Introdução
A Estratégia Saúde da Família (ESF) está na centralidade das ações e investimentos governamentais para reorientação do modelo de atenção à saúde. Sob a perspectiva do modelo integral de vigilância da saúde, a ESF incorpora tecnologias leves do cuidado em ações multiprofissionais de oferta organizada e programática, integradas às intervenções nos determinantes sociais e às políticas públicas, espaço privilegiado da promoção da saúde.1
Entre 1998 e 2018, houve expressiva ampliação do número de equipes de Saúde da Família. Dados nacionais mostram que, em 1998, havia 2 mil equipes para atender 7 milhões de pessoas, 4% da população brasileira,2 ao passo que, vinte anos depois, em 2018, eram 43 mil equipes responsáveis pela atenção primária à saúde de 134 milhões de pessoas, 64,7% da população. Em relação às equipes de saúde bucal, também houve crescimento expressivo, de 615 equipes, em 2003, para 25.905 em 2017, atingindo cobertura de 36,7% da população do Brasil. Estas ampliações tiveram efeito positivo em vários desfechos de saúde.3-6
A infância e a adolescência são momentos particularmente relevantes para o estudo da utilização de serviços de saúde bucal. De certa forma, as idades de crescimento refletem o contexto familiar na busca por serviços odontológicos. Fatores sociodemográficos, psicossociais e de estilo de vida adotado pelo indivíduo/família podem influenciar seus hábitos e comportamentos de saúde, em todas as etapas da vida,7 embora intervenções preventivas em crianças e adolescentes não sejam suficientes para impactar positivamente a saúde e a qualidade de vida na fase adulta. Vários fatores determinantes, estruturais (no nível organizacional dos serviços) e sociais, devem ser considerados no processo saúde-doença, reforçando a importância dos serviços de atenção primária à saúde (APS) na organização do acesso e da oferta da atenção integral às crianças e adolescentes, enfatizando o papel preventivo e protetor dos serviços de saúde nessas idades.8,9
Entretanto, a necessidade de tratamentos, como para cárie e dor, é um dos principais motivos da utilização de serviços odontológicos entre adolescentes.9 A procura por um serviço de saúde é um fenômeno complexo, segundo os diferentes contextos, e necessita ser melhor compreendido. A utilização desses serviços orientada por problemas odontológicos está associada a fatores individuais, como a insatisfação com a própria saúde bucal9 e o consumo elevado de açúcares,7 fatores contextuais, a exemplo da maior cobertura da população por cirurgiões-dentistas.9 O Ministério da Saúde preconiza 50% de cobertura populacional na Atenção Básica do Sistema Único de Saúde (SUS), como potencial indicador da oferta de serviços.10
As iniquidades em saúde bucal continuam a representar um grande desafio para a Saúde Pública.11-13 O modelo de Sisson12 fornece uma visão geral das iniquidades em saúde bucal, explicadas por quatro áreas de domínio principais: (i) a material, ligada à posição de um indivíduo na estrutura social, medida pelo status socioeconômico (SES), como escolaridade e renda familiar; (ii) a cultural/comportamental (p. ex.: escolhas prejudiciais à saúde, como o consumo de alimentos não saudáveis, e o uso dos serviços para tratamento ao invés da prevenção); (iii) a contextual (p. ex.: cobertura populacional de cirurgiões dentistas); e (iv) as características individuais (p. ex.: sexo e raça/cor da pele autodeclarada).
O presente estudo teve o objetivo de analisar a associação entre a cobertura de equipes de saúde bucal na Estratégia Saúde da Família (ESF-SB) e a utilização de serviços odontológicos por adolescentes de 12 anos no estado de Mato Grosso do Sul, Brasil, em 2019.
Métodos
Trata-se de um estudo de base escolar e populacional, conduzido nas cinco cidades do estado de Mato Grosso do Sul com mais de 80 mil habitantes: Campo Grande, Corumbá, Dourados, Ponta Porã e Três Lagoas. Realizado no período de abril de 2018 a fevereiro de 2019,o estudo, conhecido pela sigla SBMS 2018/2019, também incluiu outras faixas etárias, como crianças de 5 anos, adultos e idosos.
