Introdução
Em outubro de 2021, mais de 4,9 milhões de mortes por COVID-19 haviam ocorrido no mundo e, desse total, um número superior a 600 mil apenas no Brasil.1 Mais da metade das mortes no país aconteceram nos primeiros seis meses de 2021,1 quando a transmissão comunitária da variante Gama atingiu seus maiores níveis e se disseminou pela América do Sul.2
Manaus, capital do estado do Amazonas, epicentro brasileiro da epidemia em sua primeira onda, observada entre abril e maio de 2020, apresentou rápida e forte disseminação da variante Gama na segunda onda, esta em janeiro de 2021, quando cerca de 1.700 pessoas morreram por COVID-19 nos primeiros 20 dias do ano e ao menos 40 faleceram por falta de suprimento de oxigênio medicinal.3
Estudos indicam que variantes de preocupação, como a Gama,4,5 contribuem para um rápido aumento na incidência da COVID-19, podendo levar a sobrecarga da rede médico-hospitalar6 e, indiretamente, aumento da letalidade,7,8 já que o número de óbitos pela doença pode atingir um padrão explosivo. Variantes como a Alfa, também com alto potencial de transmissão,9 poderiam contribuir diretamente para o aumento da letalidade da doença,10 embora essa hipótese não seja amplamente aceita.11
Não há estudos publicados que tenham investigado se a variante Gama está associada a maior letalidade hospitalar. Embora recente análise sobre o perfil da mortalidade, antes e depois da emergência da variante Gama no Amazonas, sugira maior patogenicidade dessa variante,12 seus resultados são inconclusivos.
Este estudo teve por objetivo descrever a letalidade hospitalar e em unidade de terapia intensiva (UTI), decorrente da COVID-19, em quatro capitais brasileiras, em meses de picos epidêmicos e nos meses anteriores.
Métodos
Desenho do estudo
Estudo ecológico, utilizando-se de dados de internações hospitalares por síndrome respiratória aguda grave (SRAG) devida à COVID-19,13 em que as unidades de análise foram quatro capitais brasileiras.
População de estudo
A população analisada foi composta pelos agregados dos registros hospitalares de internações e óbitos em quatro metrópoles regionais: Manaus (região Norte), São Paulo (região Sudeste), Curitiba (região Sul) e Porto Alegre (região Sul).
Manaus foi incluída no estudo por ter sido a capital mais afetada pela epidemia, tanto na primeira como na segunda onda. Há indícios de que a variante Gama se disseminou nessa capital de forma violenta, levando a novo e ainda mais severo colapso em sua rede médico-assistencial.4 São Paulo, Curitiba e Porto Alegre, contempladas com algumas das melhores redes de alta complexidade na atenção à saúde no país,14 incluindo expressiva disponibilidade de leitos de UTI - frente à região Norte, por exemplo -, foram selecionadas como ‘controle’ por terem experimentado queda ou estabilidade na incidência de SRAG em janeiro de 2021, na comparação com dezembro de 2020.15 Esse padrão de transmissão comunitária permitiu não apenas a avaliação da letalidade hospitalar em cenário de modestos avanços na terapêutica e no manejo de casos clínicos de COVID-19, como também a observação de evidências de que a variante Gama não circulou de forma intensa nessas capitais antes de fevereiro de 2021.6,15
As estimativas dos autores consideraram indivíduos com 20 anos ou mais, haja vista a baixa frequência de mortes por COVID-19 em menores dessa idade.16 Os óbitos ocorridos em Manaus, entre 13 e 16 de janeiro de 2021, foram excluídos do estudo, para minimização das distorções nas estimativas de letalidade: o dia 13 de janeiro antecedeu a crise da falta de oxigênio medicinal nos hospitais de Manaus, além de ser a data em que morreram 110 vítimas de COVID-19, o maior número diário até então;17 o dia 14 coincidiu com o ápice da crise de abastecimento de oxigênio medicinal; e os dois dias seguintes foram os únicos da série histórica com 125 ou mais óbitos diários,17 quando muitos indivíduos foram transferidos para outras regiões do país, dada a caótica situação na rede assistencial local.
