Introdução
A hepatite D é causada por um vírus defeituoso que só infecta o homem na presença do vírus da hepatite B.1 A doença pode levar indivíduos com hepatite B mais rapidamente à falência hepática. É uma doença negligenciada e afeta, principalmente, países em desenvolvimento.2,3 A Amazônia é uma das regiões de maior endemicidade das hepatites B e D no mundo.4,5 No Brasil, casos fora da região Norte são reportados esporadicamente, sendo mais comuns em estados fronteiriços à região.6,7
Baixa escolaridade, falta de acesso à saúde e ausência de sintomas são alguns fatores que retardam o diagnóstico e o cuidado para populações vulneráveis.4,6,8,9 Apesar das dificuldades regionais, esforços têm sido feitos para controlar o agravo, assegurando-se a oferta de vacinas e medicamentos às comunidades mais remotas. Nos últimos anos, tem-se observado a queda da prevalência de hepatite B em todo o Brasil,9,10 e, como consequência, é possível que a redução dos níveis de prevalência da hepatite D também esteja ocorrendo. A análise das notificações pode indicar se a instituição de medidas de controle da hepatite B ajudaram no combate à hepatite D.
O estudo teve por objetivo analisar a incidência anual de casos de hepatite D no Brasil e na região Norte, no período de 2009 a 2018.
Métodos
Estudo ecológico de análise de série temporal de casos notificados de hepatite D, por município de residência, realizado entre 2009 e 2018, considerando-se o Brasil e todos os estados da região Norte. Foram obtidas informações sobre números absolutos de casos por estado, sexo (masculino; feminino) e idade (dividida em três faixas etárias, em anos: <20; 20 a 39; ≥40), logo incluídas em planilhas eletrônicas. Dados oficiais do Ministério da Saúde, de livre acesso, foram acessados em 20 de setembro de 2020, nos endereços eletrônicos do Sistema de Informação de Agravos de Notificação (Sinan) e da Secretaria de Vigilância em Saúde (SVS) do Ministério.11,12 Foram considerados e analisados casos notificados como agudos e crônicos. Os municípios com maior número de notificações foram representados em mapa.
Para cálculo de taxa de detecção (casos/população) por 100 mil habitantes, foram utilizadas estimativas populacionais, com base em dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).13 Os dados extraídos e as taxas calculadas foram incluídos em planilhas eletrônicas (Microsoft Office Excel, versão 2016). Para testar a tendência temporal, por estado e faixa etária, foram criados modelos lineares não paramétricos pelo método de Prais-Winsten,14 utilizando-se as transformações logarítmicas dos dados (Stata 6.0 - Statacorp, College Station, USA, 1999). As tendências foram classificadas como crescentes, decrescentes ou estacionárias, quando os coeficientes β fossem, respectivamente, significantes positivos, significantes negativos ou não significantes. A variação percentual anual (VPA) foi calculada utilizando-se o coeficiente β da regressão na seguinte fórmula:
Intervalos de confiança a 95% (IC95%) da VPA foram calculados. A significância estatística foi definida em <0,05. A estatística de Durbin-Watson (DW) foi utilizada para descartar resultados com autocorrelação.
Resultados
Foram registrados 2.710 casos de hepatite D no país entre 2009 e 2018, sendo 1.529 (56,4%) do sexo masculino. Na região Norte, foram notificados 2.019 (74,5%) casos, sendo 1.283 (63,5%) do sexo masculino. No Brasil e na região Norte, os casos aumentaram até 2011, mantiveram platô até 2014 e declinaram passado esse período (Tabela 1).
Em relação à idade, as séries temporais mostram decréscimo na incidência de casos de hepatite D no país, nas faixas etárias abaixo de 20 (VPA=-43,4% - IC95% -55,5;-28,0 - p-valor=0,001) e de 20 a 39 anos (VPA=-29,1% - IC95% -43,5;-11,0 - p-valor=0,008). Acima de 40 anos, a queda observada não foi estatisticamente significativa (VPA=-4,9% - IC95% -23,4;18,1 - p-valor=0,605).
