Contribuições do estudo
Principais resultados
A taxa de detecção da hanseníase apresentou tendência crescente no período de 2006 a 2016 em Ribeirão Preto, SP, sendo a região do município identificada como de maior ocorrência da doença e caracterizada como local de grande desigualdade social.
Introdução
De acordo com dados da Organização Mundial da Saúde (OMS), foram detectados 202.185 casos novos de hanseníase no mundo, em 2019, e destes, cerca de 80% foram reportados na Índia, Brasil e Indonésia.1 No mesmo período, o Brasil registrou 27.863 casos novos, colocando-se como o segundo país que mais registrou a doença no mundo.1
Apesar dos elevados níveis de endemicidade da hanseníase no país, houve melhorias significativas no controle da doença nas últimas décadas, especialmente a partir do ano 2000, com a instituição das políticas internacionais de eliminação da doença, o que ocasionou redução na taxa de detecção de casos novos, de 26,2 por 100 mil habitantes em 2001, para 11,2 casos por 100 mil hab. em 2019.2,3
Embora tenha havido redução na ocorrência da doença em âmbito nacional, destaca-se que sua distribuição é heterogênea no Brasil, observando-se diferenças entre macrorregiões, estados e municípios.4 Em 2019, os maiores coeficientes de detecção da hanseníase foram verificados nas regiões Centro-Oeste (51,8 por 100 mil hab.), Norte (38,8 por 100 mil hab.) e Nordeste (26,6 por 100 mil hab.), enquanto as menores taxas foram referidas pelas regiões Sudeste (5,6 por 100 mil hab.) e Sul (3,8 por 100 mil hab.) do país.2
Apesar de apresentarem as menores taxas de detecções, os dados das regiões Sul e Sudeste devem ser interpretados com cautela, haja vista a baixa detecção de casos não significar uma evidência de baixa transmissão.5 Estudos conduzidos em municípios com baixa ou média endemicidade da hanseníase descreveram aumento substancial nas taxas de detecção após ações intensas de vigilância e busca ativa de casos, revelando que locais de baixa endemicidade podem ser focos de ‘endemia oculta’ e de transmissão ativa do Mycobacterium leprae.6,7
Em países endêmicos, investigações focadas em unidades menores, como municípios, podem fornecer uma representação mais realista da situação da hanseníase, refletindo a distribuição da doença com melhor precisão.8 Outro aspecto relevante é o de que a maioria das investigações científicas sobre hanseníase são realizadas em regiões de alta endemicidade da doença, de forma que as regiões com menores taxas de detecção, cuja endemia se encontra estável ou em queda, são pouco estudadas. Áreas com baixas taxas de detecção precisam ser investigadas, com a mesma atenção das áreas hiperendêmicas, pois podem se tornar espaços negligenciados que contribuem para manutenção da cadeia de transmissão.9
Frente a essas lacunas de conhecimento, o objetivo deste estudo foi analisar a distribuição espacial e temporal da hanseníase em um cenário de baixa endemicidade no estado de São Paulo, Brasil.
Métodos
Estudo ecológico, considerando os casos novos de hanseníase notificados no Sistema de Informação de Agravos de Notificação (Sinan) em Ribeirão Preto, SP, no período de 2006 a 2016, utilizando-se os 988 setores censitários urbanos do município como unidade de análise ecológica.10
O município paulista conta uma população de 604.682 habitantes11 e sua rede de saúde, dividida em cinco Distritos de Saúde (DS) - Central, Leste, Norte, Oeste e Sul -, conta com 49 estabelecimentos de Atenção Primária à Saúde (APS), dos quais cinco constituem unidades básicas distritais de saúde (UBDS), 18 unidades da Estratégia Saúde da Família (ESF) e 26 unidades básicas de saúde (UBS).12 A Figura 1 apresenta o cenário do estudo.