Em 2018, estimativas populacionais apontavam para Campo Grande, capital e maior cidade do estado, com 860 mil hab. A população de Dourados, segunda maior cidade de Mato Grosso do Sul, era estimada em aproximadamente 221.925 hab. Somadas a Corumbá (119.465 hab.), Três Lagoas (119.464 hab.) e Ponta Porã (92.526 hab.), as cinco cidades representavam mais da metade dos 2.748.023 habitantes dos 79 municípios do estado.14 Ademais, são as cidades mais representativas das quatro macrorregiões territoriais do estado (Dourados e Ponta Porã estão na mesma macrorregião) e suas principais áreas afluentes.
Participantes
Todos os alunos matriculados foram considerados elegíveis para o estudo, cujos critérios de exclusão descartaram de análise os alunos eventualmente transferidos para outras escolas ou infrequentes por motivos de saúde. Mediante sorteio na faixa etária de interesse (12 anos), realizado a partir de uma lista da coordenação do conselho diretor/gestor, foram selecionados até dez alunos dessa idade por sala de aula. Se houvesse mais de uma sala de aula, eram sorteados os alunos respeitando igual proporcionalidade por sala.
Variáveis analisadas
Nos modelos de equações estruturais, a variável de desfecho foi definida como ‘utilização de serviços odontológicos nos últimos três anos’, obtida por meio de uma pergunta dirigida ao responsável pelo adolescente - Quando seu filho consultou o dentista pela última vez? - e as seguintes opções de resposta: menos de um ano; entre um e dois anos; entre dois e três anos; mais de três anos; nunca foi; não sabe. Essa variável foi dicotomizada entre ‘Sim’ (usou nos últimos três anos) e ‘Não’ (usou mais de três anos atrás, nunca foi ou não sabe). Este foi o ponto de corte estabelecido porque, entre os relatos de uso de serviços odontológicos, nenhum responsável pelo adolescente mencionou uso dos serviços por um período maior do que três anos.
Para a estimativa da população coberta pela ESF-SB, considerou-se o parâmetro de 3.450 indivíduos cobertos por equipe de saúde bucal. O cálculo final da amostra estimou o percentual da população coberta pela ESF-SB15 no mês de referência escolhido, dezembro de 2018, para cada cidade participante. Os dados originaram-se da plataforma E-gestor, do Ministério da Saúde.15 A variável ‘cobertura pela ESF-SB’ foi dicotomizada - abaixo de 50%; igual ou acima de 50% - e estimada por município.10
A frequência semanal de consumo de alimentos não saudáveis também foi investigada. Para isso, utilizou-se um instrumento recomendado pelo Ministério da Saúde,16 contemplando cinco grupos alimentares sobre os quais os adolescentes informaram o consumo: (1) batata frita, batata de pacote e salgados fritos (coxinha, quibe, pastel etc.); (2) hambúrguer e embutidos (salsicha, mortadela, salame, presunto, linguiça etc.); (3) bolachas/biscoitos salgados ou salgadinhos de pacote; (4) bolachas/biscoitos doces ou recheados, doces, balas e chocolates (em barras ou bombons); e (5) refrigerantes regularmente. O consumo alimentar não saudável semanal foi obtido pela soma das frequências dos cinco grupos alimentares, dividida por cinco. Logo, estratificou-se o consumo semanal de alimentos não saudáveis da seguinte forma: baixo, até 2 vezes/semana; moderado, 2 a 4 vezes/semana; e alto, 4 ou mais vezes/semana.
Sexo e raça/cor da pele [branco; não branco (preto, pardo, amarelo ou indígena)] foram autodeclarados. A renda familiar per capita foi categorizada da seguinte forma: abaixo do nível de pobreza; igual ou acima do nível de pobreza. No contexto brasileiro, o limite da pobreza foi estabelecido pelo ganho mensal familiar de até R$ 466,00 em 2018.14 O nível educacional da mãe (em anos de estudo) foi dicotomizado em: 1 a 4 anos; acima de 4 anos. Com a renda familiar e a escolaridade da mãe, criou-se uma variável de tipo latente, aplicada ao modelo de equação estrutural. O tipo de serviço odontológico utilizado na última consulta realizada pelo adolescente foi caracterizado como privado/particular ou público, e o motivo da utilização do serviço odontológico da última consulta, dicotomizado entre uso para tratamento e uso para prevenção.
Tamanho da amostra
No cálculo do tamanho da amostra, utilizou-se a fórmula proposta por Silva17 para a estimativa de prevalência de utilização de serviços por adolescentes brasileiros. Dados de uso de serviços de saúde bucal por adolescentes de 12 anos da região Centro-Oeste, participantes do SBBrasil 2010,18 foram utilizados como parâmetro.