Fontes de dados e mensuração
Os dados foram extraídos do Sistema de Informação de Vigilância Epidemiológica da Gripe (SIVEP-Gripe),13 cuja atualização é semanal e reúne todas as notificações dos estabelecimentos de saúde no país. Para minimização dos problemas de cobertura e defasagem, os dados sob escrutínio foram extraídos mais de 160 dias após o fim do período da investigação, concluída em 31 de janeiro de 2021.
No Brasil, a notificação de casos suspeitos ou confirmados de COVID-19 é obrigatória. Considera-se como ‘internação por COVID-19’ todo registro hospitalar com a classificação final de SRAG por COVID-19, o que equivale a casos com registros de encerramento baseados em critério laboratorial, clínico-epidemiológico, clínico ou clínico-imagem.13 Todos os registros foram capturados de acordo com o local de residência e a data dos primeiros sintomas. Os dados demográficos advêm de estimativas elaboradas pelo Ministério da Saúde.
Definiu-se como primeira onda da epidemia o período de março a agosto de 2020, tendo por referência o indicador da incidência de SRAG por cada 100 mil habitantes, com base na data dos primeiros sintomas.15 No recorte temporal da primeira onda, a incidência da SRAG aumentou repentinamente em março, até atingir um pico na primeira quinzena de abril. Em maio, registrou-se queda abrupta, seguida de estabilização sustentada em junho e julho, conformando uma espécie de “vale” a separar a primeira da segunda onda. Agosto foi marcado pelo início da reversão na queda da incidência de SRAG em Manaus.15
Já o recorte temporal da segunda onda, de setembro em diante, é caracterizado por uma sustentada (por mais de seis semanas seguidas) e expressiva elevação da incidência de SRAG, com pico em janeiro de 2021,15 sem que se retornasse aos menores valores da série histórica (junho e julho de 2020).
Considerou-se como indicadores de letalidade (i) a porcentagem de indivíduos que evoluiu para óbito entre os internados em leitos clínicos em geral, aqui denominada ‘letalidade hospitalar’, e (ii) a porcentagem daqueles cuja internação se deu em UTI propriamente dita.
Os dados agregados sobre hospitalização foram estratificados conforme as seguintes variáveis:
capital (Manaus; São Paulo; Porto Alegre; Curitiba);
faixa etária (em anos completos: 20 a 39; 40 a 59; 60 e mais); e
períodos (agregação mensal: mar./2020; abr./2020; maio/2020; jul./2020; jan./2021).
O estudo incluiu dois períodos distintos. Para Manaus, esses períodos foram compostos por dois meses consecutivos, e para as demais capitais, por um único mês. O primeiro período de Manaus, março e abril de 2020, representa a maior incidência de SRAG na primeira onda e está fora da influência da variante Gama;15 o segundo período, dezembro de 2020 e janeiro de 2021, representa a maior incidência de SRAG e forte circulação da variante Gama, na segunda onda.15 Para São Paulo, os períodos selecionados foram maio de 2020, mês com maior incidência de SRAG naquele ano e fora da influência da variante Gama, e janeiro de 2021, quando a incidência de SRAG apresentou sinais de queda, pouco antes de um expressivo aumento.15 Já para Curitiba e Porto Alegre, o primeiro período refere-se a julho de 2020 e o segundo a janeiro de 2021, segundo os mesmos critérios adotados para São Paulo.15
Análise de dados
O cálculo dos indicadores foi realizado da seguinte forma:
a) Letalidade hospitalar
Numerador - número de óbitos hospitalares devidos a SRAG por COVID-19, segundo faixas etárias, período, data dos primeiros sintomas e local de residência.
Denominador - número total de internações notificadas devidas a SRAG por COVID-19, segundo faixas etárias, período, data dos primeiros sintomas e local de residência.
Fator de multiplicação: 100
b) Letalidade em UTI
Numerador - número de óbitos notificados em UTI devidos a SRAG por COVID-19, segundo faixas etárias, período, data dos primeiros sintomas e local de residência.