Em 2016, Ribeirão Preto apresentou uma prevalência da hanseníase de 0,8 caso por 10 mil hab. e taxa de detecção de casos novos de 7,7 por 100 mil hab.13 De acordo com parâmetros estabelecidos pelo Ministério da Saúde para a detecção de casos novos, o município apresenta baixa endemicidade, considerando os valores de prevalência e média de força de morbidade.14
Os dados do estudo, obtidos na base do Sinan, incluíram informações clínicas e sociodemográficas dos casos notificados, como classificação operacional (paucibacilar; multibacilar), grau de incapacidade física (GIF) no diagnóstico (GIF 0; GIF 1; GIF 2), data de notificação do caso, data de nascimento, sexo (masculino; feminino), escolaridade (sem escolaridade; ensino fundamental; ensino médio; ensino superior) e endereço de residência. Em relação aos GIFs, sua classificação varia de acordo com o comprometimento neural do indivíduo acometido: GIF 0 corresponde aos casos sem qualquer tipo de incapacidade funcional; GIF 1, àqueles com perda da sensibilidade protetora; e GIF 2, aos indivíduos que, além da perda da sensibilidade, apresentam complicações que incluem úlceras tróficas, garras, reabsorções ósseas em mãos e/ou pés e lesões oculares diversas.15
O acesso ao banco de dados do Sinan foi obtido na Divisão de Vigilância Epidemiológica da Secretaria Municipal de Saúde de Ribeirão Preto.
Realizou-se uma análise descritiva das variáveis clínicas e sociodemográficas dos casos de hanseníase utilizando-se o software RStudio em sua versão 3.5.2.
Para a análise temporal, foi construída a série temporal de acordo com o mês de notificação. As taxas de detecção foram calculadas considerando-se, como numerador, o total de casos de hanseníase notificados no mês, e como denominador, a população do município de acordo com o Censo Demográfico de 2010 e as populações estimadas para cada ano intercensitário (entre os períodos de 2006 a 2009 e de 2011 a 2016), com fator de multiplicação por 100 mil hab.16
Em seguida, a série temporal das taxas de detecção foi decomposta adotando-se o método de decomposição de séries temporais denominado originalmente Seasonal Decomposition of Time Series by LOESS (STL).17 Assumindo-se uma forma de decomposição aditiva, a taxa de detecção de hanseníase no mês t (Yt) é escrita pela seguinte fórmula:
onde: St é o componente sazonal; Tt é o componente de tendência; e Rt é o componente residual ou ruído.
A tendência se refere à direção na qual a série temporal se desenvolve, segundo determinado intervalo de tempo, e pode seguir um padrão de crescimento, decrescimento ou estacionariedade. A sazonalidade é definida conforme padrões idênticos a que uma série temporal pode obedecer e que se repetem regularmente, em períodos fixos de tempo. O “ruído” representa as flutuações observadas durante o período da série, geralmente irregulares e aleatórios, perceptíveis apenas quando são removidos os demais componentes da série temporal.18
Dos componentes da série temporal, optou-se por selecionar apenas a tendência, com o objetivo de caracterizar o comportamento da taxa de detecção de hanseníase ao longo do tempo. Após a decomposição da série temporal, calculou-se a variação percentual média mensal [average monthly percentage change (AMPC)],19 enquanto medida-resumo do componente de tendência ao longo do tempo, onde n era o número total de meses de estudo, assim formalizada:
Para as análises temporais e a construção do gráfico de distribuição da série temporal e da tendência da taxa de detecção, utilizou-se o software Rstudio em sua versão 3.5.2.
Na análise espacial, inicialmente, os casos de hanseníase foram georreferenciados a partir das informações de latitude e longitude de seus endereços residenciais. O Google Earth® foi aplicado para identificar a latitude e a longitude, e o software ArcGIS® 10.8, para o georreferenciamento, com a construção de um arquivo no formato shapefile contemplando as localizações de cada caso. Nesta etapa, foram excluídos os casos sem informações sobre endereço ou com endereço incompleto (logradouro ou número indisponíveis), os de residentes na zona rural e/ou de pessoas notificadas em Ribeirão Preto, mas que não residiam no município.
