Contribuições do estudo
Principais resultados
No Piauí, entre registros hospitalares de COVID-19 com desfecho, a letalidade foi elevada, especialmente no interior do estado, o que aponta para diferenças regionais de atenção à saúde como fatores que influenciam o desfecho hospitalar.
Introdução
Os óbitos hospitalares ocasionados por internações de indivíduos com COVID-19 têm variado de acordo com o local de hospitalização. Por exemplo, enquanto a proporção de óbitos hospitalares foi de 15% nos Estados Unidos1 e de 26% no Reino Unido,2 a média no Brasil era de 38%, independentemente da faixa etária.3 Regiões brasileiras menos desenvolvidas e com maior desigualdade social apresentam proporção de óbitos hospitalares ainda maiores, como a região Nordeste, 48%, e a região Norte, 50%.3
A mortalidade hospitalar por COVID-19 pode variar com a idade, raça/cor da pele, dificuldade de acesso a assistência imediata e recursos terapêuticos, além de outros fatores, como gravidade do quadro clínico e necessidade de suporte ventilatório.1-3 No Brasil, os óbitos hospitalares por COVID-19 atingiram níveis superiores a 60% em indivíduos com idade igual ou superior a 80 anos, chegando a 80% naqueles submetidos a ventilação mecânica invasiva.3
O estado do Piauí, localizado no Nordeste brasileiro, apresenta indicadores de saúde preocupantes relacionados à pobreza e ao menor acesso aos serviços de saúde, a exemplo da elevada taxa de mortalidade materna,4 e é um dos estados com risco elevado de impactos da desigualdade social sobre a pandemia de COVID-19. No Piauí, precárias condições sanitárias, baixa disponibilidade de leitos, carência de equipes treinadas em cuidados intensivos e menor oferta de testes diagnósticos da COVID-19 são considerados fatores de risco para óbito hospitalar pela doença.5-7 O crescimento do número de casos nos municípios do interior do estado aumentou a preocupação quanto à capacidade instalada dos serviços de saúde e sua adequação à demanda de casos graves que necessitam de internação. Na ausência desses serviços no interior, a busca por assistência de alta complexidade na capital, Teresina, tende a aumentar ainda mais.
Com a elevação da demanda por serviços de saúde pública decorrente da COVID-19 e, ademais, com a ausência de ações coordenadas entre as três esferas de governo, os estados, estrategicamente, elaboraram seus planos de atuação para o enfrentamento da pandemia.
Este estudo teve por objetivo descrever o perfil e a variação temporal de internações e óbitos hospitalares pela síndrome respiratória aguda grave (SRAG) causada por COVID-19 no Piauí, de acordo com o local de internação.
Métodos
Delineamento
Trata-se de um estudo ecológico descritivo com base nos registros de internações hospitalares de indivíduos com COVID-19 no Sistema de Informação da Vigilância Epidemiológica da Gripe (SIVEP-Gripe), entre as semanas epidemiológicas 12 de 2020 (início em 15/03/2020) e 12 de 2021 (final em 27/03/2021), no estado do Piauí, Brasil.
Contexto
O Piauí reunia uma população estimada de 3.289.820 habitantes em 2021, distribuída entre 224 municípios, por sua vez agrupados em 11 regiões de saúde: Carnaubais; Cocais; Chapada das Mangabeiras; Entre Rios; Planície Litorânea; Serra da Capivara; Tabuleiros do Alto Parnaíba; Vale do Canindé; Vale dos Rios Piauí e Itaueiras; Vale do Rio Guaribas; e Vale do Sambito. A capital Teresina possuía 868.075 (26,5%) habitantes e encontra-se na região de saúde de Entre Rios. Mesmo após o aumento da oferta de leitos no interior durante a pandemia, em março de 2021, 71% (302/428) dos leitos de unidades de terapia intensiva (UTIs) estavam concentrados na capital do estado. Três regiões de saúde do Piauí não possuem leitos de UTI: Tabuleiros do Alto Parnaíba, Vale do Sambito e Carnaubais.8
O SIVEP-Gripe é o sistema de informações da vigilância epidemiológica da gripe no Brasil, em que são registrados os casos de SRAG necessitados de hospitalização. Nas fichas de notificação de SRAG, os dados de indivíduos hospitalizados são anonimizados e agrupados, e os bancos de dados, de acesso público, disponibilizados na plataforma do Departamento de Informática do Sistema Único de Saúde (Datasus).
