveja, vinho e outras bebidas alcoólicas |
Petiscos | Batata frita, batata chips ou batata palha, salgadinho de pacote, pipoca de saco, amendoim de saquinho |
Leguminosas | Lentilha, ervilha, grão-de-bico |
Cereais | Polenta ou angu |
Tubérculos e derivados | Batata ou purê, mandioca ou aipim e farinha de mandioca |
As variáveis contínuas foram expressas em médias e desvios-padrão (DP); e as variáveis categóricas, em percentuais.
Entre as variáveis, apenas MGT% e MGA% apresentam teste de normalidade de Shapiro Wilk significativo a 5%. Entretanto, por apresentar distribuição semelhante ao histograma normal e amostra grande, foram considerados modelos lineares para todas as variáveis. Estimou-se modelo de regressão linear para cada variável-resposta (MGT%; MGA%; MGG%; MGA%/MGG%; CC; IMC; ERF), relativamente às variáveis explicativas (padrões de alimentação: ultraprocessados; saudável; carnes; tradicional), bruto e ajustado pelas variáveis sociodemográficas (sexo; idade; escolaridade; renda per capita) e energia total. A estimação dos parâmetros do modelo foi feita utilizando-se o método de mínimos quadrados. Adotou-se intervalo de confiança de 95% (IC95%).
Para todas as etapas das análises, empregou-se o programa STATA, versão 13.
Aspectos éticos
O Comitê de Ética em Pesquisa do Instituto de Medicina Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (CEP-IMS/UERJ) aprovou o projeto do estudo, em seu parecer sobre o Certificado de Apresentação para Apreciação Ética (CAAE) nº 0041.0.259.000-11. O parecer foi emitido em 18 de outubro de 2011. A participação dos servidores da UERJ foi voluntária. Todos os participantes assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido.
Resultados
Não houve perda de participantes durante as etapas de coleta de dados. Do total de indivíduos estudados (n=520), 51,9% eram do sexo feminino, 24,6% tinham entre 50 e 54 anos, 54,3% referiram ensino superior completo ou mais e 70,0% apresentaram uma renda per capita menor que 3 salários mínimos (Tabela 1).
Variáveis | n | % |
---|---|---|
Sexo | ||
Feminino | 270 | 51,9 |
Masculino | 250 | 48,1 |
Idade (anos) | ||
<35 | 29 | 5,6 |
35-44 | 71 | 13,7 |
45-49 | 115 | 22,1 |
50-54 | 128 | 24,6 |
55-59 | 82 | 15,8 |
≥60 | 95 | 18,2 |
Escolaridade | ||
Até ensino fundamental completo | 49 | 9,4 |
Ensino médio completo | 184 | 35,3 |
Ensino superior completo ou mais | 283 | 54,3 |
Renda per capita (salários-mínimos) | ||
<3 | 364 | 70,0 |
3-6 | 128 | 24,6 |
>6 | 28 | 5,4 |
Circunferência de cintura | ||
Sem risco | 114 | 21,1 |
Com risco | 406 | 77,9 |
IMCa | ||
Baixo peso | 20 | 3,8 |
Adequado | 154 | 29,6 |
Excesso de peso | 346 | 66,6 |
Escore de risco de Framingham (pontuação) | ||
Alto | 51 | 9,8 |
Intermediário | 113 | 21,7 |
Baixo | 356 | 68,5 |
a) IMC: índice de massa corporal.
A Tabela 2 apresenta variáveis relacionadas à adiposidade. Entre os participantes, a média de IMC foi de 27,8 kg/m2 (DP=5,0); o percentual da MGT, de 36,2%; (DP=8,3) e a razão MGA%/MGG%, de 0,6 (DP=0,2).
Variáveis | Média | Desvio-padrão |
---|---|---|
Massa total (kg) | 77,6 | 15,3 |
Massa gorda total (%) | 36,2 | 8,3 |
Massa gorda androide (%) | 9,3 | 1,8 |
Massa gorda ginoide (%) | 16,9 | 3,1 |
Razão MGA%/MGG%a | 0,6 | 0,2 |
IMC (kg/m2)b | 27,8 | 5,0 |
Circunferência de cintura (cm) | 97,2 | 12,4 |
Escore de risco de Framingham (pontuação) | 6,5 | 7,0 |
a) Razão MGA%/MGG%: massa gorda androide %/massa gorda ginoide %; b) IMC: índice de massa corporal.
