Introdução
A sífilis congênita é resultado da disseminação do Treponema pallidum da gestante para seu concepto.1 O não tratamento ou o tratamento inadequado da gestante infectada pode gerar complicações, como morte fetal precoce, morte neonatal, nascimento prematuro e infecção congênita em bebês.2
Embora seja uma doença de fácil prevenção e tratamento, a sífilis congênita é a segunda causa infecciosa mais comum de natimortalidade em todo o mundo.3 No Brasil, a mortalidade por sífilis congênita cresceu 431% no período 2008-2018, atingindo 8,2 por 100 mil nascidos vivos.1 Essas mortes representam um evento indesejável em Saúde Pública, pois são evitáveis.
Para atuar na diminuição dessas mortes, são necessários sistemas de informação em saúde de qualidade. A adequada manutenção desses sistemas é importante no sentido de garantir a confiabilidade dos dados e subsidiar ações que melhorem a Saúde Pública.4,5
O objetivo deste estudo foi avaliar a completude e concordância dos óbitos infantis por sífilis congênita na Região Metropolitana de São Paulo, entre 2010 e 2017.
Métodos
Estudo descritivo de óbitos infantis por sífilis congênita na Região Metropolitana de São Paulo. Trata-se de importante região econômica, com 20.996.747 habitantes e responsável por 53,8% do produto interno bruto (PIB) do estado de São Paulo.6 No período de 2007 a 2018, a região registrou 57,3% dos casos de sífilis congênita do estado.7
Foram incluídos óbitos de menores de 1 ano com menção de sífilis congênita (códigos A50.0-A50.9 da Décima Revisão da Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde - CID-10) nas múltiplas linhas de causas de morte da Declaração de Óbito (DO), ocorridos entre 2010 e 2017.
Foram utilizados dados do Sistema de Informação sobre Mortalidade (SIM) e do Sistema de Informação sobre Nascidos Vivos (Sinasc), obtidos no sítio eletrônico do Departamento de Informática do Sistema Único de Saúde (Datasus) (acessado em 23 de outubro de 2020) e no Centro de Informações Estratégicas em Saúde, da Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo (CIEVS/SES/SP).8
Foram analisadas as seguintes variáveis do SIM e do Sinasc:
a) Sociodemográficas: sexo; raça/cor da pele; escolaridade da mãe; ocupação habitual da mãe; idade da mãe.
b) Gestação e parto: semanas de gestação; peso ao nascer; tipo de gravidez; tipo de parto; número de filhos nascidos vivos; número de filhos nascidos mortos (perdas fetais/abortos).
Os óbitos identificados foram vinculados aos dados de nascidos vivos por meio de técnica de linkage determinístico, que identifica um mesmo indivíduo em diferentes bancos de dados. A primeira etapa desse processo foi realizada por meio da variável unificadora comum, ‘número da Declaração de Nascido Vivo (DN)’, disponível nas bases obtidas no Datasus. A segunda etapa foi realizada pelo CIEVS/SES/SP, que utilizou as variáveis de identificação ‘nome do falecido’, ‘data de nascimento’ e ‘nome da mãe’ para identificação do número da DN, com checagem manual dos pares.
A completude foi mensurada pela proporção de preenchimento das variáveis, excluídos registros brancos e ignorados, de acordo com o seguinte critério: excelente (>95,0%); bom (90,1-95,0%); regular (80,1-90,0%); ruim (50,1-80,0%); e muito ruim (≤50,0%).9 A DN foi adotada como referência para verificar o acréscimo de informação na DO.
Foi analisada a diferença na completude segundo o emitente da DO: médico do hospital (atendente ou plantonista) e médico de outros serviços (Instituto Médico Legal [IML]; Serviço de Verificação de Óbito [SVO]; outros).
A análise da concordância permite identificar se o preenchimento de determinada variável foi feito de forma idêntica nos dois bancos de dados. Foi calculada a proporção de registros concordantes para as variáveis categóricas comuns, na DN e na DO, e utilizado o índice Kappa de acordo com os seguintes critérios: sem concordância (<0); concordância ruim (0,00-0,19); razoável (0,20-0,39); moderada (0,40-0,59); substancial (0,60-0,79); e concordância excelente (0,80-1,00).10
Os dados foram processados com o auxílio dos softwares SPSS17.0 e Microsoft Excel 2016.