Participantes
Para este estudo, foram incluídos todos os registros de indivíduos hospitalizados com diagnóstico de SRAG no estado do Piauí entre as semanas epidemiológicas 12 de 2020 e 12 de 2021. Foram excluídos aqueles que não tiveram o diagnóstico de COVID-19 registrado como causa. Dessa forma, assegurou-se que apenas indivíduos com COVID-19 hospitalizados fossem incluídos nas análises.
As etapas de seleção do período, critérios de inclusão e exclusão de indivíduos e demais análises foram realizadas utilizando-se o software R versão 4.0.2, após download dos bancos de dados da plataforma Datasus.
Variáveis
Foram analisadas as seguintes variáveis, extraídas do banco SIVEP-Gripe, relativas aos casos de COVID-19 hospitalizados no período de estudo:
sexo (masculino; feminino);
faixa etária (em anos: 0 a 59; 60 ou mais);
raça/cor da pele [branca; negra (pretos e pardos); amarela; indígena; ignorada];
escolaridade (sem escolaridade; ensino fundamental completo; ensino médio completo; ensino superior);
comorbidades (0; 1 a 2; 3 ou mais);
local de hospitalização (capital; interior);
local de hospitalização em UTI (capital; interior);
data de hospitalização (dia, mês e ano);
internação em UTI (sim; não);
suporte ventilatório (não; não invasivo; invasivo); e
desfecho hospitalar (cura; óbito).
Fonte de dados e mensuração
Os dados hospitalares analisados, provenientes do SIVEP-Gripe e disponibilizados na plataforma do Datasus, referiam-se aos anos de 20209 e 2021,10 período de estudo correspondente ao primeiro ano de pandemia no Piauí. Informações sobre o número de leitos hospitalares de UTI foram obtidas do sítio eletrônico da Secretaria de Estado da Saúde do Piauí.8
A letalidade por COVID-19 entre registros hospitalares com desfecho foi calculada dividindo-se o número total de indivíduos que foram a óbito pelo total de registros de indivíduos com desfecho hospitalar (alta ou óbito) no momento da coleta de dados. A letalidade em UTI entre registros com desfecho foi calculada dividindo-se o total de indivíduos internados em UTI que foram a óbito pelo total de indivíduos internados em UTI com desfecho verificado. A letalidade entre registros hospitalares de indivíduos com desfecho, submetidos a ventilação mecânica invasiva, foi calculada a partir do número de indivíduos submetidos a ventilação mecânica invasiva que foram a óbito, dividido pelo total de indivíduos internados submetidos a ventilação mecânica invasiva com desfecho hospitalar registrado.
Controle de viés
Devido à falta de informações de algumas variáveis no banco de dados do SIVEP-Gripe, esses dados foram classificados como valores ignorados, e excluídos do cálculo da letalidade. A completude das variáveis utilizadas no estudo foi de 84,5%; porém, algumas variáveis, como ‘escolaridade’ e ‘comorbidade’, apresentaram elevados percentuais de dados ignorados, equivalentes a 59,1% e 63,3% respectivamente.
Métodos estatísticos
A análise foi feita utilizando-se o software R, versão 4.0.2. Realizou-se a análise descritiva dos dados, calculando-se médias e desvios-padrão (DP) para variáveis quantitativas; e frequências relativas, para variáveis categóricas. As variáveis ignoradas e sem preenchimento foram excluídas da análise descritiva. A letalidade por COVID-19 entre registros hospitalares com desfecho foi calculada com seus respectivos intervalos de confiança a 95% (IC95%) utilizando-se o método de Agresti & Coull.11 Na comparação entre capital e interior do estado, foram considerados diferentes os IC95% que não apresentaram sobreposição. Em relação à análise da variação temporal, a letalidade por COVID-19 entre registros hospitalares com desfecho foi calculada para períodos de quatro semanas e de acordo com o local de hospitalização - interior ou capital.
