Introdução
A varicela, causada pelo vírus da varicela-zóster (VVZ), é uma doença altamente contagiosa. Ela pode gerar complicações, desde infecções de pele até pneumonia, encefalite e coagulopatias que, em alguns casos, requerem hospitalizações.1,2 O período de incubação da doença é de 10 a 21 dias após a exposição, e a transmissão ocorre pelo contato direto com indivíduo portador da varicela ou varicela-zóster, ou pelo contato direto ou indireto com secreções respiratórias, lesões de pele ou objetos contaminados.3 Seu diagnóstico é essencialmente clínico, e os principais sintomas são exantema, febre baixa, cefaleia, anorexia e vômitos.2 A varicela é uma doença imunoprevenível.
A Organização Mundial da Saúde (OMS) estima que no mundo, 4,2 milhões de pessoas são hospitalizadas a cada ano por complicações graves da varicela, e 4.200 vão a óbito.4 No Brasil, as internações por varicela apresentam um padrão sazonal, superior entre os meses de setembro e novembro.5 Segundo o Ministério da Saúde, no período entre 2012 e 2017, foram notificados 602.136 casos e 38.612 internações por varicela no Brasil;6 de 2012 a 2016, foram registrados 649 óbitos, mais frequentemente de crianças de 1 a 4 anos de idade (33,4%).6
A vacina contra varicela foi incorporada ao calendário nacional de vacinação do Programa Nacional de Imunizações (PNI) em 2013, na forma tetravalente (sarampo, caxumba, rubéola e varicela) e, a partir de 2018, uma segunda dose de reforço, com a tetravalente, para crianças de 4 anos, podendo ser estendida até 6 anos de idade.7
A varicela deve compor o monitoramento de eventos importantes para a Saúde Pública brasileira, uma vez que alguns países da América Latina, incluindo a Venezuela, não disponibilizam vacinas contra a doença em seus sistemas públicos de saúde.4
Desde 2013, vem sendo registrado um aumento do fluxo migratório de pessoas, pelo município de Pacaraima, na fronteira com a Venezuela, intensificado a partir de 2017, chegando-se a registrar a entrada de 111.581 venezuelanos no Brasil, em decorrência da crise sociopolítica e humanitária naquele país.8 O conhecimento do cenário de vulnerabilidade dos imigrantes, assim como o levantamento de informações técnicas sobre surtos de varicela nessa população, contribui para o planejamento e implementação de ações mais efetivas na região.
O objetivo do estudo foi descrever o surto de varicela entre imigrantes venezuelanos em abrigos e ocupações nos municípios de Pacaraima e Boa Vista, Roraima, Brasil, e as medidas de controle implementadas.
Métodos
Trata-se de um estudo descritivo de tipo ‘série de casos’, que analisou dados secundários anonimizados da investigação do surto de varicela entre imigrantes venezuelanos logrados em abrigos e ocupações nos municípios de Pacaraima e Boa Vista, estado de Roraima, em 2019. O banco de dados utilizado no estudo foi disponibilizado em agosto de 2020, pela Coordenação-Geral do Programa Nacional de Imunização (CGPNI).
O estado de Roraima é constituído por 15 municípios. Localizado na região Norte brasileira, ele conta com uma população estimada de 631.181 habitantes, faz limites internacionais com a Venezuela e a Guiana, e nacionalmente, com os estados do Amazonas e Pará.9 Boa Vista é a capital de Roraima; Pacaraima, situa-se no extremo norte do estado, distante 215 km da capital, na fronteira com a Venezuela, sendo uma das principais portas de entrada terrestre de venezuelanos para o Brasil.9 No ano do estudo, os dois municípios representavam aproximadamente 70,0% da população roraimense.9
Em 2019, a CGPNI foi acionada frente a um surto de varicela em Boa Vista e Pacaraima. Os participantes do estudo foram as pessoas alojadas em 14 abrigos e 14 ocupações de imigrantes venezuelanos em ambos os municípios, no período de 21 de novembro a 13 de dezembro de 2019.
Para esta investigação, realizou-se busca ativa em todos os alojamentos e ocupações que registraram casos. Foi utilizado formulário semiestruturado, em papel, contemplando variáveis de dados socioeconômicos, demográficos, clínicos e epidemiológicos.
Para a seleção dos participantes, foram adotadas as seguintes definições:
caso ativo de varicela - indivíduo que apresentou exantema maculopapulovesicular, sem outra causa aparente, ainda dentro do período de transmissão da doença, durante o período de 21 de novembro a 13 de dezembro de 2019; e
suscetível para varicela - indivíduo sem comprovação vacinal para varicela, que não teve a doença no passado ou fosse menor de 15 meses de idade.