A taxa de detecção anual de hepatite D na região Norte variou entre 0,23 e 1,27 por 100 mil hab., superior à taxa nacional, que variou de 0,06 a 0,20/100 mil hab. A maioria dos casos do Norte (1.189) foi notificada no Amazonas (58,9%) e no Acre (29,2%), estado que também foi o primeiro em concentração de casos, com taxa de detecção variando de 1,8 a 13,2/100 mil hab. (Tabela 1). Pará, Roraima, Amapá e Tocantins, somados, apresentaram 82 casos (4,1%), com baixas taxas de detecção (Figura 1).
A análise de série temporal (Tabela 1) mostrou tendência decrescente da incidência anual de hepatite D no período de 2009 a 2018, para o Brasil (p-valor=0,025), a região Norte (p-valor=0,025) e os estados do Acre (p-valor=0,004) e do Amazonas (p-valor<0,05). A estatística de Durbin-Watson mostrou que não houve autocorrelação. Para os demais estados do Norte, não houve significância estatística ou ocorreu autocorrelação. Na soma das outras quatro regiões do país, a taxa de detecção foi muito baixa e não mostrou tendência de alta ou queda no período (p-valor=0,339).
Entre os 60 casos notificados como hepatite D aguda, Amazonas (36) e Acre (12) registraram a maioria, sendo que apenas 16 (26,7%) foram detectados depois de 2013.
A análise por município de residência mostrou que, no Acre, 82,7% dos casos de hepatite D se concentraram em seis municípios, especialmente em Rio Branco -226 (43,8%) e Cruzeiro do Sul, 143 (27,5%). No Amazonas, 78% dos casos estavam concentrados em oito municípios. Já em Rondônia, 64 (40,2%) casos foram registrados em Porto Velho (Figura 2).
Tabela 1 - Análise de tendência pelo método de Prais-Winsten da taxa de detecção de hepatite D (casos por 100 mil hab.) e variação percentual anual, por estado da região Norte, região Norte e Brasil, 2009-2018
Período | Acre | Amazonas | Rondônia | Pará | Roraima | Amapá | Tocantins | Norte | Brasil | Outras regiões do paísa | |||||||||||||||||||
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n | Taxa | n | Taxa | n | Taxa | n | Taxa | n | Taxa | n | Taxa | n | Taxa | n | Taxa | n | Taxa | n | Taxa | ||||||||||
2009 | 91 | 13,17 | 125 | 3,68 | 12 | 0,80 | 2 | 0,03 | 4 | 0,95 | 0 | 0,00 | 2 | 0,15 | 236 | 1,00 | 299 | 0,16 | 63 | 0,04 | |||||||||
2010 | 64 | 8,72 | 155 | 4,45 | 13 | 0,83 | 3 | 0,04 | 3 | 0,66 | 0 | 0,00 | 0 | 0,00 | 238 | 0,98 | 294 | 0,15 | 56 | 0,03 | |||||||||
2011 | 91 | 12,19 | 197 | 5,57 | 11 | 0,70 | 5 | 0,07 | 8 | 1,74 | 0 | 0,00 | 2 | 0,14 | 314 | 1,27 | 391 | 0,20 | 77 | 0,05 | |||||||||
2012 | 63 | 8,30 | 128 | 3,56 | 18 | 1,13 | 3 | 0,04 | 6 | 1,28 | 4 | 0,57 | 0 | 0,00 | 222 | 0,89 | 308 | 0,16 | 86 | 0,05 | |||||||||
2013 | 75 | 9,66 | 197 | 5,17 | 11 | 0,64 | 4 | 0,05 | 3 | 0,61 | 0 | 0,00 | 1 | 0,07 | 291 | 1,13 | 369 | 0,18 | 78 | 0,04 | |||||||||
2014 | 99 | 12,53 | 174 | 4,49 | 7 | 0,40 | 6 | 0,07 | 2 | 0,40 | 2 | 0,27 | 2 | 0,13 | 292 | 1,12 | 360 | 0,18 | 68 | 0,04 | |||||||||