Resultados
Entre as semanas epidemiológicas 12 de 2020 e 12 de 2021, foram registrados 18.014 casos de indivíduos internados por SRAG no estado do Piauí, segundo o SIGEP-Gripe. Desses, 5.365 (29,8%) foram excluídos por não apresentarem diagnóstico confirmado de COVID-19 (3.906 sem diagnóstico etiológico, 1.218 aguardando resultado ou sem diagnóstico etiológico, 216 afetados por outras viroses respiratórias e 25 por outras causas). Dos 12.649 hospitalizados com COVID-19, 5.866 (46,4%) receberam alta hospitalar, 3.277 (25,9%) vieram a óbito e 3.506 (27,7%) não possuíam informação sobre desfecho hospitalar até o momento da coleta de dados (Figura 1).
A média de idade dos indivíduos hospitalizados foi de 60±19 anos. Um total de 5.761 (45,5%) indivíduos tinham até 59 anos e 6.888 (54,5%) idade igual ou maior que 60 anos. A maioria era do sexo masculino (57,1%), de raça/cor da pele negra (61,2%) e apresentava uma ou duas comorbidades (30,5%). Os indivíduos foram hospitalizados, majoritariamente, na capital do estado, representando 79,5% do total de admissões, sendo 76,6% deles a ocupar leitos de UTI (Tabela 1).
Variáveis | n (%) |
---|---|
Sexo | |
Masculino | 7.222 (57,1) |
Feminino | 5.427 (42,9) |
Faixa etária (anos) | |
0-59 | 5.761 (45,5) |
≥60 | 6.888 (54,5) |
Raça/cor da pele | |
Branca | 1.541 (12,2) |
Negra (preta e parda) | 7.740 (61,2) |
Amarela | 269 (2,1) |
Indígena | 17 (0,1) |
Ignorada | 3.082 (24,4) |
Escolaridade | |
Sem escolaridade | 681 (5,4) |
Ensino fundamental completo | 1.828 (14,4) |
Ensino médio completo | 1.640 (13,0) |
Ensino superior | 1.029 (8,1) |
Ignorado | 7.471 (59,1) |
Comorbidades | |
0 | 459 (3,6) |
1-2 | 3.856 (30,5) |
≥3 | 333 (2,6) |
Ignorado | 8.001 (63,3) |
Local de hospitalização | |
Capital | 10.054 (79,5) |
Interior | 2.595 (20,5) |
Local de hospitalização em unidade de terapia intensiva | |
Capital | 3.097 (76,6) |
Interior | 938 (23,4) |
Total | 12.649 (100,0) |
Entre os 9.143 indivíduos com desfecho hospitalar (alta ou óbito), a letalidade elevou-se à medida que aumentou o percentual de casos necessitados de cuidados intensivos e de procedimentos invasivos, aproximando-se de 100%, especialmente no interior do estado (Tabela 2). Entre os 2.096 indivíduos hospitalizados com COVID-19 e com informações sobre desfecho hospitalar no interior, 925 vieram a óbito, obtendo-se uma letalidade de 44,1% (IC95% 42,0;46,3). Entre os 872 indivíduos do interior internados em UTI e com informação de desfecho hospitalar, 718 vieram a óbito, correspondendo a uma letalidade de 82,3% (IC95% 79,7;84,8), enquanto entre os hospitalizados submetidos a ventilação mecânica invasiva (n=679), 656 foram a óbito, observando-se uma letalidade de 96,6% (IC95% 94,9;97,8) (Tabela 2).