Os indivíduos que apresentaram manifestações clínicas compatíveis com a varicela no período de cinco a 26 dias após a vacinação foram excluídos do estudo por se tratar, possivelmente, de reação pós-vacinal. Outras definições de eventos ou situações utilizadas no estudo foram:
surto de varicela - ocorrência de dois ou mais casos de varicela no período de 21 de novembro a 13 de dezembro de 2019;
vacinado - indivíduo que, aos 15 meses de idade, recebeu uma dose de tetravalente (varicela, sarampo, caxumba e rubéola) ou uma dose de tríplice viral mais a vacina da varicela monovalente, e/ou indivíduo que, dos 4 aos 6 anos, recebeu uma dose de reforço com varicela monovalente;
abrigos - locais adaptados ou construídos pelo Ministério da Defesa do Brasil para servir de domicílio temporário aos imigrantes;
ocupações - prédios públicos ocupados de forma ilegal pelos imigrantes; e
complicações da varicela - problemas hematológicos, neurológicos, respiratórios, cutâneos, hepáticos, urinários e/ou ósseos, decorrentes da varicela.
As variáveis socioeconômicas e demográficas analisadas foram:
- data do início dos sintomas;
- sexo (masculino; feminino);
- idade (em anos: <2, 2 a 9; 10 a 19; 20 a 29; 30 a 39; 40 a 49);
- escolaridade (analfabeto; ensino fundamental completo; ensino fundamental incompleto; ensino médio completo; ensino médio incompleto; ensino superior completo; ensino superior incompleto);
- possuía profissão na Venezuela (sim; não);
- exercício de atividade remunerada no Brasil (sim; não);
- ano da entrada da família no Brasil;
- passou pela Operação Acolhida (sim; não);
- número de pessoas por família;
- número de casos de varicela na família em 2019;
- intenção de voltar para a Venezuela (sim; não); e
- motivos para não voltar à Venezuela (crise em seu país; escolheu morar no Brasil).
As variáveis clínicas e epidemiológicas incluídas no estudo foram:
- grupo de sinais e sintomas, podendo ser exantema (sim; não), febre (sim; não), dor de cabeça (sim; não), mal-estar geral (sim; não), falta de apetite (sim; não), tosse (sim; não), coriza (sim; não) e vômito (sim; não);
- local do corpo onde começou o exantema (face; extremidades; tronco; costas; couro cabeludo);
- exantema generalizado no momento da entrevista (sim; não);
- procura de atendimento médico (sim; não);
- teve complicação (sim; não);
- tem cartão de vacinação (sim; não);
- vacinado contra varicela (sim; não);
- recebeu informação sobre a importância da vacina (sim; não);
- tipo de complicações (encefalite; pneumonia; infecção de pele; infecção de ouvido);
- intervalo entre a data do aparecimento do exantema e a data da entrada no Brasil (em número de dias completos).
Todas as ações de prevenção e controle implementadas pelas equipes de investigação do surto contaram com o apoio das equipes municipais e estaduais do PNI, totalizando 15 técnicos em enfermagem. Entre essas ações, foi administrada imunoglobulina humana antivaricela (IGHAV) em gestantes e menores de 1 ano, e realizou-se bloqueio vacinal com as vacinas tetraviral ou monovalente, de acordo com as determinantes técnicas do PNI.
As análises foram realizadas por meio da estatística descritiva, utilizando-se medidas de frequência simples e relativas. Também foram calculadas as medidas de tendência central (mediana) e de dispersão (valores mínimo e máximo). Foram utilizados os programas Epi Info 7.2™ e Excel 2013®. Os resultados das análises foram apresentados de forma conjunta, para os dois municípios - Pacaraima e Boa Vista -, devido à transitoriedade dos imigrantes que, em sua maioria, passavam pouco tempo em Pacaraima e tinham como destino Boa Vista.
O projeto do estudo foi submetido à Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (CONEP) do Ministério da Saúde e aprovado mediante o Parecer CONEP nº 4.416.520, de 24 de novembro de 2020.
Resultados
No período do estudo, foram identificados 9.591 imigrantes provenientes da Venezuela habitando em 14 abrigos e 14 ocupações nos municípios de Pacaraima e de Boa Vista. Ao todo, 1.500 imigrantes residiam nos abrigos e ocupações onde foram encontrados casos ativos e susceptíveis de varicela. Destes, inicialmente, 41 foram considerados casos ativos de varicela, sendo três descartados pela possibilidade de se tratar de reação pós-vacinal, restando 38 casos; 1.459 compuseram o grupo de pessoas para as quais foram implementadas as medidas de prevenção e controle durante as atividades de campo (Figura 1). Além disso, durante o estudo, não foram registrados óbitos entre os referidos casos ativos de varicela.
