Contribuições do estudo
Principais resultados
A mortalidade por doenças tropicais negligenciadas (DTNs) no Piauí foi elevada no período 2001-2018, principalmente para doença de Chagas, leishmanioses e hanseníase, com maior expressão em grupos populacionais, territórios e contextos de maior vulnerabilidade social.
Implicações para os serviços
Conhecer a magnitude, tendência temporal e distribuição espacial das mortes por DTNs é essencial para fortalecer agendas estratégicas de prevenção e controle no Sistema Único de Saúde (SUS) para melhor direcionamento de recursos disponíveis.
Perspectivas
O estudo traz em perspectiva a composição de ações estratégicas e intersetoriais para controle de DTNs, visando alcançar as metas dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável/2030, especialmente a integração entre vigilância e atenção à saúde no SUS
Introdução
As doenças tropicais negligenciadas (DTNs) integram grupo diversificado de doenças de origem protozoária, helmíntica, bacteriana, viral, fúngica e parasitária.1,2 Elas são prevalentes em países e territórios de clima tropical, onde são comuns situações de pobreza, desigualdade e iniquidades em saúde, embora também haja registros de sua presença em áreas não endêmicas, em países desenvolvidos.2 Sua ocorrência está associada à significativa carga de morbimortalidade, incapacidade física e deformidades, além de sofrimento, preconceito e estigma, sendo seu controle um fator decisivo para o alcance de desenvolvimento humano e social.1,2
As DTNs estão presentes em aproximadamente 150 países e atingem 1,7 bilhão de pessoas, em todo o mundo, com mais de 200 mil óbitos associados anualmente.1 O Brasil registra parte considerável da carga de DTNs na América Latina, onde ocorrem aproximadamente 10 mil óbitos anuais, principalmente associados à doença de Chagas.3-5
A região Nordeste do país tem-se destacado por elevadas taxas de mortalidade por DTNs relativas ao período de 2001 a 2011 (5,3 óbitos/100 mil habitantes), com tendência temporal de crescimento e estabilidade em elevado patamar, além de possuir áreas de alto risco delimitadas.5,6 O Piauí se destaca como um dos estados do país com elevadas taxas de mortalidade por DTNs.3-6
O controle das DTNs como problema de saúde pública persiste enquanto um desafio, em regiões ou territórios com expressiva vulnerabilidade social,5-8 o que requer a elaboração de metas factíveis em nível global. Nessa perspectiva, a Organização Mundial da Saúde (OMS) lançou um novo roteiro que enfatiza, entre seus objetivos e metas, o alcance da eliminação das DTNs, para que sejam alcançados os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) até 2030, considerando-se suas especificidades e eixos comuns a seu controle.9
O conhecimento da magnitude das mortes por DTNs, suas tendências temporais e distribuição espacial em áreas endêmicas, entre distintos contextos de vulnerabilidade social e operacionais, é essencial para a qualificação do monitoramento e avaliação de estratégias de prevenção e controle pelo Sistema Único de Saúde (SUS).3-5 Tal conhecimento favorece a formulação de políticas públicas de saúde e a implementação de intervenções mais eficientes, com base em evidências, além de permitir melhor direcionamento de recursos disponíveis.3-5
Apesar da relevância, há limitações de estudos epidemiológicos no Brasil sobre territórios endêmicos, inclusive para esse grupo de doenças, em períodos de tempo representativos. O Piauí é uma das Unidades da Federação mais vulneráveis socialmente e, diante de desafios operacionais na estruturação de redes de atenção em saúde resolutivas, no acesso ao diagnóstico e tratamento. Nesse sentido, o presente estudo teve como objetivo analisar as tendências temporais e os padrões espaciais da mortalidade por DTNs no estado do Piauí, Brasil, no período de 2001 a 2018.
Métodos
Estudo ecológico, de desenho misto, incluindo análise de tendência temporal e padrões espaciais da mortalidade por DTNs no estado do Piauí, entre 2001 e 2018, tendo os municípios de residência como unidade de análise.
O Piauí se localiza no noroeste da região Nordeste do Brasil, divide-se em 224 municípios, que compõem quatro núcleos macrorregionais de saúde (Litoral; Meio Norte; Semiárido e Cerrados), e tem sua capital Teresina como centro de referência em saúde no estado (Figura 1).
Fonte: Bases cartográficas (shapefiles)/Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), 2019.
O estado somava uma população estimada de 3.281.480 habitantes em 2020, assentados sobre uma extensão territorial de 251.611,30 km2, com densidade demográfica de 12,4 hab./km2.10 Seus municípios são predominantemente de pequeno porte (<50 mil hab.) e marcados por pobreza e desigualdade social. Em 2017, o estado possuía índice de Gini (indicador do grau de concentração de renda) de 0,54 - o terceiro menor entre os estados do Nordeste - e 23,8% de sua população era classificada como ‘pobre’, ou seja, com renda domiciliar per capita inferior a R$ 140,00.11
O estudo foi realizado com base em dados secundários oficiais de óbitos por DTNs, registrados no Sistema de Informações sobre Mortalidade do Ministério da Saúde (SIM) e disponibilizados pelo Departamento de Informática do SUS (Datasus).