Adotou-se a amostragem probabilística por conglomerado. As cinco cidades participantes foram pré-selecionadas e consideradas as unidades primárias de amostragem (UPA). As escolas públicas municipais de ensino fundamental foram as unidades amostrais secundárias (UAS). O maior levantamento epidemiológico nacional de saúde bucal, o SBBrasil 2010,18 selecionou 32 unidades secundárias de amostragem por cidade. Assim, considerou-se selecionar - aleatoriamente - 32 escolas nas duas maiores cidades (ambas têm mais de 32 escolas) e todas as escolas nas três restantes.
O levantamento nacional apontou que 79,8% dos adolescentes relataram usar serviços odontológicos. O efeito de desenho ‘deff’ de 2,0, o intervalo de confiança de 95% e 20% de taxa de perdas foram considerados. O cálculo da amostra para análise do uso dos serviços consistiu de 536 adolescentes.
Calibração de equipes de saúde bucal
Cinco equipes de saúde bucal, por cada município, compostas por um dentista e um anotador, tiveram 32 horas de treinamento prático e teórico para se integrar à pesquisa.19 A calibração intra e interexaminador apresentou o coeficiente de Kappa de 0.73.19
Coleta de dados
Por meio de questionário, o mesmo aplicado no SBBrasil 2010,18 entregue aos responsáveis pelo adolescente, foram preenchidas as questões sociodemográficas, sendo o sexo e a raça/cor da pele autorreferidos. O adolescente devolvia o questionário preenchido e, no ambiente escolar, respondia a outro questionário, sobre seus hábitos alimentares. Em seguida, cada adolescente participante recebia um exame epidemiológico bucal.19
Análise estatística
Foram realizadas análises descritivas de proporção, considerando-se o peso amostral, e análises de modelos de equações estruturais. Essas análises permitiram estabelecer relações de associação entre as variáveis independentes e seus desfechos, com a vantagem de se utilizar apenas um modelo confirmatório.19,20 O modelo de equação estrutural foi utilizado para estimar possíveis associações entre as variáveis de explicação materiais, contextuais, comportamentais de saúde e sociodemográficas, e a utilização dos serviços odontológicos. No modelo realizado, utilizaram-se os coeficientes robustos para interpretação, estimando-se efeitos diretos e indiretos, e os potenciais caminhos para as associações, sendo considerada a complexidade da amostra. O modelo interpretativo de Sisson,12 elaborado para explicar as iniquidades em saúde bucal, foi adotado como referencial para a análise. Foram utilizadas variáveis que apoiam (i) a explicação material, ligada à posição de um indivíduo na estrutura social, medida pelo status socioeconômico, (ii) as explicações culturais/comportamentais, medidas pelo consumo de alimentos não saudáveis e uso de serviços para tratamento de cárie e dor, em detrimento da prevenção, e (iii) a perspectiva contextual, medida pela cobertura da ESF e tipo de serviço utilizado, se público ou privado. A Figura 1 retrata a representação gráfica do modelo testado. As variáveis desenhadas em retângulo são observáveis. A elipse, variável construída a partir de variáveis observáveis (renda e escolaridade), é uma variável que melhor representa o status socioeconômico familiar. As setas indicam potenciais caminhos de associação entre as variáveis.

Nota: SES: status socioeconômico; ESF: cobertura de saúde bucal pela Estratégia Saúde da Família.
Figura 1 Representação gráfica do modelo teórico aplicado ao Estudo de Saúde Bucal de Mato Grosso do Sul, 2018/2019
A qualidade do ajuste dos modelos foi avaliada pelo coeficiente de determinação (CD) e complementada pela aplicação do erro quadrático médio de aproximação (RMSEA), em que valores inferiores ou iguais a 0,08 são considerados adequados. O índice comparativo de ajuste (CFI) e o índice de Tucker-Lewis (TLI) forneceram confiabilidade adicional; e os valores acima de 0,80 foram considerados adequados.20,21 Todas as análises foram realizadas com uso do programa STATA versão 14.2 (College Station, TX, USA).