2015 | 39 | 4,85 | 82 | 2,08 | 48 | 2,71 | 3 | 0,04 | 0 | 0,00 | 0 | 0,00 | 0 | 0,00 | 172 | 0,67 | 250 | 0,12 | 78 | 0,04 | |||||||||
2016 | 33 | 4,04 | 16 | 0,40 | 10 | 0,56 | 1 | 0,01 | 0 | 0,00 | 1 | 0,13 | 0 | 0,00 | 61 | 0,23 | 132 | 0,06 | 71 | 0,04 | |||||||||
2017 | 15 | 1,81 | 52 | 1,28 | 16 | 0,89 | 2 | 0,02 | 0 | 0,00 | 3 | 0,38 | 1 | 0,06 | 89 | 0,33 | 162 | 0,08 | 73 | 0,04 | |||||||||
2018 | 19 | 2,19 | 63 | 1,54 | 13 | 0,74 | 4 | 0,05 | 3 | 0,52 | 1 | 0,12 | 1 | 0,06 | 104 | 0,38 | 145 | 0,07 | 41 | 0,04 | |||||||||
VPAb (%) | -37,6 | -34,1 | -0,3 | -6,1 | -19,3 | -28,7 | -20,1 | -28,5 | -21,6 | -0,23 | |||||||||||||||||||
IC95% c | -52,6;-18,0 | -56,2;-0,8 | -27,4;36,9 | -34,5;34,7 | -45,7;19,9 | -57,4;19,3 | -20,2;-20,0 | -46,1;-5,2 | -36,2;-3,8 | -0,76;0,29 | |||||||||||||||||||
p-valor | 0,004 | 0,047 | 0,982 | 0,697 | 0,222 | 0,128 | 0,000 | 0,025 | 0,025 | 0,339 | |||||||||||||||||||
DWd | 1,96 | 1,77 | 2,33 | 1,62 | 1,61 | 0,99e | 0,84e | 1,68 | 1,69 | 1,42 |
a) Outras regiões do Brasil: dados das demais regiões do Brasil, sem considerar a região Norte. Variação de 63 (2009) a 41 (2018) casos, com máximo de 86 (2012); b) VPA: variação percentual anual; c) IC95%: intervalo de confiança de 95%; d) DW: Estatística de Durbin-Watson, para avaliação de autocorrelação. Para esses modelos de séries temporais, com dez observações e dois termos (ano e intercepto), a autocorrelação é descartada se a estatística calculada estiver entre 1,3 e 2,7; e) Análises que apresentaram autocorrelação.

Figura 1 - Taxa de detecção de hepatite D (casos por 100 mil hab.) nos estados da região Norte e no Brasil, 2009-2018

Nota: Município de residência e respectivos casos notificados: 1. Manaus (404); 2. Eirunepé (149); 3. Lábrea (123); 4. Atalaia do Norte (100); 5. Coari (54); 6. Boca do Acre (45); 7. Fonte Boa (38); 8. Guajará (17); 9. Rio Branco (226); 10. Cruzeiro do Sul (143); 11. Sena Madureira (41); 12. Tarauacá (39); 13. Feijó (25); 14. Santa Rosa do Purus (15); 15. Porto Velho (64); e 16. Guajará-Mirim (7).
Figura 2 - Amazônia Ocidental brasileira, com os municípios de residência dos casos nos três estados brasileiros com mais notificações de hepatite D, 2009-2018
Discussão
O presente estudo mostrou declínio na detecção de casos de hepatite D no país, como consequência da queda na região Norte, onde a doença foi identificada como endêmica desde os anos 1970.15 Essa tendência foi significativa sobretudo entre os mais jovens. No período 2009-2018, houve maior proporção de notificações nos estados que correspondem ao sudoeste da Amazônia Ocidental (Acre, Amazonas e Rondônia), onde se encontram as maiores prevalências no país.1,4,8 Análise das séries temporais mostrou queda significativa na taxa de detecção no Acre e no Amazonas, influenciando os números da hepatite D na região Norte e no país como um todo.