Para identificação dos óbitos por DTNs, foram consideradas todas as menções de causas de morte, causas múltiplas (causas básicas e causas associadas),12 registradas nas declarações de óbito referentes ao período de 2001 a 2018. O estudo considerou todas as DTNs que, atualmente, compõem a lista oficial da OMS, identificadas pelos respectivos códigos contemplados na Décima Revisão da Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde (CID-10), independentemente de serem consideradas autóctones ou não no Brasil.1,3,13
Para identificação das causas de óbitos por DTNs, aplicou-se algoritmo com funções condicionantes, para busca e identificação dos códigos CID-10 apresentados a seguir:
Protozoários - doença de Chagas (B57); leishmanioses (visceral e tegumentar [B55]); e tripanossomíase humana africana (B56);
Helmintos - esquistossomose (B65, N22); helmintíases transmitidas pelo solo [ascaridíase (B77)]; ancilostomíase (B76) e tricuríase (B79); oncocercose (B73); cisticercose/teníase (B68-B69); equinococose (B67); filariose linfática (B74); dracunculíase (B72) e trematodíase de origem alimentar [opistorquíase (B66.0); clonorquíase (B66.1); fasciolíase (B66.3); paragonimíase (B66.4)];
Bactérias - hanseníase (A30, B92); tracoma (A71, B94); úlcera de Buruli (A31.1) e treponematoses endêmicas [bouba (A66); pinta (A67); sífilis endêmica (A65)];
Vírus - raiva (A82); dengue (A90-A91); chikungunya (A92);
Fungos - micetoma (B47); cromoblastomicose (B43); histoplasmose (B39); coccidioidomicose (B38); paracoccidioidomicose (B41); esporotricose (B42); criptococose (B45);
Parasitas - escabiose (B86); tungíase (B88.1); larva migrans cutânea (B83); pediculose (B85); miíase (B87); e
Acidentes com animais peçonhentos - envenenamento por picada de cobra (T63.0); contato com serpentes/lagartos venenosos (X20).1,3,13
Os dados populacionais foram obtidos pelo Datasus, via censos demográficos nacionais de 2000 e 2010 e estimativas populacionais de anos intercensitários (2001-2009 e 2011-2018) realizados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
Foram utilizados ainda, dados do índice de vulnerabilidade social (IVS) dos municípios, que considera 16 indicadores estruturados em três dimensões - (i) infraestrutura urbana, (ii) capital humano e (iii) renda e trabalho -, cujo escore final se baseia na média aritmética dos subíndices das três dimensões.14
A magnitude da mortalidade por DTNs foi definida pelas frequências simples e relativa de óbitos identificados por causas múltiplas, para cada DTN específica e seu conjunto. Taxas médias brutas foram calculadas utilizando-se, como base, a população correspondente ao Censo 2010, expressa por 100 mil habitantes, com cálculo de seus intervalos de confiança de 95% (IC95%).
As seguintes variáveis explicativas, potencialmente associadas à mortalidade por DTNs, foram analisadas:
sexo (masculino; feminino);
faixa etária (em anos: até 4; 5 a 14; 15 a 19; 20 a 39; 40 a 59; 60 ou mais);
etnia ou raça/cor da pele (branca; negra; parda; amarela e indígena);
IVS (muito baixo = 0-0,199; baixo = 0,200-0,299; médio = 0,300-0,399; alto = 0,400-0,499; muito alto = 0,500-1,000);
porte do município [pequeno porte I (≤20.000 hab.); pequeno porte II (20.001-50.000 hab.); médio porte (50.001-100.000 hab.); grande porte (>100.001 hab.)]; e
macrorregiões de saúde (Litoral; Meio Norte; Semiárido; Cerrados).
Calculou-se a razão de taxa ou razão de risco [rate ratio/risk ratio (RR)] e seus IC95% , com determinação de diferenças entre os grupos pelo teste qui-quadrado (χ2) de Pearson. Para as análises estatísticas, utilizou-se o software Stata versão 11.2 (StataCorp LP, College Station, TX, USA).
A análise da tendência temporal considerou todas as variáveis explicativas mencionadas, com relação ao desfecho ‘óbitos por DTNs’. Para as taxas de mortalidade, estimadas via regressão de Poisson por pontos de inflexão (joinpoints), atribuiu-se significância estatística pelo método de permutação de Monte Carlo, para reconhecimento da melhor linha de cada segmento.
As tendências foram testadas, e validadas (i) a variação percentual anual [annual percent change (APC)] e (ii) a variação percentual anual média [average annual percent change (AAPC)], segundo IC95%. A tendência temporal foi representada pelo menor número de pontos de inflexão permitido, identificando-se a ocorrência de padrões de crescimento (APCs positivas), redução (APCs negativas) e ausência de tendência (APCs/AAPCs sem significância estatística).
Para esta análise, utilizou-se o Jointpoint Regression Program em sua versão 4.8.0.1 (Statistical Methodology and Applications Branch, Surveillance Research Program, National Cancer Institute, National Institute of Health, USA).