Denominador - número total de internações notificadas em UTI devidas a SRAG por COVID-19, segundo faixas etárias, período, data dos primeiros sintomas e local de residência.
Fator de multiplicação: 100
c) Taxa de mortalidade devida a SRAG por COVID-19 em Manaus (por 100 mil hab.)
Numerador - número de óbitos notificados devidos a SRAG por COVID-19 em Manaus, segundo faixas etárias, período e data dos primeiros sintomas.
Denominador - projeção populacional corrigida do número total de residentes em Manaus, em determinado grupo etário e para o ano de 2020.
Fator de multiplicação: 100 mil
d) Razão de óbitos devidos a SRAG por COVID-19
Numerador - número de óbitos notificados devidos a SRAG por COVID-19 em Manaus, segundo faixas etárias, período e data dos primeiros sintomas.
Denominador - número de óbitos notificados devidos a SRAG por COVID-19, em Manaus, de acordo com determinado agrupamento etário e data dos primeiros sintomas.
Fator de multiplicação: 100
As estimativas de letalidade foram apresentadas como porcentagens, com intervalos de confiança de 95% (IC95%). Os ICs foram estimados com base nos percentis bootstrap, com mil replicações,18 evitando-se valores negativos e perda na precisão das estimativas intervalares. Sendo assim, as avaliações de letalidade foram efetuadas mediante inspeção dos limites inferiores e superiores das estimativas intervalares.
Para avaliar a evolução da epidemia em Manaus, considerando-se o fraco e irregular desempenho da notificação de casos novos no Amazonas,19 foram estimadas taxas de mortalidade por COVID-19. Essas taxas buscaram corrigir parte do impacto negativo da pandemia sobre a composição demográfica da população local em 2020,20 desde que as análises realizadas incluiriam apenas janeiro de 2021. Nesse sentido, estimou-se o excesso na mortalidade geral com base na diferença entre óbitos observados e óbitos esperados em cada agrupamento etário, de acordo com métodos previamente publicados.16 Em seguida, o valor excedente foi descontado de cada uma das estimativas populacionais do Ministério da Saúde, chegando-se à estimativa populacional corrigida.
As taxas de mortalidade e razões de óbitos também foram acompanhadas de seus respectivos ICs95%. Para as análises, foram utilizados os softwares R, versão 3.6.1, e RStudio, versão 1.2.1335 (http://www.r-project.org).
Resultados
Manaus, na primeira onda da epidemia, notificou 153 óbitos por COVID-19 com data dos primeiros sintomas em março de 2020, resultando em uma taxa de mortalidade de 10,4 (IC95% 8,9;12,2) por 100 mil hab. Em abril de 2020, foram 1.584 óbitos na capital, de acordo com a data dos primeiros sintomas, e a taxa de mortalidade foi de 108,2 (IC95% 103,0;113,6) por 100 mil hab. Também em Manaus, na segunda onda, foram notificados 1.300 óbitos, cuja data dos primeiros sintomas referia dezembro de 2020, com taxa de mortalidade de 88,8 (IC95% 84,1;93,7) por 100 mil hab. Por sua vez, em janeiro de 2021, foram 3.148 óbitos, de acordo com a data dos primeiros sintomas, e a taxa de mortalidade foi de 214,9 (IC95% 207,6;222,6) por 100 mil hab.
A Figura 1 mostra que em Manaus, independentemente do mês e da faixa etária, as taxas de mortalidade foram maiores naqueles com 60 e mais anos de idade. Nos meses imediatamente antecedentes aos colapsos de abril de 2020 e janeiro de 2021, as taxas de mortalidade foram menores.

Figura 1 Taxas de mortalidade por COVID-19 com intervalo de confiança de 95% (IC95%), de acordo com mês dos primeiros sintomas e faixa etária, Manaus, Amazonas, 2020-2021
A razão entre os totais de óbitos de janeiro de 2021 e abril de 2020 resultou em um excesso de óbitos de 99,0% (IC95% 87,0;111,0) para janeiro de 2021.