Variáveis | Total | Capital | Interior | |||
---|---|---|---|---|---|---|
n | % (IC95%a) | n | % (IC95%a) | n | % (IC95%a) | |
Sexo | ||||||
Feminino | 3.958 | 34,2 (32,7;35,7) | 3.006 | 31,6 (30,0;33,3) | 952 | 42,2 (39,1;45,4) |
Masculino | 5.185 | 37,1 (35,8;38,5) | 4.041 | 34,7 (33,2;36,2) | 1.144 | 45,7 (42,9;48,6) |
Raça/cor da pele | ||||||
Amarela | 182 | 26,9 (21,0;33,8) | 174 | 25,9 (19,9;32,9) | 8 | 50,0 (21,5;78,5) |
Negra | 5.748 | 38,6 (37,3;39,9) | 4.315 | 33,8 (32,4;35,2) | 1.433 | 53,1 (50,5;55,7) |
Branca | 1.023 | 40,4 (37,4;43,4) | 909 | 36,6 (33,6;39,8) | 114 | 70,2 (61,2;77,8) |
Escolaridade | ||||||
Sem escolaridade | 583 | 48,9 (44,8;52,9) | 474 | 41,6 (37,2;46,0) | 109 | 80,7 (72,3;87,1) |
Ensino fundamental completo | 1.404 | 41,2 (38,6;43,8) | 1.192 | 34,6 (32,0;37,4) | 212 | 77,8 (71,7;82,9) |
Ensino médio completo | 1.003 | 22,3 (19,9;25,0) | 923 | 20,5 (18,0;23,2) | 80 | 43,8 (33,4;54,7) |
Ensino superior | 494 | 19,8 (16,6;23,6) | 463 | 18,4 (15,1;22,1) | 31 | 41,9 (26,4;59,3) |
Comorbidades | ||||||
0 | 350 | 35,1 (30,3;40,3) | 308 | 30,5 (25,6;35,9) | 42 | 69,0 (53,9;81,0) |
1-2 | 2.945 | 43,6 (41,9;45,4) | 2.485 | 40,0 (38,1;41,9) | 460 | 63,5 (59,0;67,8) |
≥3 | 285 | 60,4 (54,6;65,9) | 241 | 55,2 (48,8;61,3) | 44 | 88,6 (75,6;95,5) |
Unidade de terapia intensiva | ||||||
Não | 5.080 | 14,7 (13,8;15,7) | 4.195 | 14,5 (13,4;15,6) | 885 | 16,0 (13,8;18,6) |
Sim | 3.366 | 70,9 (69,3;72,4) | 2.494 | 66,8 (65,0;68,7) | 872 | 82,3 (79,7;84,8) |
Suporte respiratório | ||||||
Não | 2.066 | 9,1 (7,9;10,4) | 1.859 | 9,5 (8,3;10,9) | 207 | 5,3 (2,9;9,4) |
Não invasivo | 4.264 | 23,0 (21,7;24,3) | 3.273 | 23,6 (22,2;25,1) | 991 | 20,9 (18,5;23,5) |
Invasivo | 2.222 | 87,8 (86,4;89,1) | 1.543 | 84,0 (82,1;85,7) | 679 | 96,6 (94,9;97,8) |
Total | 9.143 | 35,8 (34,9;36,8) | 7.047 | 33,4 (32,3;34,5) | 2.096 | 44,1 (42,0;46,3) |
a) IC95%: intervalo de confiança de 95%.
Na capital do estado, a letalidade por COVID-19 entre todos os registros hospitalares com desfecho foi de 33,4% (IC95% 32,3;34,5), sendo de 66,8% (IC95% 65,0;68,7) entre os internados em UTI e de 84,0% (IC95% 82,1;85,7) entre os submetidos a ventilação mecânica invasiva (Tabela 2).
Indivíduos hospitalizados, do sexo masculino, de raça/cor da pele negra e com comorbidades apresentaram letalidades mais elevadas (Tabela 2). Observou-se diminuição da letalidade à medida que aumentou o nível de escolaridade, especialmente entre os indivíduos internados residentes no interior, cuja letalidade foi de 80,7% (IC95% 72,3;87,1) entre os sem escolaridade, de 77,8% (IC95% 71,7;82,9) naqueles com ensino fundamental completo, de 43,8% (IC95% 33,4;54,7) entre os que cursaram o ensino médio, e de 41,9% (IC95% 26,4;59,3) entre os que possuíam nível de escolaridade superior (Tabela 2).