Para a distribuição espacial da mortalidade por DTNs, adotou-se estratificação por triênios (2001-2003; 2004-2006; 2007-2009; 2010-2012; 2013-2015; 2016-2018), com análise da média dos óbitos para identificação de padrões e tendências espaço-temporais. Os óbitos relacionados a DTNs com município de residência desconhecido foram desconsiderados pela análise.
As taxas médias (por 100 mil hab.) ajustadas por idade e sexo, com respectivos IC95%, foram calculadas pelo método direto de padronização, tendo como referência a distribuição etária e por sexo da população, segundo o Censo 2010.
O reconhecimento de padrões espaciais de concentração de óbitos por DTNs baseou-se no cálculo da taxa da média móvel espacial [spatial ratio (SR)], tendo como referência os óbitos ocorridos entre municípios vizinhos, considerando-se autocorrelação espacial. Buscou-se identificar municípios com maior concentração de óbitos por DTNs (excesso de risco), a partir do cálculo da razão de mortalidade padronizada [standardized mortality ratio (SMR)], resultante da divisão entre óbitos registrados e óbitos esperados. Segundo essa técnica de abordagem não espacial, considera-se ‘excesso de risco’ a situação de municípios com taxas acima da média, ignorando-se o efeito potencial da autocorreção espacial.
A categorização de classes espaciais para taxas ajustadas, média móvel espacial e razão de mortalidade padronizada baseou-se no método de quebras naturais (natural breaks), conforme a classificação de Jenks.
Os softwares qGis versão 3.10.7 (QGIS Geographic Information System, Open Source Geospatial Foundation Project) e GeoDa versão 1.18 (Geographic Data Analysis) foram utilizados para o cálculo de indicadores de autocorrelação e a construção de mapas temáticos.
O estudo fundamentou-se em dados secundários de mortalidade, de natureza anônima e acesso aberto, sendo, portanto, dispensado de submissão à apreciação de Comitê de Ética em Pesquisa (CEP).
Resultados
No Piauí, foram registrados 292.810 óbitos para o período 2001-2018, e deles, 2.609 (0,9%) foram decorrentes de DTNs segundo causa múltipla (causa básica e causa associada). Destes, 1.990 (76,3%) corresponderam à DTN enquanto causa básica e 619 (23,7%) a causas associadas ao óbito. A doença de Chagas foi a principal DTN registrada, com 1.441 (55,2%) entre todos os óbitos, seguida pelas leishmanioses (visceral e tegumentar), com 410 (15,7%), e pela hanseníase, com 360 (13,8%) óbitos (Tabela 1).
Variáveis | Códigos da CID-10a | Causa básica | Causa associada | Causa múltipla (básica + associada)b |
---|---|---|---|---|
N(%) | N(%) | N(%) | ||
Causadas por protozoários | ||||
Doença de Chagas | B57 | 1.218 (61,2) | 223 (36,0) | 1.441 (55,2) |
Leishmanioses | B55 | 358 (18,0) | 52 (8,4) | 410 (15,7) |
Tripanossomíase humana africana (doença do sono) | B56 | - (0,0) | 1 (0,2) | 1 (0,0) |
Causadas por helmintos | ||||
Esquistossomose | B65/N22 | 10 (0,5) | 1 (0,2) | 11 (0,4) |
Helmintíases transmitidas pelo solo | ||||
Ascaridíase/ancilostomíase | B76-B77 | - (0,0) | 4 (0,6) | 4 (0,2) |
Oncocercose (cegueira dos rios) | B73 | - (0,0) | 1 (0,2) | 1 (0,0) |
Cisticercose/teníase | B68-B69 | 34 (1,7) | 14 (2,3) | 48 (1,8) |
Equinococose | B67 | - (0,0) | 3 (0,5) | 3 (0,1) |
Filariose linfática | B74 | 2 (0,1) | 2 (0,3) | 4 (0,2) |
Trematodíases transmitidas por alimentos | ||||
Opistorquíase/clonorquíase/fasciolíase/paragonimíase | B66-B66.4 | - (0,0) | 1 (0,2) | 1 (0,0) |
Causadas por bactérias | ||||
Hanseníase | A30/B92 | 148 (7,4) | 212 (34,2) | 360 (13,8) |
Tracoma | A71/B94 | 6 (0,3) | 2 (0,3) | 8 (0,3) |
Úlcera de Buruli | A31.1 | - (0,0) | 1 (0,2) | 1 (0,0) |
Causadas por vírus | ||||
Raiva | A82 | 4 (0,2) | - (0,0) | 4 (0,2) |
Dengue | A90-A91 | 65 (3,3) | 13 (2,1) | 78 (3,0) |
Chikungunya | A92 | 8 (0,4) | 1 (0,2) | 9 (0,3) |
Causadas por fungos | ||||
Micetoma | B47 | 2 (0,1) | 1 (0,2) | 3 (0,1) |
Cromoblastomicose | B43 | 1 (0,0) | - (0,0) | 1 (0,0) |
Histoplasmose | B39 | 3 (0,1) | 3 (0,5) | 6 (0,2) |
Coccidioidomicose | B38 | 10 (0,5) | 1 (0,2) | 11 (0,4) |
Paracoccidioidomicose | B41 | 10 (0,5) | 2 (0,3) | 12 (0,5) |
Criptococose | B45 | 25 (1,3) | 41 (6,6) | 66 (2,5) |