Após georreferenciamento dos casos, computou-se a quantidade de casos por unidade de análise, possibilitando-se o cálculo da taxa de detecção de hanseníase por setor censitário, mediante o posicionamento do número de casos por setor censitário no numerador e a população de cada setor censitário no denominador da razão, com fator de multiplicação por 100 mil hab.
A análise de agregação espacial da hanseníase foi realizada utilizando-se a técnica de Getis-Ord Gi*, considerando-se as taxas de detecção. Essa técnica indica associação espacial local, tomando-se os valores para cada setor censitário do município a partir de uma matriz de vizinhança.20 O Getis-Ord Gi* é dado pela seguinte fórmula:
onde: Gi* é a estatística de autocorrelação espacial de um evento i sobre n eventos (número total de componentes); xj caracteriza a magnitude da variável x nos eventos j sobre todo n; e w é o peso espacial entre os componentes i e j. A inferência sobre a significância de Gi* baseia-se em uma distribuição padronizada:
onde:
A interpretação dessa estatística é realizada com base no sinal de Z (z-score) e valores do nível de significância (α). Um valor positivo de Z com evidência estatística indica um agrupamento espacial de maior ocorrência do evento (hot spot), enquanto um valor negativo e com evidência estatística de Z indica um agrupamento de menor ocorrência do evento (cold spot). Foram adotados níveis de confiança de 90%, 95% e 99%. Optou-se por verificar a associação espacial da hanseníase em quatro períodos de tempo (2006 a 2009, 2010 a 2013, 2014 a 2016 e o período total do estudo, de 2006 a 2016), com o intuito de verificar a distribuição dos hot spots e cold spots ao longo do tempo. Para a análise de agregação espacial e elaboração dos mapas, utilizou-se o software ArcGIS® 10.8
O estudo foi submetido ao Comitê de Ética em Pesquisa da Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (EERP/USP) e aprovado sob Certificado de Apresentação para Apreciação Ética (CAAE) nº 44637215.0.0000.5393, emitido em 23 de março de 2018.
Resultados
Foram notificados 890 casos de hanseníase no período de 2006 a 2016, com predomínio de casos multibacilares (732; 82,2%) e presença de GIF 1 no momento do diagnóstico (347; 39,0%). Houve maior frequência de casos no grupo etário de 30 a 59 anos (494; 55,5%), seguido de 60 anos ou mais (234; 26,3%), no sexo masculino (542; 60,9%) e nível de escolaridade fundamental (476; 53,5%). A Tabela 1 apresenta a estatística descritiva dos casos.
Variáveis | n (890) | % |
---|---|---|
Classificação operacional | ||
Paucibacilar | 158 | 17,8 |
Multibacilar | 732 | 82,2 |
Grau de incapacidade física (GIF) no diagnóstico | ||
Grau 0 | 287 | 32,2 |
Grau 1 | 347 | 39,0 |
Grau 2 | 146 | 16,4 |
Não preenchida | 110 | 12,4 |
Idade (anos) | ||
<15 | 40 | 4,5 |
15-29 | 122 | 13,7 |
30-59 | 494 | 55,5 |
≥60 | 234 | 26,3 |
Sexo | ||
Masculino | 542 | 60,9 |
Feminino | 348 | 39,1 |
Escolaridade | ||
Sem escolaridade | 36 | 4,0 |
Ensino fundamental | 476 | 53,5 |
Ensino médio | 108 | 12,1 |
Ensino superior | 78 | 8,8 |
Não preenchida | 192 | 21,6 |
A Figura 2 mostra a série temporal e a tendência das taxas de detecção de hanseníase. De 2006 a 2010, a tendência apresentou um comportamento estacionário, seguido por comportamento crescente a partir de 2011, o qual perdurou até 2015, ano em que passou a apresentar uma ligeira tendência de decréscimo até o final do período estudado. Apesar do comportamento decrescente após 2015, a série temporal finalizou com valores mais elevados da taxa de detecção quando comparados ao seu início. O valor do AMPC indicou um crescimento médio de 1,0% ao mês para a série.