A letalidade por COVID-19 entre registros hospitalares com desfecho foi maior para idosos, especialmente no interior do estado. Nos indivíduos com 60 anos ou mais de idade, a letalidade foi de 45,0% (IC95% 43,4;46,5) na capital e de 55,4% (IC95% 52,8;58,1) no interior. Entre os indivíduos do mesmo grupo etário que necessitaram de cuidados intensivos e os receberam, a letalidade foi de 73,9% (IC95% 71,8;76,0) na capital e de 86,5% (IC95% 83,6%;88,9) no interior. Quando submetidos a ventilação invasiva, a letalidade nos indivíduos com 60 anos ou mais foi de 88,9% (IC95% 86,9;90,7) na capital e de 98,3% (IC95% 96,7;99,1) no interior (Figura 2).
A) Letalidade geral ocorrida no interior e na capital, por faixa etária (em anos); B) Letalidade em unidade de terapia intensiva, por local de hospitalização e faixa etária (em anos); C) Letalidade em indivíduos que receberam ventilação invasiva, por local de hospitalização e faixa etária (em anos).
No período de estudo, foram observadas diferenças no padrão de ocorrência de admissões hospitalares, entre interior e capital do Piauí. Na capital, o pico de hospitalizações ocorreu entre as semanas epidemiológicas 24 e 27 de 2020, quando foram registrados 1.434 indivíduos internados, ao passo que, no interior, o maior número de hospitalizações correspondeu às semanas epidemiológicas de 9 a 12 de 2021, quando foram registradas 351 hospitalizações (Figura 3A). Na capital, o pico de admissão de indivíduos em UTI e do uso de suporte respiratório invasivo ocorreu nas semanas epidemiológicas de 24 a 27 de 2020, quando se registraram 428 e 304 casos respectivamente. No interior do estado, o maior número de hospitalizações em UTI e de uso de suporte respiratório aconteceu entre as semanas 9 e 12 de 2021, quando foram registrados 145 e 129 casos respectivamente (Figuras 3B e 3C).
A) Variação temporal do número de hospitalizações por COVID-19 ocorridas na capital e no interior do estado; B) Variação temporal do número de indivíduos com COVID-19 submetidos a cuidados intensivos; C) Variação temporal do número de indivíduos com COVID-19 que receberam ventilação invasiva; D) Variação temporal da letalidade em indivíduos hospitalizados; E) Variação temporal da letalidade em indivíduos admitidos em unidade de terapia intensiva; F) Variação temporal da letalidade em indivíduos submetidos a ventilação invasiva.
Durante os anos analisados, independentemente da variação no número de admissões hospitalares, a letalidade por COVID-19 entre registros hospitalares com desfecho no interior do estado manteve-se mais elevada do que na capital Teresina, na maior parte desse período, especialmente em UTIs e entre aqueles submetidos a ventilação invasiva. A letalidade variou de 25,0% (IC95% 14,0;40,4) a 49,6% (IC95% 43,5;55,7) na capital, enquanto, no interior, atingiu um percentual de 59,3% (IC95% 48,4;69,3) entre as semanas 20 e 23 de 2020 (Figura 3D). Para os indivíduos admitidos em UTI, a letalidade variou de 43,7% (IC95% 23,1;66,8) a 76,9% (IC95% 70,1;82,1) na capital, enquanto, no interior, manteve-se maior que 70,0% após a semana epidemiológica 19 de 2020 (Figura 3E). E para os submetidos a ventilação mecânica invasiva na capital, a letalidade manteve-se acima de 78,0% (IC95% 65,7;86,8) durante a maior parte do período, enquanto, no interior do estado, manteve-se próxima a 100,0% ao longo de todo o período analisado (Figura 3F).