A letalidade hospitalar (Tabela 1) e a letalidade em UTI (Tabela 2), em Manaus, nos meses de pico da mortalidade na primeira e na segunda ondas, foram semelhantes para os indivíduos de 20-39 e aqueles de 40-59 anos. Entre idosos - 60 e mais anos -, em janeiro de 2021 (n=1.534), a letalidade hospitalar foi menor, na comparação com abril de 2020 (n=1.104): 62,1% (IC95% 59,1;65,2) e 72,9% (IC95% 70,1;75,7), respectivamente. A letalidade em UTI, em janeiro de 2021 (n=477), também foi menor na comparação com abril de 2020 (n=456): 78,5% (IC95% 76,0;80,9) e 88,4% (IC95% 86,4;90,4), respectivamente.
Tabela 1 Letalidade durante a internação hospitalar, de acordo com mês dos primeiros sintomas e faixa etária, nas capitais brasileiras Manaus, São Paulo, Porto Alegre e Curitiba, 2020-2021
Faixa etária (anos) | Óbitos (n) | Letalidade (IC95%a) | Óbitos (n) | Letalidade (IC95%a) |
---|---|---|---|---|
Manaus | ||||
Abr./2020 | Jan./2021 | |||
20-39 | 67 | 21,1 (18,6;23,7) | 185 | 24,3 (21,7;27,0) |
40-59 | 314 | 34,5 (31,5;37,5) | 825 | 38,4 (35,3;41,6) |
≥60 | 1.104 | 72,9 (70,1;75,7) | 1.534 | 62,1 (59,1;65,2) |
São Paulo | ||||
Maio/2020 | Jan./2021 | |||
20-39 | 127 | 6,9 (5,3;8,5) | 52 | 6,9 (5,3;8,6) |
40-59 | 707 | 15,4 (13,2;17,7) | 314 | 14,0 (11,8;16,2) |
≥60 | 2.804 | 41,0 (37,9;44,2) | 1.430 | 34,5 (31,5;37,5) |
Porto Alegre | ||||
Jul./2020 | Jan./2021 | |||
20-39 | 9 | 7,5 (5,8;9,2) | 3 | 5,6 (4,1;7,0) |
40-59 | 42 | 12,9 (10,8;15,1) | 40 | 19,2 (16,7;21,8) |
≥60 | 335 | 48,6 (45,5;51,7) | 207 | 42,1 (38,9;45,0) |
Curitiba | ||||
Jul./2020 | Jan./2021 | |||
20-39 | 16 | 6,7 (5,1;8,2) | 9 | 6,7 (5,1;8,3) |
40-59 | 109 | 16,9 (14,6;19,3) | 63 | 13,3 (11,2;15,4) |
≥60 | 400 | 43,4 (40,3;46,6) | 259 | 33,4 (30,4;36,4) |
a) IC95%: intervalo de confiança de 95%, com base em percentis bootstrap.
A letalidade hospitalar em Manaus foi menor nos meses que antecederam os picos da mortalidade na primeira e na segunda ondas, assim como em dezembro de 2020 naqueles com 60 e mais anos, quando comparada à letalidade de março e abril de 2020 (Figura 2).

Figura 2 Letalidade durante a internação hospitalar com intervalo de confiança de 95% (IC95%), de acordo com mês dos primeiros sintomas e faixa etária, Manaus, Amazonas, 2020-2021
Ainda em Manaus, nos meses que antecederam os picos de mortalidade, tanto na primeira quanto na segunda onda, a letalidade em UTI não diferiu entre as faixas etárias (Figura 3), exceto a dos 20-39 anos, com a letalidade passando de 45,5% (IC95% 42,4;48,5) em março (n=5) para 56,5% (IC95% 53,3;59,7) em abril de 2020 (n=39), e de 50,5% (IC95% 47,3;53,7) em dezembro de 2020 (n=49) para 57,2% (IC95% 54,1;60,4) em janeiro de 2021 (n=107). Naqueles com 60 e mais anos, a letalidade na UTI foi menor em janeiro de 2021 (79,9%; IC95% 77,4;82,5), na comparação com abril de 2020 (88,2%; IC95% 86,1;90,3).