Do total de casos notificados, 206 (23,1%) foram excluídos por possuírem endereço de residência fora de Ribeirão Preto (foram notificados em Ribeirão Preto, mas não residiam na cidade) e 29 (3,3%) por residirem na zona rural da cidade, obtendo-se um total de 655 casos (73,6%) a serem padronizados para o georreferenciamento. Deste total, 47 (7,2%) apresentaram endereço em branco e/ou incompleto, totalizando 608 casos (92,8%) georreferenciados (Figura 3).
A) Distribuição espacial dos casos de hanseníase de acordo com setores censitários; B) Taxas de detecção de casos de hanseníase por100 mil habitantes, distribuídos de acordo com os setores censitários.
A Figura 4 apresenta os resultados da análise da associação espacial local das taxas de detecção de hanseníase por meio da técnica Getis-Ord Gi*, que permitiu a identificação de áreas de alta ocorrência (hot spots) e baixa ocorrência (cold spots) de casos e sua distribuição ao longo do tempo.
No período de 2006 a 2016 (Figura 4A), os agrupamentos de maior ocorrência da hanseníase foram localizados ao norte de Ribeirão Preto, incluindo-se setores censitários pertencentes aos DS Norte, Central e uma pequena região do DS Leste. Já os agrupamentos de menor ocorrência foram identificados nos setores censitários ao sul do município, localizados em parte da área dos DS Central, Sul e Leste. Apesar de alguns hot spots e cold spots contemplarem os mesmos DS, as áreas de maior e menor ocorrência estão bem delimitadas e geograficamente opostas.
Na análise da distribuição espaço-temporal da hanseníase, os períodos de 2006 a 2009 (Figura 4B) e 2010 a 2013 (Figura 4C) apresentaram distribuição semelhante, com agrupamentos de maior ocorrência da hanseníase ao norte da cidade; DS Norte, DS Central e pequena região no DS Leste.
No período de 2014 a 2016 (Figura 4D), semelhantemente aos demais períodos, foram verificados aglomerados de alta ocorrência nos setores censitários pertencentes aos DS Central e Norte. Contudo, diferentemente dos outros anos, foram identificados hot spots nos setores censitários do DS Oeste.
Discussão
Do total de casos de hanseníase notificados em Ribeirão Preto, SP, os maiores percentuais corresponderam a casos multibacilares, com maior proporção de GIF 1 no diagnóstico. Apesar do predomínio do GIF 1, destaca-se que 16,4% do total de casos possuía GIF 2, e juntos, GIF 1 e GIF 2, representaram cerca de 50% dos casos notificados. O predomínio de casos multibacilares, juntamente com GIF, sugere a ocorrência de transmissão ativa da doença, além de que a alta proporção de GIF 2 entre os casos novos pode ser um indicativo de falhas no acesso ao diagnóstico e acompanhamento dos casos em Ribeirão Preto.21
A faixa etária mais afetada pela hanseníase foi a de 30 a 59 anos, intervalo que inclui grande parcela da população economicamente ativa, para a qual a doença pode afetar o desempenho nas atividades laborais, implicar limitações e interrupções no trabalho decorrentes das incapacidades provocadas pela hanseníase, e, como consequências, ocasionar afastamentos, aposentadorias precoces e diminuição da qualidade de vida dos trabalhadores.22
Além da idade de 30 a 59 anos, foram encontradas altas proporções de casos na população com 60 anos ou mais, a segunda faixa etária mais acometida. Os idosos constituem um grupo importante para o controle da hanseníase. uma vez que as deficiências e incapacidades decorrentes da doença são mais frequentes nessa faixa etaria, que juntamente com o processo de envelhecimento e outras comorbidades, contribuem para maior vulnerabilidade e perda de autonomia nesse grupo etário.23
As ações de vigilância visando ao diagnóstico precoce e prevenção das incapacidades devem se dirigir a todas as idades e reforçadas nos grupos mais afetados, para se reduzir a transmissão da doença e prevenir as incapacidades em toda a população.