O risco para doenças cardiometabólicas, segundo a CC, foi identificado em 77,9% da população estudada, e o excesso de peso ou obesidade, em 66,6%. Entretanto, segundo o ERF, 68,5% dos participantes apresentaram baixo risco e 31,5% risco intermediário ou alto para desenvolvimento de DCV no prazo de dez anos.
Foram obtidos quatro padrões de consumo alimentar, denominados ‘ultraprocessados’, ‘saudável’, ‘carnes’ e ‘tradicional’. Este último inclui características de uma alimentação tradicional brasileira: ultraprocessados (massas; pães e biscoitos salgados; gorduras; doces; salgados e pizzas; refrigerantes; petiscos; carnes ultraprocessadas); saudável (frutas; hortaliças; aves e pescados frescos; leite e derivados; café e infusões; suco natural; leguminosas); carnes (vegetais em conserva; carne bovina e miúdos; carne suína; carnes e pescados processados; bebidas alcoólicas); e tradicional (arroz; feijão; cereais; raízes, tubérculos e derivados). O total de variância explicada pelos quatro padrões foi de 37,3% (Tabela 3).
Grupos de alimentos | Fatores (padrões alimentares) identificados | |||
---|---|---|---|---|
Ultraprocessados | Saudável | Carnes | Tradicional | |
Massas | 0,57 | 0,03 | 0,05 | 0,08 |
Pães e biscoitos salgados | 0,42 | 0,25 | -0,23 | 0,25 |
Gorduras | 0,46 | 0,06 | 0,15 | 0,31 |
Doces | 0,64 | 0,09 | -0,14 | 0,04 |
Salgados e pizzas | 0,69 | -0,09 | 0,18 | -0,06 |
Refrigerantes | 0,54 | -0,26 | 0,14 | 0,07 |
Petiscos | 0,58 | 0,03 | 0,21 | -0,01 |
Carnes ultraprocessadas | 0,58 | -0,07 | 0,35 | 0,04 |
Frutas | -0,09 | 0,69 | 0,10 | 0,16 |
Hortaliças | -0,16 | 0,70 | 0,24 | 0,17 |
Aves e pescados frescos | 0,08 | 0,32 | 0,04 | 0,08 |
Leite e derivados | 0,17 | 0,62 | -0,22 | 0,16 |
Café e infusões | 0,14 | 0,45 | 0,29 | 0,00 |
Suco natural | 0,04 | 0,32 | -0,20 | 0,17 |
Leguminosas | 0,05 | 0,48 | 0,16 | -0,15 |
Vegetais em conserva | 0,13 | 0,27 | 0,44 | -0,15 |
Carne bovina e miúdos | 0,18 | -0,03 | 0,56 | 0,25 |
Carne suína | 0,14 | -0,08 | 0,64 | 0,08 |
Carnes e pescados processados | 0,21 | 0,15 | 0,48 | 0,13 |
Bebidas alcoólicas | 0,01 | 0,07 | 0,49 | -0,10 |
Arroz | 0,01 | -0,09 | 0,02 | 0,74 |
Feijão | -0,45 | -0,01 | -0,01 | 0,78 |
Cereais | 0,15 | 0,21 | -0,01 | 0,38 |
Raízes, tubérculos e derivados | 0,26 | 0,18 | 0,10 | 0,41 |
Eigenvalues (autovalores) | 2,99 | 2,41 | 1,99 | 1,93 |
Variância explicada (%) | 11,95 | 9,63 | 7,97 | 7,73 |
Total de variância explicada (%) | 37,3 | |||
KMOa | 0,752 | |||
Esfericidade de Bartlett | 0,001 |
a) KMO: Kaiser-Meyer-Olkin Measure of Sampling Adequacy.
Na Tabela 4, são apresentados os coeficientes, brutos e ajustados, para observação das associações entre os padrões e cada um dos desfechos. Na análise bivariada, encontrou-se associação inversa entre o padrão ‘ultraprocessados’ e o escore de risco de Framingham (ß=-0,52 - IC95% -1,01;-0,02), e entre o padrão ‘carnes’ e a CC (ß=-1,33 - IC95% -2,42;-0,24) e o índice de massa corporal (ß=-0,44 - IC95% -0,87;-0,01). Após o ajuste, o padrão ‘carnes’ mostrou-se inversamente associado com a CC (ß=-1,52 - IC95% -2,65;-0,38), o índice de massa corporal (ß=-0,56 - IC95% -1,00;-0,10) e o escore de risco de Framingham (ß=-0,36 - IC95% -0,63;-0,09). Quanto aos demais padrões, não se identificou associação com qualquer dos desfechos avaliados.