Figura 3 Letalidade durante a internação em unidade de terapia intensiva (UTI) com intervalo de confiança de 95% (IC95%), de acordo com mês dos primeiros sintomas e faixa etária, Manaus, Amazonas, 2020-2021
Em São Paulo, Porto Alegre e Curitiba, o padrão de letalidade hospitalar observado em Manaus se repete (Tabela 1), com redução naqueles com 60 e mais anos em janeiro de 2021. Em São Paulo, a letalidade passou de 41,0% (IC95% 37,9;44,2), em maio de 2020 (n=2.804), para 34,5% (IC95% 31,5;37,5) em janeiro de 2021 (n=1.430). Em Porto Alegre, a letalidade passou de 48,6% (IC95% 45,5;51,7), em julho de 2020 (n=335), para 42,1% (IC95% 38,9;45,0) em janeiro de 2021 (n=207). Em Curitiba, a letalidade passou de 43,4% (IC95% 40,3;46,6), em julho de 2020 (n=400), para 33,4% (IC95% 30,4;36,4) em janeiro de 2021 (n=259).
Em São Paulo, para as faixas etárias de 40-59 e 60 e mais anos, a letalidade em UTI foi menor em janeiro de 2021 (Tabela 2); em Porto Alegre, ela foi menor nos indivíduos de 20-39 e maior naqueles de 40-59 anos. Já em Curitiba, independentemente da faixa etária, os valores da letalidade por COVID-19 entre internados em UTI foram semelhantes em julho de 2020 e janeiro de 2021.
Tabela 2 Letalidade durante a internação em unidade de terapia intensiva (UTI), de acordo com mês dos primeiros sintomas e faixa etária, nas capitais brasileiras Manaus, São Paulo, Porto Alegre e Curitiba, 2020-2021
Faixa etária (anos) | Óbitos (n) | Letalidade (IC95%a) | Óbitos (n) | Letalidade (IC95%a) |
---|---|---|---|---|
Manaus | ||||
Abr./2020 | Jan./2021 | |||
20-39 | 39 | 56,5 (53,4;59,7) | 107 | 57,2 (54,0; 60,4) |
40-59 | 169 | 69,5 (66,5;72,5) | 400 | 63,8 (60,0; 66,8) |
≥60 | 456 | 88,4 (86,4;90,4) | 477 | 78,5 (76,0; 80,9) |
São Paulo | ||||
Maio/2020 | Jan./2021 | |||
20-39 | 87 | 18,8 (16,4;21,3) | 37 | 14,4 (12,3;16,5) |
40-59 | 462 | 37,2 (34,1;40,2) | 240 | 29,1 (26,3;31,9) |
≥60 | 1.596 | 64,6 (61,6;67,7) | 898 | 53,5 (50,4;56,7) |
Porto Alegre | ||||
Jul./2020 | Jan./2021 | |||
20-39 | 8 | 40,0 (36,9;43,1) | 2 | 8,3 (6,5;10,2) |
40-59 | 35 | 33,7 (30,8;36,5) | 32 | 42,1 (39,0;45,3) |
≥60 | 224 | 69,6 (66,8;72,3) | 158 | 66,9 (63,9;70,0) |
Curitiba | ||||
Jul./2020 | Jan./2021 | |||
20-39 | 12 | 18,2 (15,7;20,6) | 6 | 17,1 (14,8;19,5) |
40-59 | 85 | 42,5 (39,4;45,6) | 49 | 47,1 (44,0;50,2) |
≥60 | 266 | 66,8 (64,0;69,7) | 152 | 65,8 (62,8;68,8) |
a) IC95%: intervalo de confiança de 95%, com base em percentis bootstrap.
Discussão
Este é o primeiro estudo a descrever a letalidade hospitalar e em UTI por COVID-19 em cenários com e sem circulação da variante Gama. Os resultados apresentados sobre a letalidade hospitalar e em UTI, nas quatro metrópoles avaliadas, sugerem que o colapso da rede médico-assistencial em Manaus pode ter determinado a elevação das taxas de mortalidade por COVID-19, uma possível consequência indireta da forte circulação da variante Gama.