Causadas por parasitas | ||||
Escabiose (sarna) | B86 | - (0,0) | 3 (0,5) | 3 (0,1) |
Larva migrans cutânea | B83 | 2 (0,1) | 3 (0,5) | 5 (0,2) |
Pediculose (infestações por piolhos) | B85 | - (0,0) | 1 (0,2) | 1 (0,0) |
Miíase | B87 | 23 (1,2) | 7 (1,1) | 30 (1,1) |
Acidente por animais peçonhentos | ||||
Envenenamento por picada de cobra | T63.0 | - (0,0) | 26 (4,2) | 26 (1,0) |
Contato com serpentes ou lagartos venenosos | X20 | 61 (3,1) | - (0,0) | 61 (2,3) |
Total | - | 1.990 (100,0) | 619 (0,0) | 2.609 (0,0) |
a) Décima Revisão da Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde (CID-10);13 b) Declarações de Óbito (DOs) com registro de pelo menos uma das causas de morte (básica e/ou associada) relacionadas às doenças tropicais negligenciadas
A taxa de mortalidade geral por DTNs no período avaliado foi de 4,6 óbitos/100 mil hab. (IC95% 3,85;5,35). Verificou-se maior proporção de óbitos, taxa de mortalidade e risco de óbitos para os seguintes grupos de pessoas: sexo masculino (n=1.641; 62,9%; taxa de 5,9 óbitos/100 mil hab.; IC95% 4,68;7,11), e risco 1,76 vez maior (IC95% 1,25;2,46) quando comparado ao mesmo risco para o sexo feminino; e faixa etária ≥60 anos (n=1.478; 56,7%; taxa de 25,2 óbitos/100 mil hab.; IC95% 19,78;30,70), e risco 40,71 vezes maior (IC95% 10,01;165,53) em relação à de 15-19 anos. Observou-se, para a variável 'etnia ou raça/cor da pele parda' um maior número e proporção de óbitos (n=1.613; 61,8%); entretanto, a maior taxa de mortalidade correspondeu à população de etnia ou raça/cor negra (6,56/100 mil hab.; IC95% 3,61;9.51) (Tabela 2).
Variáveisa | N(%) | Taxa bruta (IC95%b) | RRc (IC95%) | p-valord |
---|---|---|---|---|
Óbitos totais por DTNse | 2.609 (100,0) | 4,60 (3,85;5,35) | ||
Sexo | ||||
Feminino | 968 (37,1) | 3,36 (2,46;4,25) | 1,00 | |
Masculino | 1.641 (62,9) | 5,90 (4,68;7,11) | 1,76 (1,25;2,46) | 0,001 |
Faixa etária (anos) | ||||
0-4 | 146 (5,6) | 2,93 (0,90;4,95) | 4,72 (1,01;22,23) | 0,050 |
5-14 | 46 (1,8) | 0,50 (0,00;1,06) | 0,80 (0,13;4,81) | 0,812 |
15-19 | 28 (1,0) | 0,62 (0,00;1,48) | 1,00 | |
20-39 | 268 (10,3) | 1,48 (0,73;2,23) | 2,39 (0,55;10,45) | 0,247 |
40-59 | 642 (24,6) | 5,84 (3,93;7,74) | 9,42 (2,27;39,11) | 0,002 |
≥60 | 1.478 (56,7) | 25,24 (19,78;30,70) | 40,71 (10,01;165,53) | <0,001 |
Etnia ou raça/cor da pele | ||||
Branca | 457 (17,5) | 3,31 (2,01;4,61) | 1,00 | |
Parda | 1.613 (61,8) | 4,49 (3,56;5,42) | 1,36 (0,87;2,11) | 0,177 |
Negra | 343 (13,2) | 6,56 (3,61;9,51) | 1,98 (1,09;3,60) | 0,025 |
Amarela | 13 (0,5) | 1,51 (0,38;7,23) | 5,94 (3,04;11,60) | <0,001 |
Indígena | 1 (0,0) | 0,00 (0,00;88,88) | 8,99 (1,22;66,30) | 0,031 |
IVSf | ||||
Baixo | 589 (22,6) | 3,49 (2,30;4,68) | 1,00 | |
Médio | 606 (23,3) | 6,15 (4,08;8,22) | 1,76 (1,09;2,84) | 0,021 |
Alto | 861 (33,0) | 5,40 (3,87;6,92) | 15,46 (0,99;2,41) | 0,054 |
Muito alto | 551 (21,1) | 4,24 (2,75;5,74) | 12,16 (0,74;1,98) | 0,435 |
Porte do municípiog | ||||
Pequeno porte I | 1.315 (50,4) | 5,61 (4,32;6,90) | 1,99 (1,28;3,10) | 0,002 |
Pequeno porte II | 626 (24,0) | 5,27 (3,52;7,01) | 1,87 (1,13;3,09) | 0,014 |
Médio porte | 172 (6,6) | 5,18 (1,97;8,40) | 1,84 (0,89;3,81) | 0,099 |
Grande porte | 494 (19,0) | 2,81 (1,75;3,87) | 1,00 | |
Macrorregião de saúde | ||||
Litoral | 251 (9,6) | 2,13 (1,01;3,24) | 1,00 | |
Meio Norte | 713 (27,3) | 3,00 (2,07;3,93) | 1,41 (0,77;2,59) | 0,270 |
Semiárido | 635 (24,4) | 6,07 (4,06;8,09) | 2,85 (1,54;5,30) | 0,009 |
Cerrados | 1.008 (38,7) | 9,60 (7,09;12,12) | 4,51 (2,51;8,11) | <0,001 |
a) Dados indisponíveis: faixa etária = 1; etnia ou raça/cor da pele = 182; IVS = 2; porte do município = 2; b) IC95%: intervalo de confiança de 95%; c) RR: rate ratio/risk ratio (razão de taxa/razão de risco); d) P-valor: teste χ2 de Pearson; e) DTN: doenças tropicais negligenciadas; f) IVS: índice de vulnerabilidade social = muito baixo (0-0,199), baixo (0,200-0,299), médio (0,300-0,399), alto (0,400-0,499) e muito alto (0,500-1); g) Porte do município: pequeno porte I (≤20.000 hab.), pequeno porte II (20.001-50.000 hab.), médio porte (50.001-100.000 hab.) e grande porte (>100.001 hab.).