Dos 38 casos avaliados, 23 eram do sexo feminino; 17 casos eram de menores de 9 anos de idade, configurando esta faixa etária como mais acometida, enquanto 13 eram pessoas com 10 a 19 anos. Quanto à escolaridade, 14 tinham o ensino fundamental incompleto. Sobre a vida profissional, oito não tinham profissão na Venezuela e 11 não exerciam atividade remunerada no Brasil (Tabela 1).
Características sociodemográficas | N |
---|---|
Sexo | 38 |
Masculino | 15 |
Feminino | 23 |
Escolaridade | 25 |
Analfabeto | 1 |
Ensino fundamental completo | 3 |
Ensino fundamental incompleto | 14 |
Ensino médio completo | 2 |
Ensino médio incompleto | 2 |
Ensino superior completo | 1 |
Ensino superior incompleto | 2 |
Faixa etária (em anos) | 38 |
Menor de 1 | 6 |
1 a 9 | 11 |
10 a 19 | 13 |
20 a 29 | 6 |
30 a 39 | 1 |
40 a 49 | 1 |
Profissão na Venezuela | 14 |
Sim | 6 |
Não | 8 |
Exerce atividade remunerada no Brasil | 12 |
Sim | 1 |
Não | 11 |
Todos os 38 casos apresentaram exantema, 23 tiveram febre; 12, dor de cabeça; e 10 relataram mal-estar. Em 12, o exantema papulovesicular se iniciou pela face e 30 apresentaram exantema generalizado. Com relação ao atendimento médico, 22 referiram não ter procurado atendimento; um caso apresentou infecção de pele como complicação (Tabela 2).
Características clínicas | N |
---|---|
Sinais e sintomas | |
Exantema (papulovesicular) | 38 |
Febre | 23 |
Dor de cabeça | 12 |
Mal-estar geral | 10 |
Falta de apetite | 5 |
Tosse | 3 |
Coriza | 2 |
Vômito | 1 |
Onde começou o exantema | |
Face | 12 |
Extremidades | 9 |
Tronco | 9 |
Costas | 6 |
Couro cabeludo | 2 |
Exantema generalizado | |
Sim | 30 |
Não | 8 |
Procurou atendimento | |
Sim | 16 |
Não | 22 |
Teve complicação | |
Sim | 1 |
Não | 37 |
Dos casos, 31 apresentavam cartão de vacinação. Destes, 12 não estavam vacinados e 18 não possuíam indicação de vacina. Do total de casos, 25 referiram já ter recebido informações sobre a importância da vacina contra varicela (Tabela 3).
Características de imunização | N |
---|---|
Possui cartão de vacinação | |
Sim | 31 |
Não | 7 |
Vacina para varicela | 31 |
Sim | 1 |
Não | 12 |
Não se aplica | 18 |
Recebeu informação sobre a importância da vacina para varicela | |
Sim | 25 |
Não | 13 |
Considerando-se as famílias com casos ativos de varicela no período do estudo, totalizaram 184 pessoas, com uma mediana de quatro pessoas por família, podendo variar de um a 13 indivíduos. Em 2019, 84 integrantes das famílias foram infectados pela varicela. Em relação às 37 famílias de imigrantes, 29 entraram no Brasil no ano de 2019, pela fronteira da Venezuela com o município de Pacaraima, passando pela Operação Acolhida e seguindo para Boa Vista. A mediana do tempo desde a entrada no Brasil até o aparecimento do exantema papulovesicular foi de 93 dias, variando de 24 a 1.095 dias. Quanto aos representantes das famílias, 26 não pretendiam retornar à Venezuela, e destes, 15 referiram ser devido à crise em seus país.
Ainda cabe destacar que 1.459 pessoas receberam algum tipo de assistência relacionada às medidas de prevenção e controle implementadas durante as atividades de campo. Desses indivíduos, 125 eram crianças menores de 9 meses, 53 gestantes receberam uma dose de imunoglobulina humana antivaricela (IGHAV) e 1.281 receberam uma dose de vacina com a componente varicela (tetraviral ou monovalente) como ação de bloqueio vacinal.