Aspectos éticos
O projeto da pesquisa foi submetido ao Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (CEP/UFMS) e aprovado pelo Parecer nº 2.596.211, emitido em 12 de abril de 2018 (Certificado de Apresentação para Apreciação Ética (CAAE) nº 85647518.4.0000.0021), com base nas diretrizes éticas previstas na Resolução do Conselho Nacional de Saúde (CNS) nº 466, de 12 de dezembro de 2012. Todos os participantes assinaram o Termo de Assentimento Livre e Esclarecido; e seus responsáveis, o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido.
Resultados
Participaram do estudo 615 adolescentes com 12 anos. Na Tabela 1, considerando-se os pesos amostrais, observou-se que 43,9% deles se autodeclararam brancos, 51,2% eram do sexo feminino e 61,1% apresentavam renda familiar per capita acima do nível da pobreza; 62,0% de suas mães tinham até quatro anos de estudo. Em relação à cobertura da ESF-SB, 55,3% se encontravam em um contexto de cobertura inferior a 50%, e destes, 56,8% utilizaram os serviços odontológicos nos últimos três anos. Dos 44,7% que estavam sob cobertura da ESF-SB igual ou acima de 50%, 90,8% relataram ter usado os serviços odontológicos nos últimos três anos. Com relação à alimentação, 35,3% dos participantes relataram alto consumo de alimentos não saudáveis (4 a 7 vezes por semana), e destes, 85,4% utilizaram o serviço odontológico nos últimos três anos.
Tabela 1 Características individuais e contextuais, valores absolutos e proporções considerando-se os pesos amostrais, entre adolescentes de 12 anos de idade (n=615), segundo uso de serviços odontológicos, Estudo de Saúde Bucal de Mato Grosso do Sul, 2018/2019
Variáveis | Distribuição da amostra | Uso de serviços odontológicos | ||
---|---|---|---|---|
n=615 | % | N | (IC95%a) | |
Individuais | ||||
Raça/cor da pele | ||||
Brancos | 270 | 43,9 | 202 | 75,4 (54,2;85,1) |
Pardos | 266 | 43,3 | 193 | 71,7 (52,2;83,1) |
Amarelos | 24 | 3,9 | 23 | 97,4 (86,2;99,6) |
Pretos | 32 | 5,3 | 21 | 62,4 (42,4;78,9) |
Indígenas | 6 | 0,9 | 5 | 76,7 (72,5;80,3) |
Não declarados | 17 | 2,8 | 11 | 64,7 (38,9;84,0) |
Sexo | ||||
Feminino | 315 | 51,2 | 237 | 75,6 (50,6;89,4) |
Masculino | 300 | 48,8 | 218 | 72,9 (46,4;88,4) |
Renda familiar per capita | ||||
Abaixo do nível de pobreza | 216 | 35,1 | 177 | 87,6 (78,3;93,2) |
Acima do nível de pobreza | 376 | 61,1 | 278 | 61,8 (41,3;78,8) |
Escolaridade da mãe (anos de estudo) | ||||
1 a 4 | 381 | 62,0 | 239 | 57,0 (38,1;74,0) |
Acima de 4 | 234 | 38,0 | 216 | 91,8 (83,0;96,3) |
Contextuais | ||||
ESF-SBb | ||||
Abaixo de 50% | 340 | 55,3 | 217 | 56,8 (37,4;74,4) |
Igual ou acima de 50% | 275 | 44,7 | 238 | 90,8 (84,6;94,6) |
Alimentação não saudável | ||||
Baixa (até 2 vezes/semana) | 168 | 27,3 | 73 | 30,8 (16,0;50,9) |
Moderada (2 a 4 vezes/semana) | 197 | 32,0 | 179 | 91,9 (80,0;97,1) |
Alta (4 a 7 vezes/semana) | 217 | 35,3 | 187 | 85,4 (77,5;90,8) |
Não declarada | 33 | 5,4 | 16 | 46,8 (34,5;59,5) |
a) IC95%: intervalo de confiança de 95%; b) ESF-SB: cobertura de saúde bucal pela Estratégia Saúde da Família.
A Tabela 2 mostra que 74,0% dos participantes utilizaram os serviços odontológicos nos últimos três anos. Quanto ao tipo de serviço utilizado, 56,7% relataram o serviço odontológico público, e 43,3%, o privado. Sobre o motivo da utilização, 46,2% procuraram o serviço odontológico para prevenção e 53,8% para tratamento.