O projeto do estudo recebeu a aprovação do Comitê de Ética em Pesquisa da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (CEP/FSP/USP): Certificado de Apresentação para Apreciação Ética (CAAE) no 17870819.1.0000.5421; Parecer no 3.525.067, emitido em 22 de agosto de 2019.
Resultados
Foram identificados 134 óbitos por sífilis congênita e 132 (98,5%) foram vinculados ao Sinasc. Na primeira etapa do estudo, foram pareados com as DNs 96 óbitos (71,6%), e mais 36 (26,9%) na segunda etapa. Dois óbitos não vinculados (1,5%) foram excluídos (Figura 1).
Inicialmente, foram registrados 54 óbitos por sífilis congênita como causa básica original e, após a análise do campo ‘causa básica’ (final), houve acréscimo de 13 óbitos (24,1%), totalizando 67. Ao se considerarem as causas múltiplas, foram acrescentados 65 óbitos (+97,0%), totalizando 132.
Das 132 DOs, 120 tiveram o campo ‘atestante’ informado, sendo 97 (80,8%) médicos do hospital e 23 médicos de outros serviços. A maioria das variáveis foram mais completas nas DOs emitidas nos hospitais. Destaca-se que, antes da vinculação, duas variáveis tinham excelente preenchimento; e cinco variáveis, bom preenchimento. Após linkage com o Sinasc, aumentaram de duas para dez as variáveis excelentes. A ‘escolaridade da mãe’, o ‘peso ao nascer’ e o ‘número de filhos mortos’ foram as variáveis que tiveram maior acréscimo de informação (>10,0%) (Tabela 1).
Ao se analisar a concordância, o índice Kappa foi pior para raça/cor da pele (0,49), ocupação (0,46) e escolaridade da mãe (0,52) (Tabela 2).
a) D: Declaração de Óbito; b) DN: Declaração de Nascido Vivo; c) SIM: Sistema de Informação sobre Mortalidade; d) Sinasc: Sistema de Informação sobre Nascidos Vivos.
Variáveis | Antes do linkage | Linkage | |||||||||
---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|
Hospital (n=97) | Outros serviços (n=23) | Antes | Depois | ||||||||
n | % | n | % | n (%) | Escore | n (%) | Escore | ||||
Sexo | 97 | 100,0 | 23 | 100,0 | 132 (100,0) | Ea | 132 (100,0) | E | |||
Raça/cor da pele | 92 | 94,8 | 23 | 100,0 | 125 (94,7) | Bb | 132 (100,0) | E | |||
Peso ao nascer | 90 | 92,8 | 16 | 69,6 | 117 (88,6) | REc | 132 (100,0) | E | |||
Escolaridade da mãe | 85 | 87,6 | 20 | 87,0 | 113 (85,6) | RE | 131 (99,2) | E | |||
Ocupação da mãe | 19 | 19,6 | 2 | 8,7 | 24 (18,2) | Md | 24 (18,2) | M | |||
Idade da mãe | 89 | 91,8 | 21 | 91,3 | 120 (90,9) | B | 132 (100,0) | E | |||
Semanas de gestação | 93 | 95,9 | 19 | 82,6 | 123 (93,2) | B | 130 (98,5) | E | |||
Tipo de gravidez | 95 | 97,9 | 20 | 87,0 | 126 (95,5) | E | 132 (100,0) | E | |||
Tipo de parto | 94 | 96,9 | 20 | 87,0 | 125 (94,7) | B | 132 (100,0) | E | |||
Número de filhos nascidos vivos | 89 | 91,8 | 20 | 87,0 | 119 (90,2) | B | 129 (97,7) | E | |||
Número de filhos mortos | 84 | 86,6 | 19 | 82,6 | 113 (85,6) | RE | 128 (97,0) | E |
a) E: Excelente (>95,0%); b) B: Bom (90,1 a 95,0%); c) RE: Regular (80,1 a 90,0%); d) M: Muito ruim (≤50,0%).
Variáveis | Nº de registros | Kappa | Classificação | p-valor |
---|---|---|---|---|
Sexo | 132 | 0,97 | Excelente | <0,001 |
Raça/cor da pele | 132 | 0,49 | Moderada | <0,001 |
Escolaridade da mãe | 131 | 0,52 | Moderada | <0,001 |
Ocupação da mãe | 27 | 0,46 | Moderada | <0,001 |
Gestação | 130 | 0,77 | Substancial | <0,001 |
Tipo de gravidez | 132 | 0,62 | Substancial | <0,001 |
Tipo de parto | 132 | 0,85 | Excelente | <0,001 |
Discussão
A completude do SIM foi aprimorada mediante linkage com o Sinasc. A DO foi mais bem preenchida nos hospitais, e a concordância foi excelente ou moderada para a maioria das variáveis. Identificou-se importante subestimação da mortalidade por sífilis congênita ao se analisar apenas a causa básica de morte.