Em Manaus, a considerável diferença entre a magnitude das taxas de mortalidade por COVID-19, nos meses que antecederam o colapso de abril de 2020 e o de janeiro de 2021, sugere maior descontrole na transmissão comunitária do SARS-CoV-2 em dezembro de 2020, provavelmente relacionado à negligência nas precauções sanitárias por parte dos tomadores de decisão e da população geral, bem como a emergência da variante de preocupação Gama, associada a maior transmissibilidade.3,4
Em Manaus, a taxa de mortalidade foi maior em janeiro de 2021, sendo mais afetados os indivíduos na idade de 60 anos e mais. Este achado reforça os resultados de estudos prévios da literatura sobre o tema, que também apresentam maior mortalidade em idosos.21 Já o significativo aumento na taxa de mortalidade em janeiro de 2021, na comparação com abril de 2020, foi mais expressivo na faixa etária de 40-59 anos, comparada aos idosos, possivelmente relacionado com a desproporcional força da mortalidade naqueles de 60 e mais anos durante a primeira onda. Uma análise sobre o perfil da mortalidade, antes e depois da emergência da variante Gama no Amazonas, também encontrou maiores taxas de mortalidade por COVID-19 em janeiro de 2021, sobretudo nos indivíduos de 40 a 59 anos.12
Entre os que apresentaram os primeiros sintomas da doença em janeiro de 2021, a mortalidade foi aproximadamente o dobro da observada naqueles com os primeiros sintomas de COVID-19 registrados em abril de 2020, evidenciando o caráter ainda mais explosivo da mortalidade na segunda onda, em Manaus.
Na capital amazonense, ambas as letalidades, hospitalar e em UTI, foram semelhantes na faixa de 20-39 anos, em janeiro de 2021 e abril de 2020. Entretanto, chamou a atenção que, mesmo não se verificando diferença significativa para a letalidade hospitalar, as estimativas pontuais, nas faixas etárias de 20-39 e 40-59 anos, foram maiores em janeiro de 2021 quando comparadas às de abril de 2020, padrão distinto ao da letalidade em UTI.
É possível que, em Manaus, o padrão da letalidade em UTI não se tenha repetido para o indicador de letalidade hospitalar, dadas as diferenças no ritmo e na quantidade de leitos abertos em ambas as situações: entre 10 de dezembro de 2020 e 31 de janeiro de 2021, o número de leitos clínicos passou de 32422 para 1.954,17 representando um aumento de 500%, enquanto o número de leitos de UTI passou de 19322 para 691,17 ou seja, um aumento menor que o de leitos clínicos. Portanto, a abertura explosiva de leitos clínicos em Manaus pode ter limitado não apenas o número de recursos humanos disponíveis, senão também a qualidade da assistência oferecida, conforme observado em outros contextos.7,8
Interessante notar que, embora os padrões da letalidade hospitalar nas idades de 20-39 e 40-59 anos tenham sido semelhantes em São Paulo, Porto Alegre e Curitiba, nos diferentes momentos da epidemia, as porcentagens tenderam a ser menores em janeiro de 2021, de maneira geral, o que poderia estar relacionado com a menor gravidade da epidemia em janeiro de 2021, em comparação aos meses mais críticos de 2020. Além disso, a letalidade hospitalar e em UTI foi consistente e significativamente menor nessas capitais, em comparação a Manaus, um resultado possivelmente relacionado às desigualdades regionais no acesso aos serviços de saúde, considerando-se o conjunto Brasil.14,23
Também chamou a atenção o fato de a letalidade hospitalar naqueles com 60 e mais anos haver sido menor em janeiro de 2021, independentemente da capital avaliada; e especialmente em Manaus, cuja rede médico-assistencial encontrava-se colapsada naquele momento, sob forte pressão da variante Gama.2-4 Essa queda na letalidade por COVID-19 entre idosos poderia estar associada com maior adesão a cuidados de saúde, por parte desse grupo etário, e/ou menor exposição ao vírus, dada a preocupação causada pelo forte impacto da pandemia sobre os maiores de 60 anos em 2020.