Tabela 2 Distribuição, absoluta e relativa, de adolescentes de 12 anos de idade (n=615), segundo o uso de serviços odontológicos nos últimos três anos, por motivo e por tipo de serviço, Estudo de Saúde Bucal de Mato Grosso do Sul, 2018/2019
Uso de serviços odontológicos | N | (IC95%a) |
---|---|---|
Utilizou nos últimos três anos | ||
Sim | 455 | 74,0 (70,4;77,3) |
Não | 160 | 26,0 (22,7;29,6) |
Tipo de serviço (entre os que usaram os serviços nos últimos três anos) | ||
Público | 258 | 56,7 (52,1;61,2) |
Privado | 197 | 43,3 (38,8;47,9) |
Motivo da utilização | ||
Preventivo | 210 | 46,2 (41,6;50,8) |
Tratamento | 245 | 53,8 (49,2;58,4) |
a) IC95%: intervalo de confiança de 95%.
A Tabela 3 mostra os resultados do modelo de equação estrutural, segundo referencial teórico de Sisson, com as variáveis individuais (sexo; raça/cor da pele), comportamentais de saúde (alimentação não saudável; uso de serviço odontológico para prevenção), de explicação material (renda familiar; escolaridade materna) e contextuais (cobertura da ESF-SB ≥50%). Observou-se que a utilização dos serviços odontológicos nos últimos três anos esteve associada ao status socioeconômico mais alto (CP = 0,79; p<0,001), raça/cor da pele autodeclarada branca (CP = 0,14; p<0,001) e maior consumo de alimentos não saudáveis (CP = 0,30; p<0,001). Os adolescentes brancos utilizaram os serviços odontológicos majoritariamente para prevenção, e menos os serviços públicos, comparados aos não brancos. A maior cobertura da ESF-SB esteve positivamente relacionada com maior consumo de alimentos não saudáveis (CP = 0,19; p<0,001), utilização dos serviços odontológicos públicos (CP = 0,10 - p=0,045) e menor uso dos serviços para prevenção (CP = -0,07; p=0,067). Foi identificada uma associação indireta, via consumo de alimentos não saudáveis, que mediou a associação da maior cobertura da ESF-SB com o maior uso dos serviços odontológicos nos últimos três anos.
Tabela 3 Associações, por meio do modelo de equações estruturais, entre as variáveis analisadas e seus respectivos desfechos, entre adolescentes de 12 anos de idade (n=615), Estudo de Saúde Bucal de Mato Grosso do Sul, 2018/2019
Efeitos | CPa (erro-padrão) robusto | (IC95%b) | p-valor |
---|---|---|---|
Efeitos diretos | |||
Sociodemográficas | |||
Sexo → Uso | 0,04 (0,03) | (-0,02;0,09) | 0,563 |
SESc → Uso | 0,49 (0,16) | (0,35;0,62) | <0,001 |
SESc → Alimentação inadequada | -0,02 (0,05) | (-0,09;0,05) | 0,534 |
Brancos → Uso | 0,14 (0,06) | (0,07;0,20) | <0,001 |
Brancos → Checkups | 0,24 (0,08) | (0,14;0,32) | 0,023 |
Brancos → Público | -0,22 (0,10) | (-0,32;-0,12) | <0,001 |
Variável latente SESc | |||
Renda → SESc | 0,79 (0,10) | (0,69;0,89) | <0,001 |
Escolaridade → SESc | 0,69 (0,10) | (0,59;0,89) | <0,001 |
Comportamentos de saúde | |||
Alimentação inadequada → Uso | 0,30 (0,10) | (0,20;0,40) | <0,001 |
Alimentação inadequada → Checkups | -0,18 (0,06) | (-0,38;-0,07) | 0,001 |
Contextual | |||
ESF-SBd → Uso | -0,02 (0,05) | (-0,09;0,08) | 0,904 |
ESF-SBd → Alimentação inadequada | 0,19 (0,07) | (0,11;0,26) | <0,001 |
ESF-SBd → Público | 0,10 (0,07) | (0,01;0,18) | 0,045 |
ESF-SBd → Checkups | -0,07 (0,05) | (-0,17;0,01) | 0,067 |
Público → Checkups | -0,06 (0,03) | (-0,15;0,03) | 0,185 |
Efeitos indiretos | |||
Via consumo inadequado | |||
ESF-SBd → Uso serviços | 0,05 (0,02) | (0,02;0,07) | <0,001 |
ESF-SBd → Checkups | -0,04 (0,02) | (-0,07;-0,02) | 0,005 |
Efeito total | |||
ESF-SBd → Uso | 0,04 (0,06) | (-0,04;0,12) | 0,297 |
ESF-SBd → Checkups | -0,11 (0,06) | (-0,21;-0,03) | 0,007 |
Covariâncias | |||
SESc ↔ Brancos | 0,11 (0,05) | (0,04;0,20) | 0,005 |
Qualidade de ajuste do modelo | |||
AICe | 7110 | ||
BICf | 7300 | ||
Log likelihood | -3512 | ||
Coeficiente de determinação | 0,80 | ||
CFIg | 0,88 | ||
TLIh | 0,85 | ||
RMSEAi | 0,08 |
a) CP: coeficiente padronizado; b) IC95%: intervalo de confiança de 95%; c) SES: status socioeconômico; d) ESF-SB: cobertura de saúde bucal pela Estratégia Saúde da Família; e) AIC: critério de informação de Akaike; f) BIC: critério de informação Bayesian; g) CFI: índice comparativo de qualidade; h) TLI: índice de Tucker-Lewis; i) RMSEA: erro quadrático médio de aproximação.