Como limitações do estudo, cumpre observar a possibilidade de omissão da menção da sífilis congênita na DO, especialmente nos óbitos tardios, em razão da não identificação oportuna da doença na ocasião do parto ou por falta de seguimento após alta hospitalar, o que pode ter levado ao sub-registro dessa causa. Todos os recém-nascidos possivelmente infectados devem ser investigados com exames complementares para sífilis congênita até a negativação, já que a maioria se apresenta assintomática ao nascimento.
Foram utilizados todos os campos referentes às causas múltiplas de morte, para todas as doenças, estados mórbidos e lesões que contribuíram ou produziram a morte.11 Esse critério permitiu identificar que a sífilis congênita não foi classificada como causa básica em metade dos óbitos para os quais a doença esteve presente na cadeia causal que levou à morte. A análise tão somente da causa básica resultaria em uma subestimação de cerca de metade da mortalidade infantil por sífilis congênita. Estudo desenvolvido com a mesma estratégia encontrou 25,0% a mais de óbitos para o Brasil, em 2001/2002 e 2012/2013.12 A seleção da causa básica de óbito altera a magnitude de algumas doenças, e analisar somente essa causa subestima a magnitude da mortalidade por sífilis congênita.13
O sub-registro pode ser minimizado a partir das investigações realizadas pelos Comitês de Vigilância do Óbito Infantil. Neste estudo, verificou-se que o trabalho desses comitês ampliou a identificação desses óbitos em 24,0%; em estudo semelhante, realizado no Recife em 2014, 63,9% dos óbitos investigados tiveram a causa básica redefinida.14
O uso da técnica de linkage permite aumentar a quantidade e a qualidade das informações, ademais de sua fácil execução e baixo custo operacional.15 O sucesso em sua utilização depende da boa cobertura e qualidade dos dados, para que ocorra a identificação correta de um mesmo indivíduo em diferentes bancos de dados. Obteve-se excelente percentual de vinculação, o que reflete os ótimos índices de cobertura e regularidade do SIM e do Sinasc na Região Metropolitana de São Paulo, além de melhorias no preenchimento do identificador unívoco (número da DN) para óbitos infantis.
A análise de completude das variáveis é importante para avaliar a qualidade das estatísticas vitais, pois dados incompletos podem gerar distorções e vieses nos indicadores de saúde.16 É necessário reforçar o treinamento e sensibilizar os médicos para a importância do preenchimento da DO como geradora de informações epidemiológicas.
A vinculação dos óbitos com o Sinasc aumentou o preenchimento de variáveis comuns aos dois sistemas, permitindo aprimorar a análise das características maternas, o que é condizente com os resultados de outros estudos.15 Destaca-se a recuperação de informações sobre escolaridade materna, que passou de regular a excelente completude. A baixa escolaridade é um fator associado ao óbito infantil e à incidência de sífilis em gestantes.17,18
DOs preenchidas por médicos dos hospitais foram mais completas, provavelmente em razão do acesso às informações do prontuário hospitalar, o que não ocorre com os médicos do IML/SVO. Estudo realizado com óbitos fetais no município de São Paulo, em 2008, também encontrou melhor preenchimento nas DOs emitidas nos hospitais.19
Os resultados da concordância indicam melhora na qualidade dos dados de óbitos e reafirmam a utilidade desses sistemas como instrumentos de aferição da situação de saúde infantil.20 No entanto, a variável raça/cor da pele apresentou a pior concordância, possivelmente devido ao fato de a cor do recém-nascido ser declarada pela mãe e a cor do falecido ser declarada por outra pessoa. No Brasil, a raça/cor da pele é um constructo social, associado a desigualdades socioeconômicas e de saúde, inclusive na mortalidade infantil, o que torna mais importante seu adequado preenchimento.21,22
Apesar de o SIM ter registrado melhorias ao longo dos anos, é necessário aprimorar a seleção da causa básica em óbitos por sífilis congênita e manter a avaliação contínua de sua qualidade, para obter indicadores confiáveis. A incidência de sífilis congênita, bem como de óbitos, vem registrando contínuo aumento, e informações de qualidade são uma ferramenta importante nos esforços para sua redução.23