Maior número de óbitos por DTNs foi verificado em pessoas que residiam em municípios com IVS alto (n=861; 33,0%), embora a maior taxa de mortalidade (6,15/100 mil hab.; IC95% 4,08;8,22) e risco de morte por DTNs tenha-se observado entre os que residiam em municípios com IVS médio, apresentando um risco 1,76 vez maior (IC95% 1,09;2,84) quando comparado ao de pessoas que residiam em municípios com IVS baixo (Tabela 2).
Maior proporção de óbitos foi verificada entre residentes em municípios de pequeno porte I (n=1.315; 50,4%), com taxa de mortalidade de 5,61 óbitos/100 mil hab. (IC95% 4,32;6,90), e risco de óbito 1,99 vez maior (IC95% 1,28;3,10) frente ao dos municípios de grande porte. Na macrorregião Cerrados, verificaram-se 1.008 (38,7%) óbitos por DTNs, taxa de mortalidade de 9,60 óbitos/100 mil hab. (IC95% 7,09;12,12) e risco de morte 4,51 vezes maior (IC95% 2,51;8,11) em relação à macrorregião do Litoral (Tabela 2).
Verificou-se, entre 2001 e 2008, tendência temporal significativa de aumento das taxas de mortalidade geral por DTNs (APC = 7,9; IC95% 3,1;12,9). Todavia, verificou-se tendência de redução das taxas de mortalidade por DTNs (APC = -3,1; IC95% -5,5;-0,7) no período de 2008 a 2018 (Tabela 3).
Variável | Tendências | Período total | |
---|---|---|---|
Período | APCa (IC95%b) | AAPCc (IC95%b) | |
Óbitos totais por DTNsd | 2001-2008 | 7,9g (3,1;12,9) | 1,3 (-0,9;3,5) |
2008-2018 | -3,1g (-5,5;-0,7) | ||
Sexo | |||
Feminino | 2001-2011 | 4,6g (0,1;9,3) | 0,9 (-6,5;8,8) |
2011-2015 | -12,2 (-33,6;16,1) | ||
2015-2018 | 7,6 (-18,7;42,4) | ||
Masculino | 2001-2008 | 8,8g (3,1;14,7) | 1,8 (-0,6;4,4) |
2008-2018 | -2,7g (-5,4;-0,0) | ||
Faixa etária (em anos) | |||
0-4 | 2001-2016 | -4,9g (-9,5;-0,2) | -1,5 (-14,0;12,7) |
2016-2018 | 28,1 (-61,8;330,0) | ||
5-14 | 2001-2007 | 12,4 (-8,7;38,5) | -0,5 (-8,6;8,3) |
2007-2018 | -7,0 (-15,3;2,2) | ||
15-19 | 2001-2018 | -3,1 (-7,7;1,7) | -3,1 (-7,7;1,7) |
20-39 | 2001-2018 | 0,9 (-1,8;3,6) | 0,9 (-1,8;3,6) |
40-59 | 2001-2010 | 1,9 (-3,3;7,3) | -2,6 (-6,2;1,1) |
2010-2018 | -7,5g (-13,3;-1,2) | ||
≥60 | 2001-2007 | 13,2g (5,3;21,7) | 1,5 (-1,2;4,2) |
2007-2018 | -4,4g (-6,5;-2,2) | ||
Etnia ou raça/cor da pele | |||
Branca | 2001-2009 | 6,2 (-04;13,2) | 0,1 (-3,6;4,0) |
2009-2018 | -5,0 (-10,0;0,4) | ||
Parda | 2001-2008 | 11,9g (6,7;17,4) | 3,4g (1,1;5,7) |
2008-2018 | -2,2 (-4,5;0,2) | ||
Negra | 2001-2010 | 4,5 (-3,3;12,9) | -0,1 (-5,5;5,5) |
2010-2018 | -5,1 (-13,7;4,3) | ||
Amarela | 2001-2015 | 4,3 (-5,2;14,9) | -2,0 (-14,6;12,4) |
2015-2017 | -36,9 (-84,4;155,5) | ||
IVSe | |||
Baixo | 2001-2008 | 6,9 (-3,4;18,2) | 1,5 (-3,2;6,5) |
2008-2018 | -2,1 (-7,4;3,5) | ||
Médio | 2001-2004 | -9,1 (-32,1;21,6) | -0,7 (-11,4;11,2) |
2004-2007 | 26,8 (-34,4;145,0) | ||
2007-2018 | -4,9g (-8,3;-1,3) | ||
Alto | 2001-2008 | 7,6g (1,6;14,0) | 1,6 (-1,1;4,4) |
2008-2018 | -2,4 (-5,4;0,6) | ||
Muito alto | 2001-2008 | 13,2g (3,7;23,6) | 4,2g (0,2;8,3) |
2008-2018 | -1,7 (-5,6;2,3) | ||
Porte do municípiof | |||
Pequeno porte I | 2001-2008 | 10,2g (6,1;14,5) | 2,4g (0,6;4,2) |