Discussão
O estudo, realizado com adolescentes escolares das cinco cidades de Mato Grasso do Sul com mais de 80 mil hab., revelou três achados importantes. O primeiro foi a associação entre a maior cobertura da ESF-SB, o maior uso de serviços odontológicos da rede pública e a utilização dos serviços para tratamento. O segundo achado importante foi a associação da maior frequência de consumo semanal de alimentos não saudáveis com o maior uso de serviços odontológicos para tratamento do que para prevenção, mediando, parcialmente, a relação entre maior cobertura de ESF-SB e maior uso de serviços odontológicos. O terceiro achado de importância considerável foi o uso mais frequente dos serviços odontológicos privados, e para cuidados de prevenção, por adolescentes autodeclarados brancos - em relação aos não brancos.
Nos locais onde a cobertura de ESF-SB foi igual ou superior a 50%, observou-se um maior percentual de uso de serviços odontológicos públicos, revelando a influência que os fatores contextuais operam sobre as escolhas individuais. Nesse sentido, deve-se ponderar que maiores coberturas de ESF-SB ocorrem em municípios de menor porte populacional, localidades onde a oferta de serviços odontológicos privados é mais baixa, tornando o serviço público a principal fonte de acesso aos cuidados com a saúde bucal. Este resultado, particularmente, reforça a importância dos serviços odontológicos públicos para a redução das desigualdades no acesso aos cuidados em saúde bucal.
Com a reorientação do modelo assistencial para o de promoção da saúde no SUS,2 o papel da APS passa a ser o de prestar serviços voltados à atenção integral da população. Em termos gerais, associadas ao significativo aumento da cobertura populacional pela ESF, há evidências dos impactos positivos da Saúde da Família sobre importantes indicadores de saúde,4 principalmente na diminuição das internações por condições sensíveis à atenção primária à saúde.5
Os resultados apresentados revelaram que a maior cobertura da ESF-SB esteve associada a maior uso dos serviços para tratamento do que para prevenção, ao contrário da hipótese dos autores do estudo. A demanda reprimida por tratamentos odontológicos é grande no Brasil,9 impondo aos serviços odontológicos públicos o desafio de equilibrar as ações de prevenção e assistência curativa. Apesar de não se haver analisado causalidade e sim fatores associados, esse achado contribuiu para o debate sobre a necessidade de a ESF-SB qualificar o processo de trabalho, principalmente no que toca à ampliação da prevenção e educação em saúde, por um modelo de atenção integral à saúde dos adolescentes.
Cobertura de ESF-SB igual ou acima de 50% também se associou à maior frequência de consumo semanal de alimentos considerados não saudáveis, o que, por sua vez, mediou parcialmente a relação entre cobertura de ESF-SB e uso de serviços odontológicos para tratamento. Um estudo realizado com adolescentes no Rio Grande do Sul, em 2009, mostrou que o consumo de açúcares foi o maior preditor para uso de serviços odontológicos curativos.7 A relação causal entre consumo de açúcares e cárie é bem estabelecida na literatura:7 quanto maior a frequência de consumo, maior a probabilidade de ocorrência da doença. A cárie é o principal motivo para busca de tratamento odontológico em adolescentes9 e, possivelmente, explica a relação encontrada entre o consumo de alimentos não saudáveis (com elevadas quantidades de açúcares) e a utilização de serviços odontológicos para tratamento. O resultado encontrado aponta para a importância das políticas públicas na promoção da alimentação saudável, das estratégias domiciliares de prevenção da saúde bucal com o uso de tecnologias de autocuidado bucal, e do trabalho interdisciplinar na APS voltado para mudanças de comportamentos alimentares na população.