Em Ribeirão Preto, a maioria dos casos notificados foi do sexo masculino, resultado que corrobora a literatura.24 A ocorrência da hanseníase é mais frequente no sexo masculino, que também apresenta maior vulnerabilidade de acometimento quando comparado ao feminino.25 A maior ocorrência da doença em homens pode estar relacionada a uma maior exposição ao M. leprae devido às vulnerabilidades individuais, como baixa procura e/ou procura tardia por serviços de saúde, quando comparada às mulheres, decorrentes de dificuldades de acesso aos serviços de saúde, que aumentam o risco de desenvolvimento de incapacidades físicas.26 A constatação de que indivíduos do sexo masculino foram mais afetados pela hanseníase em Ribeirão Preto contribui para o planejamento de práticas de saúde que minimizem o risco de transmissão da infeção nessa população, a exemplo da elaboração de campanhas públicas.
Em relação à escolaridade, a maioria dos casos notificados possuía apenas o ensino fundamental, com uma média inferior a dez anos de estudo. A associação entre educação e hanseníase tem sido estudada e tem revelado evidências da seguinte associação: baixos níveis ou ausência de escolaridade estão relacionados ao aumento da transmissão da doença, podendo contribuir para o aumento, em até duas vezes, de sua incidência e, consequentemente, para o aumento de incapacidades físicas.25,27 Populações com pouca ou nenhuma escolaridade apresentam, igualmente, maior dificuldade de acesso aos serviços de saúde e menor compreensão do sentido das ações sanitárias.28
A análise de série temporal da hanseníase identificou tendência crescente na taxa de detecção, no período de 2006 a 2016. Apesar de ter-se observado comportamento ligeiramente decrescente no final do período de estudo, destaca-se que as taxas de detecção finalizaram a série com valores superiores aos de seu início. No período de estudo, as ações de diagnóstico e tratamento da hanseníase eram principalmente realizadas em centros de referência municipais de atendimento à doença, de forma que não eram totalmente descentralizadas para a APS. Apesar desta característica, ações de capacitação profissional e busca ativa de casos são regularmente realizadas no município, sobretudo a partir dos anos de 2011 e 2012, coincidentes com o aumento acentuado da curva da tendência da taxa de detecção.29
Apesar do presente estudo não avaliar diretamente o impacto da descentralização do atendimento e das ações de busca ativa de casos, estudos realizados em cenários de baixa endemicidade da hanseníase identificaram que, após medidas de capacitação profissional e busca ativa entre a comunidade, houve um aumento significativo na quantidade de casos notificados, com impacto evidente no aumento das taxas de detecção, evidenciando que tais cenários de baixa endemicidade podem abrigar uma “endemia oculta da hanseníase”.6,7
A análise da série temporal indicou que a taxa de detecção de hanseníase apresentou comportamento crescente no período de estudo, fornecendo evidências de que, mesmo em um cenário de baixa endemicidade, cuja ocorrência da doença apresenta estabilidade, pode existir transmissão ativa do M. leprae. Este achado reforça a importância da necessidade de constantes ações de busca ativa e detecção de novos casos.
Por meio da técnica de Getis-Ord Gi* foi possível identificar áreas de alta e baixa ocorrência da hanseníase em Ribeirão Preto, ao longo do tempo observado, evidenciando-se que a doença é distribuída de forma heterogênea no município. Em todos os períodos analisados, as áreas de maior ocorrência estavam localizadas na região norte de Ribeirão Preto, ao passo que as áreas de baixo risco se situavam na região sul do município (aqui identificadas apenas no mapa do período completo, de 2006 a 2016). Uma exceção coube ao período final de investigação, de 2014 a 2016, quando se apresentaram hot spots no DS Oeste. Alguns DS compartilharam tanto hot spots quanto cold spots (Central e Leste), contudo encontram-se em áreas opostas da região identificada.