Discussão
A análise das internações por SRAG devidas a COVID-19 no Piauí mostrou alta letalidade entre registros hospitalares com desfechos , sobretudo no interior do estado e entre os enfermos submetidos a ventilação mecânica invasiva. O estudo permitiu a caracterização do perfil de internados no estado, observando-se maior percentual de idosos, do sexo masculino, da raça/cor da pele negra e a presença de uma ou duas comorbidades. Ainda, a análise identificou variação temporal no número de internações hospitalares, na capital e no interior, revelando-se a sincronização das curvas nas últimas semanas epidemiológicas analisadas. As curvas da letalidade entre indivíduos admitidos em UTI e submetidos a ventilação mecânica com desfecho foram, ao longo de todo o período estudado, maiores no interior do estado.
É importante ressaltar que o estudo se baseou em dados secundários e apresenta limitações inerentes a eles, como informações desatualizadas, menor confiabilidade e problemas relativos à precisão nos registros. A fonte de dados utilizada foi o SIVEP-Gripe, de preenchimento obrigatório. Trata-se do principal repositório de dados hospitalares em nível nacional, embora possível de ser influenciado pelo fluxo de dados entre as esferas de governo, além de ter fragilidades quanto ao preenchimento. No estado do Piauí, as variáveis ‘escolaridade’ e ‘comorbidades’ apresentaram os menores percentuais de completude, o que pode ter influenciado a análise do perfil dos casos encontrados e analisados.
Outra limitação do presente estudo está relacionada à escassez na oferta de testes moleculares no país, prioritariamente aplicados em indivíduos com quadro de maior gravidade. A análise, restrita àqueles internados com diagnóstico confirmado por teste molecular e, portanto, com quadros potencialmente mais graves, pode ter superestimado a letalidade. Para reduzir esse viés, foram incluídos no estudo todos os indivíduos com diagnóstico de COVID-19 cadastrados no SIVEP-Gripe.
No Piauí, mais de um terço dos indivíduos hospitalizados com desfechos veio a óbito, resultado semelhante ao encontrado em estudo retrospectivo, sobre dados de hospitalizações registradas no SIVEP-Gripe para todo o Brasil, em que essa proporção foi de 38%.3 No entanto, a letalidade entre casos de COVID-19 internados em UTIs do estado foi superior à reportada anteriormente, tanto para o Brasil (59%) como para o Nordeste brasileiro (70%).3 Essa diferença torna-se ainda mais acentuada ao se compararem as hospitalizações de indivíduos com necessidade de cuidados intensivos e suporte ventilatório, entre o interior e a capital do estado.
Entre os indivíduos submetidos a ventilação mecânica invasiva com desfecho, os indicadores de letalidade na capital, Teresina, e nos municípios do interior do Piauí, mostraram-se superiores aos observados no país (80%) e na região Nordeste (87%).3 Se a letalidade em regiões com recursos limitados, como o Norte e o Nordeste, é maior do que em outras regiões do Brasil,12 os resultados verificados neste estudo superam, ademais, os achados de estudos realizados em várias regiões do mundo. A letalidade de indivíduos gravemente afetados pela COVID-19 e submetidos a ventilação invasiva, descrito em uma metanálise que incluiu 69 estudos e 57.420 indivíduos de vários países, foi de 45%.13 No Brasil, uma coorte com 2.054 indivíduos, internados em 25 hospitais de 11 cidades e três estados, mostrou 59,5% de óbitos entre os indivíduos que necessitaram de ventilação mecânica invasiva.14 Vários fatores devem ser considerados para tal resultado, entre os quais se destacam o menor acesso aos cuidados de saúde e a menor disponibilidade de insumos, equipamentos e profissionais de saúde treinados para lidar com indivíduos com COVID-19 e suas complicações. Além disso, os serviços especializados no interior do país, em geral, podem apresentar menor número de médicos, intensivistas e profissionais especializados nesses cuidados - fato que também tem sido associado a maior mortalidade intra-hospitalar.15