2008-2018 | -2,8g (-4,7;-0,9) | ||
Pequeno porte II | 2001-2004 | -14,3 (-33,5;10,5) | -0,3 (-10,4;11,0) |
2004-2007 | 32,0 (-29,8;148,1) | ||
2007-2018 | -3,7g (-6,4;-0,9) | ||
Médio porte | 2001-2009 | 14,1g (1,8;27,9) | 2,9 (-3,6;9,8) |
2009-2018 | -6,1 (-14,3;2,8) | ||
Grande porte | 2001-2014 | 1,4 (-1,8;4,7) | -0,5 (-5,1;4,3) |
2014-2018 | -6,5 (-23,0;13,6) | ||
Macrorregião de saúde | |||
Litoral | 2001-2010 | 4,0 (-4,0;12,6) | 0,4 (-5,1;6,1) |
2010-2018 | -3,6 (-12,2;6,0) | ||
Meio Norte | 2001-2003 | 27,3 (-35,4;150,7) | 2,8 (-4,6;10,8) |
2003-2018 | -0,0 (-2,4;2,3) | ||
Semiárido | 2001-2007 | 10,7 (-0,2;22,8) | 2,5 (-1,5;6,7) |
2007-2018 | -1,7 (-5,4;2,1) | ||
Cerrados | 2001-2008 | 9,8g (3,4;16,5) | 0,7 (-2,1;3,6) |
2008-2018 | -5,2g (-8,3;-2,0) |
a) APC: variação percentual média; b) IC95%: intervalo de confiança de 95%; c) AAPC: variação percentual anual média; d) DTNs: doenças tropicais negligenciadas; e) IVS: índice de vulnerabilidade social = muito baixo (0-0,199), baixo (0,200-0,299), médio (0,300-0,399), alto (0,400-0,499) e muito alto (0,500-1); f) Porte do município: pequeno porte I (≤20.000 hab.), pequeno porte II (20.001-50.000 hab.), médio porte (50.001-100.000 hab.) e grande porte (>100.001 hab.); g) Significativamente diferente de 0,00 (p-valor<0,05), método de permutação de Monte Carlo.
Essa tendência temporal das taxas de mortalidade também foi verificada para os seguintes grupos: pessoas do sexo masculino, em 2001-2008 (APC = 8,8; IC95% 3,1;14,7) e 2008-2018 (APC = -2,7; IC95% -5,4;-0,0); pessoas residentes em municípios de pequeno porte I (≤20.000 hab.), em 2001-2008 (APC = 10,2; IC95% 6,1;14,5) e 2008-2018 (APC = -2,8; IC95% -4,7;-0,9); e residentes na macrorregião dos Cerrados, em 2001-2008 (APC = 9,8; IC95% 3,4;16,5) e 2008-2018 (APC = -5,2; IC95% -8,3;-2,0) (Tabela 3).
Registrou-se aumento das taxas de mortalidade por DTNs em 2001-2008 (APC = 11,9; IC95% 6,7;17,4), na população que se autodeclarou de raça/cor da pele parda, mesma tendência mantida considerando-se toda a série histórica de 2001-2018 (APC = 3,4; IC95% 1,1;5,7). Observaram-se, ainda, tendências de aumento das taxas de mortalidade por DTNs em 2001-2008, entre pessoas que residiam em municípios com IVS alto (APC = 7,6; IC95% 1,6;14,0) e muito alto (APC = 13,2; IC95% 3,7;23,6).
Houve tendência significativa de aumento das taxas de mortalidade em diferentes períodos, nos seguintes grupos: pessoas do sexo feminino, em 2001-2011 (APC = 4,6; IC95% 0,1;9,3); pessoas com ≥60 anos de idade, em 2001-2007 (APC = 13,2; IC95% 5,3;21,7); e pessoas residentes em municípios de médio porte, em 2001-2009 (APC = 14,1; IC95% 1,8;27,9) (Tabela 3).
Tendências de redução da mortalidade por DTNs foram verificadas em crianças menores de 5 anos, em 2001-2016 (APC = -4,9; IC95% -9,5;-0,2), na faixa etária de 40-59 anos, em 2010-2018 (APC = -7,5; IC95% -13,3;-1,2), assim como entre residentes em municípios de médio IVS (APC = -4,9; IC95% -8,3;-1,3) e de pequeno porte II (APC = -3,7; IC95% -6,4;-0,9), em 2007-2018 (Tabela 3).