Utilizando-se o referencial de Sisson,12 foi possível compreender esses achados mediante a explicação material, relacionada ao status socioeconômico. Diferenças na posição socioeconômica podem influenciar o acesso a recursos alimentares, tornando a situação social e econômica um dos principais determinantes das desigualdades em saúde.12 No Brasil, entre 2003 e 2010, houve melhorias desiguais na saúde bucal, principalmente na presença de cárie dentária,22,23 favorecendo indivíduos de maior renda. Os resultados mostraram que o maior uso de serviços odontológicos privados se associou ao nível socioeconômico mais alto e aos adolescentes autodeclarados brancos, fatores que, por sua vez, estão relacionados a melhores comportamentos em saúde e menor prevalência de doenças.24 Uma das explicações para a associação entre brancos e maior uso de serviços odontológicos privados na prevenção está no fato de esses adolescentes também apresentarem maior renda e escolaridade, o que aumenta seu acesso a recursos preventivos e à compra de serviços, tendendo a procurar os serviços de saúde privados para checkup/prevenção de rotina.24
No entanto, as desigualdades na disponibilidade de atendimento odontológico podem favorecer o uso desses serviços entre certos grupos, em locais com maiores concentrações de indivíduos de raça/cor da pele branca.25,26 Embora seja essencial focar as desigualdades sociais em saúde bucal, as desigualdades raciais não podem ser eliminadas, simplesmente, abordando apenas os mecanismos que vinculam o status socioeconômico à saúde.27 Eis um dos maiores desafios da ESF-SB e dos serviços públicos de saúde. Discriminar positivamente a atenção à saúde em vizinhanças com grupos raciais de maior risco poderia ser uma das soluções para minimizar as desigualdades raciais na utilização dos serviços para prevenção.27 Iniquidades raciais na perda dentária em idosos brasileiros, mediante análise de decomposição, foram 50% explicadas pelo motivo e frequência de uso dos serviços odontológicos,28 comportamentos possíveis de serem modificados, apontando, mais uma vez, a importância da ação da ESF nesse contexto.
A implementação de mudanças, na reorganização do fluxo e processo de trabalho na APS, necessita da proposição de estratégias e inovações.29 Como possíveis caminhos a considerar pelos gestores, estão a organização de serviços/programas para prevenção que cumpram os atributos da APS, a qualificação do trabalho interdisciplinar e a utilização de abordagens educativas inovadoras, para alcançar mudanças familiares e individuais. Políticas públicas de promoção da alimentação saudável, como a taxação de bebidas açucaradas, também poderiam ser consideradas por gestores em saúde no Brasil. Pesquisas futuras sobre a utilização de serviços públicos e privados odontológicos devem analisar as questões raciais com maior profundidade, dada a importância do SUS para determinados grupos raciais.30
Por se tratar de um estudo transversal, algumas limitações para a análise devem ser apontadas. Não é possível estabelecer uma relação causal entre as associações encontradas. Entretanto, os instrumentos utilizados foram validados para uso no Brasil, e o questionário adotado é utilizado no Sistema de Informações de Vigilância Alimentar e Nutricional (Sisvan) do Ministério da Saúde, para acessar a frequência de consumo não saudável de alimentos.16 Essas associações podem implicar políticas públicas cujo objetivo é reduzir o consumo inadequado de alimentos, principalmente os ultraprocessados, e orientar estratégias de implementação de mudanças nos serviços de saúde.29 Como um ponto forte do estudo, trata-se de uma pesquisa com as cidades mais afluentes e representativas das quatro macrorregiões de um importante estado brasileiro da região Centro-Oeste, responsável por um forte agronegócio que abastece os demais setores geográficos.
Conclui-se que maiores coberturas de ESF-SB foram associadas ao maior uso de serviços odontológicos públicos, menor uso de serviços para prevenção e maior consumo de alimentos não saudáveis. Equipes de saúde bucal devem organizar o acesso e qualificar o processo de trabalho, com foco na atenção integral, além de contribuir para a implementação de ações transdisciplinares, visando reduzir o consumo de alimentos não saudáveis por adolescentes em idade escolar.