Discussão
Os achados sobre o surto de varicela nos municípios de Pacaraima e Boa Vista, no estado de Roraima, mostraram que, considerando-se o grande contingente populacional identificado, o número de casos ativos foi muito abaixo do esperado para o cenário local. Os casos ativos estavam, em sua maioria, relacionados a crianças menores de 9 anos e adolescentes/jovens adultos, corroborando resultados de um estudo realizado em 2017, no México, onde se encontrou maior prevalência entre os indivíduos menores de 9 anos de idade.10
O número de gestantes e crianças menores de 9 meses observado no presente estudo aponta para um grave problema de Saúde Pública, dado o alto risco de abortamento e malformação fetal a que estão suscetíveis as gestantes expostas, assim como a ocorrência de casos graves, com complicação e até mesmo óbito.1
Quase todos os casos deste estudo apresentaram sintomas leves e a maioria não procurou atendimento médico, pois, normalmente, a varicela apresenta um curso benigno.11 Porém, uma pesquisa realizada na França, no período de 1987 a 2002, mostrou que a varicela também pode acarretar complicações graves em crianças jovens imunocompetentes.12
A maior parte dos casos informou possuir cartão vacinal, mas não estavam vacinados contra a doença. A literatura sugere que populações imigrantes, de maneira geral, experimentam maior carga de doenças evitáveis por vacina e menores taxas de imunização.13 Onze países da América Latina introduziram a vacinação universal contra a varicela até 2018; porém, os dados sobre o impacto da vacinação estão disponíveis somente para o Uruguai, Costa Rica e Brasil.14 No Uruguai, seis anos após a implementação da vacinação, no final de 1999, houve uma redução de 81% na proporção de hospitalizações de crianças entre 1 e 4 anos de idade, relacionadas à varicela.15
Outro estudo, este realizado na Costa Rica em 2007, mostrou uma diminuição de 79,1% nos casos notificados e de 87% nas internações em crianças menores de 5 anos de idade. No Brasil, na faixa etária vacinada (1 a 4 anos), após três anos da implementação da vacina em 2013, foi observada uma redução de 47,6% nas hospitalizações relacionadas à doença.16 Essas informações ratificam a importância da vacinação para o controle da varicela.
Mais da metade das famílias de imigrantes do estudo informou ter passado pela Operação Acolhida, da qual, quando indicado, receberam as seguintes vacinas: tríplice viral, febre amarela, difteria, tétano e coqueluche (DTP) e vacina dupla adulto (dT). Desde o início desse processo migratório no estado de Roraima, datado de 2017, a vacina da varicela monovalente também era administrada no momento de acolhida das famílias; a partir de 2013, de acordo com orientações do PNI, a vacinação passou a ser realizada pela Atenção Primária do Sistema Único de Saúde (SUS) dos municípios de Pacaraima e Boa Vista.17
Um estudo do Japão, realizado com imigrantes internacionais adultos no período entre 2012 e 2016, mostrou que 44% dos refugiados tiveram infecções de varicela após a chegada à Dinamarca, mostrando a necessidade de se verificar a imunidade ao VVZ desses imigrantes antes da entrada naquele país.18 O estudo de Roraima, quando analisada a mediana de tempo desde a entrada no Brasil e o aparecimento do exantema, revela que provavelmente os casos em Pacaraima e Boa Vista foram infectados no Brasil. Este achado reforça a importância da vacinação na fronteira, no momento da entrada no país, já que até 2019 a vacina da varicela, na Venezuela, estava disponível somente na rede privada de saúde.4
O grande número de pessoas que dividiam a mesma habitação, em sua maioria não vacinados ou fora da idade para receber a vacina tetraviral, pode ter contribuído para a manutenção dos casos de varicela nos abrigos e ocupações, corroborando os resultados de um trabalho realizado no Egito, no período de 2016 a 2017, quando se concluiu que a incidência da varicela é influenciada pela densidade populacional.19
A administração massiva de imunoglobulina em crianças menores de 9 meses e gestantes, além da intensificação vacinal, foi estratégica no sentido de interromper a transmissão da doença e evitar complicações entre crianças menores de 9 meses, assim como possíveis defeitos congênitos fetais. Tal medida, da maneira como foi conduzida em Roraima, foi identificada em um estudo realizado no ano de 2012, durante um surto de varicela entre imigrantes africanos; na ocasião, considerou-se adequada e necessária a vacinação precoce para todos, em um cenário de surto em ambientes fechados.20
Como limitação do presente estudo, pode ter ocorrido viés de classificação, haja vista a probabilidade de indivíduos excluídos terem sido casos ativos de varicela, subestimando os resultados.
Conclui-se que foram identificadas pessoas suscetíveis à varicela na investigação, levando à adoção de ações de imunização que controlaram a transmissão, evitando casos graves e óbitos, e sobrecarga da rede de assistência local. Destacou-se a importância das ações de monitoramento do estado de saúde dessas pessoas, a possibilidade do tratamento oportuno e a adoção de medidas efetivas de controle da infecção pelo vírus da varicela-zóster.