Em Manaus, a letalidade em UTI foi significativamente menor em janeiro de 2021, quando comparada à de abril de 2020, naqueles com 60 e mais anos. Já em São Paulo, observou-se um padrão consistente de redução significativa da letalidade em UTI no mês de janeiro de 2021, na comparação com maio de 2020. Em Porto Alegre e Curitiba, de maneira geral, o padrão da letalidade em UTI foi semelhante, independentemente do período avaliado.
Em relação a Manaus, outro dado a ser destacado, tanto para a letalidade hospitalar como em UTI, foram os valores consistentemente menores nos meses que antecederam os colapsos da primeira e da segunda ondas, sugerindo, assim como foi observado em outros contextos, uma tendência para a letalidade em indivíduos hospitalizados por COVID-19 ser maior em períodos de sobrecarga ou colapso da rede médico-hospitalar.7,23-25
Ainda em Manaus, tanto a letalidade hospitalar como em UTI naqueles com 40-59 e 60 ou mais anos foram menores em dezembro de 2020, quando comparadas à letalidade de março e abril de 2020, sugerindo que a letalidade - mesmo com a provável circulação da variante Gama desde novembro de 2020 e tendo alcançado em torno de 52,0% das amostras com sequenciamento genômico de dezembro de 202026 - tenderia a ser menor na segunda onda, caso a saturação da rede médico-hospitalar não fosse tão expressiva em janeiro de 2021, quando 85,0% das amostras com sequenciamento genômico foram associadas à variante Gama.26 Trata-se de uma hipótese válida, se observarmos o padrão razoavelmente menor da letalidade hospitalar e em UTI para São Paulo, Curitiba e Porto Alegre em janeiro de 2021, possivelmente influenciado não apenas pela menor pressão da transmissão comunitária do SARS-COV-2 sobre os serviços de saúde, como também por progressos relativos à terapêutica e ao manejo clínico dos quadros graves de COVID-19, como observado em outros lugares do mundo.27
Como limitações do estudo, cumpre destacar seu caráter descritivo e a ausência de registros com informações sobre o diagnóstico etiológico de COVID-19 atribuída à variante Gama, o que permitiria uma avaliação pormenorizada da letalidade. A cobertura e a qualidade dos dados podem ter sido afetadas, dado o momento pandêmico, especialmente em Manaus, onde se enfrentou duplo colapso da rede médico-hospitalar, levando não só a possível redução nas contagens de internações e óbitos por COVID-19, mas também, a registros menos confiáveis.28 Ademais, cada registro de internação hospitalar foi contado como uma admissão independente, algo nem sempre certo e seguro quando readmissões são possíveis, e a frequência com que essas readmissões ocorrem não necessariamente é constante no tempo.
O estudo tem como ponto forte o fato de ter avaliado a letalidade hospitalar em Manaus, em fases da epidemia sem e com forte circulação da variante Gama, bem como em metrópoles pouco ou pobremente afetadas por essa variante. O padrão explosivo da mortalidade, em dezembro de 2020 e janeiro de 2021, não somente reforça que a variante Gama pode ter começado a circular em Manaus antes de dezembro de 2020, como também que sua rápida disseminação pode ter contribuído, indiretamente, para o aumento da mortalidade por COVID-19. Este resultado está alinhado a estudos que demonstram o aumento da mortalidade associado à sobrecarga da rede médico-hospitalar em diferentes regiões do planeta,7,8 assim como a recentes apontamentos de um painel de especialistas que colocam a variante Gama como possivelmente associada a aumento nas internações hospitalares, sem confirmação de aumento na severidade da doença ou no risco de mortalidade.29,30
Sugere-se, com os resultados apresentados, que o colapso da rede médico-assistencial em Manaus pode ter determinado a elevação das taxas de mortalidade por COVID-19, como consequência da forte circulação da variante Gama, associada a maior transmissibilidade. Conclui-se que, no mês de janeiro de 2021, a letalidade hospitalar e em UTI caiu ou manteve-se estável nas quatro capitais analisadas, especialmente em Manaus e durante o pico epidêmico com predomínio da variante Gama.