Variáveis | β não ajustado | IC95%a | p-valor | β ajustadob | IC95%a | p-valor |
---|---|---|---|---|---|---|
Massa gorda Total (%) | ||||||
Padrão ‘ultraprocessados’ | 0,64 | (-0,08;1,37) | 0,082 | 0,06 | (-0,84;0,96) | 0,890 |
Padrão ‘saudável’ | 0,38 | (-0,34;1,11) | 0,303 | 0,06 | (-0,70;0,83) | 0,871 |
Padrão ‘carnes’ | -0,22 | (-0,95;0,50) | 0,551 | -0,42 | (-1,17;0,33) | 0,275 |
Padrão ‘tradicional’ | 0,70 | (-0,02;1,43) | 0,055 | 0,23 | (-0,61;1,07) | 0,586 |
Massa gorda androide (%) | ||||||
Padrão ‘ultraprocessados’ | 0,06 | (-0,09;0,22) | 0,439 | -0,02 | (-0,21;0,17) | 0,833 |
Padrão ‘saudável’ | 0,08 | (-0,06;0,24) | 0,271 | 0,06 | (-0,10;0,23) | 0,461 |
Padrão ‘carnes’ | -0,10 | (-0,26;0,04) | 0,173 | -0,14 | (-0,31;0,01) | 0,083 |
Padrão ‘tradicional’ | -0,10 | (-0,26;0,04) | 0,177 | -0,15 | (-0,33;0,03) | 0,101 |
Massa gorda ginoide (%) | ||||||
Padrão ‘ultraprocessados’ | -0,11 | (-0,38;0,15) | 0,415 | -0,22 | (-0,56;0,10) | 0,183 |
Padrão ‘saudável’ | 0,11 | (-0,15;0,38) | 0,394 | 0,02 | (-0,25;0,31) | 0,848 |
Padrão ‘carnes’ | 0,17 | (-0,08;0,44) | 0,191 | 0,15 | (-0,12;0,43) | 0,279 |
Padrão ‘tradicional’ | 0,22 | (-0,04;0,49) | 0,104 | 0,04 | (-0,26;0,36) | 0,761 |
Razão MGA%/MGG%c | ||||||
Padrão ‘ultraprocessados’ | 0,01 | (-0,07;0,02) | 0,281 | 0,01 | (-0,01;0,02) | 0,496 |
Padrão ‘saudável’ | 0,01 | (-0,01;0,01) | 0,792 | 0,01 | (-0,01;0,20) | 0,733 |
Padrão ‘carnes’ | -0,01 | (-0,02;0,02) | 0,169 | -0,01 | (-0,02;0,01) | 0,132 |
Padrão ‘tradicional’ | -0,01 | (-0,03;0,02) | 0,071 | -0,01 | (-0,03;0,01) | 0,162 |
Circunferência de cintura | ||||||
Padrão ‘ultraprocessados’ | 0,43 | (-0,66;1,52) | 0,430 | 0,06 | (-1,29;1,42) | 0,924 |
Padrão ‘saudável’ | 0,79 | (-0,29;1,88) | 0,151 | 0,69 | (-0,46;1,85) | 0,235 |
Padrão ‘carnes’ | -1,33 | (-2,42;-0,24) | 0,012 | -1,52 | (-2,65;-0,38) | 0,009 |
Padrão ‘tradicional’ | -0,25 | (-1,34;0,84) | 0,656 | -0,41 | (-1,67;0,85) | 0,522 |
IMCd | ||||||
Padrão ‘ultraprocessados’ | 0,20 | (-0,22;0,63) | 0,351 | 0,10 | (-0,43;0,64) | 0,709 |
Padrão ‘saudável’ | 0,29 | (-0,13;0,72) | 0,182 | 0,23 | (-0,22;0,69) | 0,308 |
Padrão ‘carnes’ | -0,44 | (-0,87;-0,01) | 0,043 | -0,56 | (-1,00;-0,10) | 0,015 |
Padrão ‘tradicional’ | -0,10 | (-0,54;0,32) | 0,638 | -0,20 | (-0,70;0,29) | 0,427 |
Escore de risco de Framingham | ||||||
Padrão ‘ultraprocessados’ | -0,52 | (-1,01;-0,02) | 0,040 | 0,11 | (-0,21;0,44) | 0,483 |
Padrão ‘saudável’ | -0,24 | (-0,73;0,25) | 0,341 | 0,25 | (-0,02;0,52) | 0,072 |
Padrão ‘carnes’ | -0,00 | (-0,50;0,49) | 0,982 | -0,36 | (-0,63;-0,09) | 0,009 |
Padrão ‘tradicional’ | -0,09 | (-0,58;0,40) | 0,724 | 0,16 | (-0,13;0,46) | 0,280 |
a) IC95%: intervalo de confiança de 95%; b) Regressão linear por mínimos quadrados, ajustada por sexo, escolaridade, renda per capita, idade e energia (consumo total de calorias); c) Razão MGA%/MGG%: massa gorda androide %/massa gorda ginoide %; d) IMC: índice de massa corporal.