O DS Norte, que apresentou aglomerados de maior ocorrência entre casos, em todos os períodos, é composto pelos bairros com os menores indicadores sociais entre os cinco DS, com o maior percentual de pessoas sem renda ou rendimento inferior a 1 salário mínimo, menor índice de desenvolvimento humano municipal (IDH-M), menores taxas de frequência escolar e maior número de aglomerados subnormais (comunidades/favelas) do município.30
O DS Central de Saúde, composto tanto por aglomerados de alto (ao norte) quanto de baixo risco (ao sul), é formado pelos bairros mais antigos da cidade, com um alto percentual de residentes de mais de 60 anos de idade.30 O DS Central possui o principal centro de referência para casos de hanseníase, embora conte com baixa cobertura da ESF.30 Apesar de o DS Central contemplar áreas quentes e frias, estas se situam em oposição, geograficamente, de modo que os hot spots têm características semelhantes às do DS Norte, enquanto os cold spots são semelhantes quanto às características dos DS Leste e Sul.
O DS Oeste, que apresentou hot spots no período de 2014 a 2016, caracteriza-se por possuir uma rede de saúde complexa, com maior número de unidades de saúde de APS. Em relação aos indicadores sociais, nesse distrito predominam domicílios com famílias cuja renda se encontra entre 1 e 5 salários mínimos e aglomerados subnormais.30 Os hot spots do DS Oeste, nos anos finais do estudo, podem refletir o aumento da detecção de casos nessa região, influenciando a distribuição espacial da doença.
Os aglomerados de alto risco no DS Leste contemplam poucos setores censitários e fazem limite com os setores do DS Central, de modo que podem compartilhar características semelhantes com esta região.
Na região sul do município, além do DS Central, os cold spots são compostos por uma pequena quantidade de setores censitários nos DS Leste e Sul; este último não apresentou hot spots, sendo, portanto, a região de menor ocorrência da hanseníase. Os DS Leste e Sul se caracterizam por melhores indicadores socioeconômicos, melhor IDH-M, população com maiores níveis de escolaridade e baixa proporção de pessoas sem renda. Outra característica desses DS é dispor da maior concentração de bairros cuja especulação imobiliária é mais ativa.30
Em Ribeirão Preto, a análise de associação espacial da ocorrência de casos e sua distribuição ao longo do tempo reforça o fato de a hanseníase ser uma doença social: as áreas com maior concentração situam-se, predominantemente, na região Norte do município de Ribeirão Preto, historicamente caracterizada por uma grande desigualdade social. Esses resultados podem subsidiar a formulação de estratégias de intervenção nesses territórios, especialmente ações de busca ativa de casos, o que deverá impactar os indicadores e contribuir para a diminuição da transmissão da doença.
A principal limitação deste estudo se refere a seu delineamento ecológico, que não permite a generalização de seus resultados para o nível individual. Outra limitação do trabalho refere-se ao uso de dados de base secundária, por vezes indisponíveis ou incompletos. Por fim, as taxas das séries temporais foram calculadas sobre estimativas populacionais, que podem não refletir inteiramente o quantitativo da população no período.
Em conclusão, a análise de séries temporais em Ribeirão Preto identificou, no período de estudo, uma tendência de crescimento na taxa de detecção da doença, levantando-se a hipótese de que, mesmo em um cenário de baixa endemicidade, permanece a existência de alta transmissão da doença. Já a análise espaço-temporal permitiu visualizar que a doença é heterogênea em Ribeirão Preto, de comportamento bem delimitado ao longo do tempo, e o norte do município, sua região com maiores desigualdades sociais e áreas de maiores índices da doença.
Os resultados da presente investigação poderão subsidiar ações de vigilância em saúde visando controlar a hanseníase. A compreensão dos aspectos relacionados ao perfil, tendência temporal e distribuição espacial dos casos no município de Ribeirão Preto pode servir como um guia de orientação para focalização das principais ações de controle da hanseníase.