A) Taxa de mortalidade padronizada por idade e sexo (por 100 mil habitantes); B) taxa média móvel espacial (spatial ratio, por 100 mil hab.); C) Razão de mortalidade padronizada (standardized mortality ratio).
Identificou-se concentração espacial de municípios com elevadas taxas de mortalidade por DTNs, ajustadas por idade e sexo, variando de 0,0 a 63,7 óbitos/100 mil hab., a sudoeste da macrorregião Semiárido, nordeste e sul dos Cerrados. O padrão espacial, com concentração de elevadas taxas nesses municípios, manteve-se ascendente nos três primeiros triênios, com redução menos significativa nos triênios posteriores (Figura 2 A ).
Nos municípios limítrofes ao nordeste da macrorregião Cerrados, incluindo a região ao sul dos Cerrados, e sudoeste do Semiárido, registrou-se tendência de crescimento da média móvel espacial da mortalidade nos três primeiros triênios, com taxas variando de 0,0 a 41,0 óbitos/100 mil hab., e concentrações de áreas com altas taxas (≥20,0 óbitos/100 mil hab.) do terceiro ao quinto triênios (Figura 2 B).
Houve excesso de risco, com ampliação do padrão de concentração de municípios com razões de mortalidade padronizada acima da média, em municípios limítrofes a nordeste da macrorregião dos Cerrados e sudoeste do Semiárido, e a sul dos Cerrados. No último triênio, houve redução expressiva desse padrão, semelhantemente ao observado no segundo triênio (Figura 2 C).
Discussão
A mortalidade por DTNs é elevada no Piauí e persiste como problema de saúde pública, principalmente devido a doença de Chagas, leishmanioses e hanseníase. A verificação de tendências temporais e padrões espaciais nos 18 anos de análise demonstra risco aumentado, particularmente para grupos populacionais e territórios em contexto de maior vulnerabilidade. Ressalta-se a existência de padrões de concentração de altas taxas em municípios limítrofes, a sudoeste da macrorregião do Semiárido, nordeste e sul dos Cerrados.
As agendas e ações políticas para controle de DTNs no país variaram no período analisado. Destaca-se, em 2012, o lançamento pelo Ministério da Saúde de um plano integrado de ações estratégicas, com a meta de eliminação de algumas DTNs, como hanseníase, filariose, esquistossomose e oncocercose, além de tracoma (importante causa de cegueira) e geo-helmintíases, como problema de saúde pública. O conjunto de ações previstas pode ter justificado, ainda que em parte, a redução de taxas e tendências de mortalidade por DTNs.15 Apesar dos avanços nas agendas nacionais, reconhece-se a necessidade de fortalecimento de ações estratégicas que integrem vigilância e atenção à saúde.
Análises semelhantes às realizadas neste estudo demonstraram redução das taxas de mortalidade por DTNs ao longo do tempo. Entretanto, nesses estudos, foi verificado um padrão diferenciado para a região Nordeste, variando de tendência de estabilidade a crescimento.5,6 Análises de tendência temporal das mortes por DNTs, desconsiderando-se doença de Chagas, reforçam o impacto da sua morbimortalidade na população e maior ocorrência em regiões mais pobres, com maior vulnerabilidade social.5
Análise por causas básicas de óbitos por DTNs no estado de Sergipe identificou a esquistossomose como a principal causa de óbito.16 Apesar da menor ocorrência de óbitos por esquistossomose no Piauí, verificou-se padrão similar ao registrado no referido estudo, com tendências temporais crescentes de mortalidade por DTNs, sobretudo em 2008, e redução a partir do respectivo ano.
A maior proporção de óbitos por doença de Chagas, leishmanioses e hanseníase identificada neste estudo evidencia a gravidade dessas DTNs no Brasil, pela elevada carga de morbimortalidade. Estados e municípios da região Nordeste têm apresentado padrão endêmico persistente, com maior ocorrência de anos potenciais de vida perdidos por incapacidade [disability-adjusted life year (DALY)] para DTNs, representando um dos grandes desafios na gestão da saúde pública no contexto do SUS, principalmente nos estados do Nordeste.4,8,15-18
Houve maior proporção de óbitos e risco associado a DTNs em pessoas do sexo masculino e idosas, sendo esses resultados semelhantes aos verificados em estudos realizados na América Latina, incluindo Argentina, Equador e Colômbia.19-21
Desigualdades na mortalidade, com maiores taxas, risco e incremento em tendências entre pessoas do sexo masculino, raça/cor da pele parda e negra, crianças e idosos, refletem maior probabilidade de evolução para quadros clinicamente mais graves, reafirmando a vulnerabilidade frente à crítica e persistente desigualdade social no Piauí.6,7,17,22,23
A limitação de acesso a diagnóstico e tratamento oportuno de DTNs com base na atenção integral traduz-se por diferentes dimensões de vulnerabilidade individual, social e operacional, que remetem a características culturais, genéticas, de autocuidado, presença de comorbidades e menor qualidade de vida, além da fragilidade nas redes de atenção à saúde, gerando falhas na saúde pública.3,15,17,24-26
Os maiores riscos de morte, expressos pelas medidas de proporção, taxas e RRs de óbitos relacionados a DTNs em municípios e macrorregiões com maiores IVS reforçam a relação direta dessas doenças com a pobreza e precárias condições de vida. E expressam iniquidades em saúde, pois correspondem aos fatores explicativos dos determinantes sociais em saúde que favorecem a ocorrência e manutenção dessas doenças nos territórios.6-8,26
A maior carga de mortalidade em munícipios de pequeno porte localizados na macrorregião dos Cerrados pode estar associada a limitações de acesso ao diagnóstico e tratamento oferecidos nas redes de atenção do SUS. São municípios mais distantes da capital e dependentes de municípios de maior porte, onde estão concentrados centros de referência para doenças infecciosas, hospitais regionais, hemocentros, polos comerciais, industriais e educacionais.17,26
A ocorrência de padrões espaciais caracterizados pela concentração de elevadas taxas de mortalidade ajustadas, maiores médias móveis espaciais e razões de mortalidade padronizadas foi expressiva em municípios limítrofes das macrorregiões do Semiárido e Cerrados, e podem ser resultantes de processos migratórios internos, entre municípios, que favorecem a urbanização e a expansão territorial de DTNs, em sua maioria condições infecciosas crônicas.