Alguns autores,6,8 ao estudarem comunidades rurais na última década, identificaram elevada prevalência de hepatite D entre os portadores da hepatite B, que gera preocupação sobre o controle endêmico da doença. No entanto, os números da hepatite B vêm caindo no país,9 provavelmente em função da melhoria nas medidas de biossegurança, triagem de doadores e, principalmente, da vacinação universal de crianças.9,10 Com o progressivo controle da hepatite B no país, seria esperado igual efeito sobre a hepatite D, dependente da primeira.
Dado que corrobora a impressão de controle gradual e a importância da vacinação é o “envelhecimento” dos casos, com tendência de queda significativa até os 39 anos e não acima dessa idade. Os segmentos mais jovens da população brasileira são os que mais se beneficiaram da vacinação, pois têm sido vacinados há mais tempo. A vacinação para todas as idades só foi liberada há poucos anos. A progressiva queda na detecção de casos de hepatite D aguda, igualmente, sugere controle paulatino da doença.
Os municípios do estado do Amazonas com mais notificações estão próximos à fronteira com o Acre, assim como os dois municípios mais afetados de Rondônia. A confluência desses municípios corresponde à área banhada pelos afluentes dos rios Juruá, Purus e Madeira, historicamente identificada como de maior endemicidade para as hepatites B e D no país.2,3,8
As limitações deste estudo são inerentes aos sistemas de notificação de agravos, universalmente sujeitos a subnotificação e inconsistências. Isso se torna mais preocupante na Amazônia, por conta de dificuldades logísticas para as ações de vigilância e oferta de assistência à saúde, em áreas de difícil acesso e com condições precárias para conservação de insumos e equipamentos. Ainda há o agravante da falta crônica de reagentes para diagnóstico da hepatite D, uma vez que os kits são caros e difíceis de obter, por se tratar de doença negligenciada, objeto de poucos investimentos da indústria de insumos biomédicos.2,3 Provavelmente, o número real de casos é maior que o de notificações, especialmente porque a doença pode se manter assintomática por longos períodos. Porém, não há tendência de aumento de subnotificação, uma vez que o sistema brasileiro de vigilância epidemiológica vem se aperfeiçoando nas últimas décadas.16
A técnica de Prais-Winsten, para modelar séries temporais, pode induzir a erro pela autocorrelação de resíduos, especialmente em séries pequenas.14 Para evitar esse erro, utilizou-se a estatística de Durbin-Watson e foram desconsideradas as séries com autocorrelação.
Outra limitação do estudo encontra-se no desconhecimento de onde e quando essas pessoas foram infectadas. No entanto, os casos notificados como agudos são um indicativo de infecção recente. Como foi demonstrado aqui, esses casos estão diminuindo.
Apesar da tendência de queda, a hepatite D continua a ser detectada, principalmente entre os mais velhos. Muitos desses casos são fruto de infecções antigas, muitas vezes identificadas apenas em estágios avançados. Além de reforçar a vacinação contra hepatite B, é importante incrementar a busca ativa de casos de hepatite D entre os portadores da hepatite B, com o intuito de se implementar o tratamento em fases iniciais da doença.
A análise da incidência de hepatite D na região Norte, entre 2009 e 2018, sugere que a doença está em declínio, especialmente nos estratos mais jovens de sua população. O esforço de vacinação contra a hepatite B, iniciado décadas atrás, pode ser a razão dessa melhora. Manter altos níveis de cobertura vacinal, incluindo os estratos mais velhos da população, deve ser incentivado como estratégia fundamental para alcançar a eliminação do agravo na região.