Fatores já relatados na literatura, como comorbidades, idade, sexo e escolaridade, também foram relevantes para o aumento dos óbitos hospitalares. Neste estudo, apesar da grande quantidade de informações ignoradas, as comorbidades mais frequentes - doenças cardiovasculares, seguidas por diabetes mellitus e obesidade - corroboram os resultados de uma revisão sistemática sobre 53 estudos, localizados a partir de busca realizada até setembro de 2020, incluindo 375.859 participantes de 14 países.16 A presença de comorbidades, especialmente em idosos, pode aumentar a necessidade de internação em UTI, de ventilação mecânica e, consequentemente, representar maior risco de morte.13,17,18 Em relação à escolaridade, observou-se clara diminuição dos óbitos hospitalares à medida que aumentaram os anos de estudos dos indivíduos, independentemente do local de hospitalização, capital ou interior do estado, corroborando resultados similares apresentados, como indicadores sociodemográficos associados com alta mortalidade hospitalar no Brasil.19,20
A interiorização dos casos da COVID-19 e o aumento da demanda por atendimento em todos os serviços de saúde disponíveis no estado podem influenciar na mortalidade, em razão da demanda da população por leitos hospitalares, especialmente para indivíduos mais gravemente afetados e necessitados de cuidados intensivos. Assim, a sincronização da alta da doença na capital e em municípios do interior é um dos fatores a agravar e contribuir para o colapso do sistema de saúde. A expansão e a disseminação da COVID-19 no Piauí, confirmadas pelas curvas de frequência de hospitalizações, apresentaram variações temporais semelhantes às de outros estados do país, observando-se deslocamento da doença da capital para cidades menores e do interior. Ao longo do período de estudo, até a semana epidemiológica 53, as internações hospitalares foram maiores na capital; posteriormente, observou-se uma sincronização das curvas de tendência das hospitalizações por COVID-19, entre os locais de atendimento.
Em geral, a transmissão comunitária da COVID-19, iniciada nas capitais, dissemina-se para municípios menores em razão das dinâmicas de mobilidade humana; entretanto, os casos mais graves retornam à capital em busca de atendimento mais especializado.5 No Piauí, objeto deste estudo, os casos de coronavírus espalharam-se da capital para o interior, porém o fluxo de atendimento fluiu do interior para a capital, com a maioria das hospitalizações tendo ocorrido em Teresina. A média de hospitalização por COVID-19 nas capitais brasileiras é de 54%.3 Consideradas as regiões brasileiras, estas apresentam as seguintes porcentagens de hospitalizados pela doença em suas capitais: Centro-Oeste, 71%; Nordeste, 70%; Norte, 61%; Sudeste, 50%; e Sul, 32%.3 A centralização da assistência à saúde no Piauí é superior à da maioria das regiões brasileiras e uma das maiores do país.
Destacável também é o aumento no número de leitos clínicos e de UTI, ao longo de todo o período analisado e em todas as regionais de atenção à COVID-19 no Piauí. Apesar do aumento na capacidade de atendimento hospitalar, a letalidade manteve-se alta, revelando que o maior número de equipamentos, por si só, não foi suficiente para reduzir o elevado número de óbitos.
Os resultados deste estudo fornecem evidências dos altos níveis de letalidade hospitalar encontrados no interior do estado do Piauí, especialmente nos indivíduos submetidos a ventilação mecânica invasiva. Espera-se que tais evidências contribuam para a implementação de estratégias voltadas à diminuição dos óbitos hospitalares por COVID-19 e por outros agravos, como a alocação de recursos de forma regionalizada e equânime, respeitando os territórios de saúde e permitindo o fortalecimento de toda a rede de atenção à saúde.21 No Brasil, regiões de saúde com escassez de recursos de alta densidade tecnológica apresentaram as maiores médias na mortalidade.22
A análise das internações hospitalares no Piauí permitiu a descrição do perfil das internações por COVID-19 no estado e possibilitou a identificação de alta letalidade entre indivíduos atendidos no interior do estado, principalmente quando submetidos a ventilação mecânica invasiva. Esta avaliação aponta para as fragilidades da organização do sistema de saúde no estado, sobretudo dos serviços mais especializados, e fornece subsídios para reavaliação das estratégias de enfrentamento da pandemia e potenciais emergências de saúde pública.