Discussão
As análises realizadas revelaram quatros padrões alimentares, denominados ‘ultraprocessados’, ‘saudável’, ‘carnes’ e ‘tradicional’, além da associação entre o padrão de consumo ‘carnes’ e excesso de peso, e risco de desenvolvimento de DCV segundo ERF.
Apesar de o consumo alimentar sofrer influências regionais e culturais, padrões de consumo alimentar similares aos identificados foram descritos por outros autores na França,19 China,20 Estados Unidos21 e, ainda, no Brasil.22 De maneira geral, os padrões usualmente reconhecidos como tradicionais refletem aqueles alimentos mais consumidos pela população estudada e que, usualmente, são de menor custo.22
O padrão ‘carnes’, composto pelas carnes bovina e suína, carnes e pescados processados, vegetais em conserva e bebidas alcoólicas, foi inversamente associado à CC, IMC e ERF. Este achado contrasta com a literatura, que sinaliza os padrões ditos saudáveis ou prudentes como protetores frente aos parâmetros de obesidade. Contudo, observou-se que o conteúdo de proteínas da dieta resulta em uma redução de carboidratos, gerando um déficit calórico de aproximadamente 6%, favorável a perda ou manutenção de peso.23
Alguns potenciais mecanismos explicativos estão relacionados ao fato de o consumo de alimentos ricos em proteínas promover um balanço negativo de gorduras, e consequentemente a redução do estoque de gordura corporal. Um desses mecanismos está relacionado ao efeito térmico da proteína, maior que o do carboidrato ou gordura. Além disso a proteína, geralmente, exerce efeito de saciedade maior que outros macronutrientes, parcialmente mediado por um efeito sinérgico dos hormônios sociogênicos (glucagon-like peptide-1 [GLP-1] e peptídeo YY [PYY]) liberados no intestino delgado. Outros mecanismos envolvem a redução da secreção hormonal orexigênica (grelina) e alterações induzidas pelas proteínas na gliconeogênese, melhorando a homeostase da glicose.24
Observou-se que o consumo de bebidas alcóolicas estava presente no padrão denominado ‘carnes’, e deve ser ressaltado. A literatura mostra que o consumo habitual de álcool de forma leve a moderada (1 a 2 doses/dia) está associado a menor risco de mortalidade total, por diabetes mellitus ou DCV. Estes achados podem estar relacionados à ação do etanol na diminuição da agregação plaquetária e seu efeito no aumento das lipoproteínas de alta densidade (HDL-c), além das atividades antioxidantes de algumas bebidas.25 Entretanto, o consumo de bebidas alcoólicas de forma excessiva (>4 doses/dia) está associado a um maior risco de morte e presença de DCV.25
O efeito do consumo de álcool em relação à composição corporal é controverso. Em uma revisão sistemática de estudos sobre o tema, encontram-se alguns estudos que reportaram que indivíduos com baixo a médio consumo de álcool apresentaram um peso menor, em comparação aos que nunca bebiam e àqueles com consumo excessivo de álcool, enquanto outros estudos mostraram um efeito positivo do álcool no IMC.26
Uma investigação realizada com a mesma população do presente estudo demonstrou baixo consumo de álcool: 41%, 41% e 18% relataram não consumir qualquer tipo de bebida alcoólica, consumir até uma dose por dia e mais de uma dose por dia, respectivamente.27 Tais resultados corroboram o entendimento das associações encontradas, relacionadas com o aumento do IMC.