Estes resultados corroboraram achados de estudos sobre a mortalidade por DTNs específicas, como hanseníase, nas regiões Norte e Nordeste do Brasil,7,17 e leishmaniose visceral em municípios da região Nordeste.8 Nesses estudos, verificou-se aumento do número de municípios do Piauí com altas taxas de mortalidade por hanseníase, calculadas com base na média móvel,7 e aglomerados de alto risco de óbito por leishmaniose visceral que envolveram 200 municípios piauienses.8 Ressaltam-se as evidências de municípios ou regiões que vivenciam situações de vulnerabilidade social e apresentam maior risco de morte por DTNs, indicando a necessidade de implementação de estratégias intersetoriais para controle nesses locais.4,7,8,17,27,28
Entre os principais fatores que podem contribuir para concentrações de elevadas taxas de mortalidade e manutenção das endemias de DTNs, encontram-se: (i) as iniquidades em saúde; (ii) as alterações climáticas; (iii) a ocorrência de endemias rurais; (iv) a concentração populacional nos grandes centros urbanos; (v) as controvérsias frente à eutanásia canina; (vi) as dificuldades de acesso a residências, para atuação de agentes de combate a endemias; (vii) o saneamento básico deficitário; (viii) as precárias condições socioeconômicas; (ix) a fragilidade de políticas locais de emprego e renda; e (x) a limitação de recursos financeiros para ações de vigilância.6,16,22,23,28,29
A situação de negligência de populações e territórios afetados por DTNs também é agravada por fatores como baixos investimentos públicos e privados, falta de interesse da indústria no desenvolvimento de métodos diagnósticos mais eficientes e com acesso ampliado no SUS, além de vacinas e novas opções terapêuticas mais seguras e efetivas para tratamento oportuno.24 A superação dessa negligencia é fundamental para o alcance das metas de eliminação das DTNs até 2030, previstas na agenda dos ODS das Nações Unidas.9,30
Outro fator agravante consiste na limitação dos recursos para fomento de pesquisas, disponibilidade de dados epidemiológicos e operacionais precisos no nível municipal, para análises, visando orientar o controle. Estes problemas não só dificultam o alcance de metas e estratégias estabelecidas pela OMS, incluindo a delimitação do número de pessoas acometidas por DTNs e sob risco, como contribuem para a persistência da elevada carga de morbimortalidade.4,23
Os achados do presente estudo podem contribuir para a qualificação das agendas de vigilância, atenção e controle de DTNs no estado do Piauí, particularmente em territórios mais críticos e populações sob maior risco e vulnerabilidade. Eles respaldam a necessária ampliação dos serviços, de forma inclusiva e com base intersetorial.
O estudo apresenta limitações relacionadas às bases de dados utilizadas, que podem ter levado a subestimação das taxas por erros de diagnóstico, incompletude e/ou inconsistências nas bases de mortalidade e populacionais de origem. Contudo, ressalta-se que a pesquisa possui aspectos diferenciais, como a análise de um amplo grupo de DTNs durante extenso período, assim como a inclusão de causas múltiplas de morte por DTNs, entre as quais complicações que podem ter favorecido o desfecho. Ressalta-se que algumas DTNs não são de notificação compulsória no Brasil, e sua análise, a partir de registros no SIM, permite reconhecer padrões epidemiológicos de maior gravidade.
A mortalidade por DTNs no Piauí persiste em patamares elevados, com destaque para populações e territórios de maior vulnerabilidade, a serem priorizados. O reconhecimento da carga de morbimortalidade no Piauí contribui com o aprimoramento de políticas públicas inclusivas, intersetoriais e integradas de geração de renda, educação, atenção à saúde, vigilância, prevenção e controle de doenças tropicais negligenciadas (DTNs), necessárias para a superação das desigualdades e ampliação do desenvolvimento humano e social.