Os padrões alimentares identificados como saudáveis ou prudentes incluem alimentos como frutas, legumes, hortaliças e cereais, associados a melhores desfechos em saúde. Por sua vez, os padrões denominados processados, ou ‘ocidentais’, refletem maior consumo de açúcares, gorduras, sódio e energia, inversamente associados aos desfechos de saúde.28
Estudos com a população brasileira observaram relação entre o consumo de um padrão tradicional (arroz e feijão) e complicações metabólicas,22,29 embora no presente estudo não tenha sido detectada tal associação. Em uma pesquisa com participantes da linha de base do Estudo Longitudinal de Saúde do Adulto (ELSA-Brasil, 2008-2010), identificou-se que o padrão tradicional (feijão, arroz branco, carnes processadas e frescas, e cerveja) esteve relacionado a um maior diagnóstico de diabetes mellitus e à síndrome metabólica. Ressalta-se que foram identificados quatro padrões de alimentos, similares aos identificados no presente trabalho.29 Todavia, autores observaram associação inversa entre esse padrão tradicional e o sobrepeso/obesidade em mulheres.22 Os padrões tradicionais representam características particulares das populações estudadas, apesar de o padrão ‘tradicional’ ser majoritariamente representado pelo padrão ocidental associado ao padrão prudente ou saudável.
Aqui, identificou-se um padrão denominado ‘saudável’, composto por alimentos como frutas, hortaliças, aves e pescados frescos, leite e derivados, café e infusões, suco natural e leguminosas. Outros estudos revelaram associação inversa do padrão saudável com eventos cardiovasculares.8-10 Entre homens chineses, um padrão de consumo caracterizado por frutas e leite esteve inversamente associado à hipertensão arterial sistêmica. O mesmo padrão associou-se a baixos níveis de pressão arterial, diabetes mellitus e menor risco de DCV entre adultos, e a um menor risco de hipertensão arterial para mulheres em dieta DASH.30
A qualidade da alimentação e o estilo de vida ativo são duas condições fundamentais para prevenir e controlar os riscos modificáveis para DCV e obesidade.1 Logo, conhecer os principais padrões alimentares relacionados a proteção ou risco dessas morbidades é de suma importância nas estratégias de saúde pública.
Este estudo apresenta, como principal limitação, seu delineamento transversal, que enfraquece inferências, de natureza causal, das associações entre os padrões de alimentos consumidos, excesso de peso e risco cardiovascular. Os participantes do Estudo Pró-Saúde são servidores públicos, o que torna possível a ocorrência de viés do trabalhador saudável, dadas as melhores condições dessa população para a manutenção de sua saúde e cumprimento de dieta, em comparação à média da população. Salienta-se que o instrumento utilizado na avaliação do consumo de alimentos é passível de erros, visto ser um instrumento retrospectivo, dependente da memória do entrevistado, das escolhas individuais, além da quantificação e classificação dos alimentos, mesmo em se tratando de um instrumento validado.16
Embora métodos mais precisos sejam utilizados para avaliar gordura abdominal, deve-se considerar a CC como boa preditora de risco cardiometabólico, haja vista ser uma medida prática e de baixo custo, além do uso do ERF na predição do risco cardiovascular.18
Este estudo foi o primeiro no Brasil a utilizar padrão de consumo alimentar e que, ao adotar questionário de frequência alimentar relacionado a dados da composição corporal, como massa gorda total, androide e ginoide, mensurados via DXA, padrão ouro para aferição antropométrica, superou limitações de estudos prévios que utilizaram antropometria duplamente indireta. Foram realizadas análises de observação entre os padrões de consumo e o sexo; contudo, as direções das associações não foram alteradas.
Diante de elevadas prevalências de excesso de peso e do risco de DCV, e da associação inversa observada, relacionada ao padrão alimentar de ‘carnes’ e o IMC, mostra-se importante a condução de novas investigações prospectivas que auxiliem o entendimento do papel da alimentação no desenvolvimento de doenças cardiovasculares.