Contribuições do estudo
Principais resultados
A prevalência de polifarmácia entre adultos residentes em Manaus foi de 2,8% em 2019, maior em idosos e naqueles com problemas de saúde. Das pessoas em polifarmácia, 74,0% apresentaram interações medicamentosas potenciais, na maioria graves.
Introdução
O uso simultâneo de múltiplos medicamentos tem crescido no mundo, principalmente entre os idosos, possivelmente devido ao aumento da expectativa de vida e da frequência de multimorbidade na população.1 A maior disponibilidade de opções terapêuticas e as recomendações do uso de mais de um medicamento, por diretrizes de prática clínica, para a prevenção e tratamento de doenças, também podem contribuir para esse fenômeno.1
A polifarmácia é comumente definida como o uso concomitante de cinco ou mais medicamentos.2 Embora a prescrição da combinação de medicamentos para pessoas com múltiplos problemas de saúde objetive a melhora de sua saúde, a polifarmácia pode ocasionar interações medicamentosas e reações adversas, e afetá-la gravemente.3 A estimativa de prevalência global de reações adversas a medicamentos na Atenção Primária à Saúde (APS) é de 8%, e está associada à maior quantidade de medicamentos utilizados simultaneamente.4 O agravamento do quadro clínico decorrente da polifarmácia raramente é atribuído à terapia em si, e sim às condições clínicas do indivíduo sob tratamento, dificultando a identificação dos problemas e suas causas e, consequentemente, a recuperação da saúde.3
A polifarmácia está associada a maiores riscos de quedas, fragilidade, hospitalização e mortes, contribuindo para a expansão dos gastos em saúde.1,5 O uso concomitante de múltiplos medicamentos aumenta a complexidade das terapias, dificultando o gerenciamento dos medicamentos pela pessoa em tratamento e sua adesão.5 O uso de substâncias como álcool e tabaco, associados à polifarmácia, eleva o risco de interações medicamentosas, causando danos à saúde.6
Os estudos sobre polifarmácia concentram-se principalmente em populações específicas, como idosos e usuários de serviços de saúde.7 Evidências sobre a prevalência de polifarmácia na população adulta geral ainda são escassas, particularmente em contextos de maior vulnerabilidade social, como a Amazônia brasileira. A avaliação de potenciais interações medicamentosas em indivíduos em polifarmácia pode contribuir para identificar riscos associados à combinação de terapias em nível populacional.8
Este estudo teve como objetivo analisar a prevalência e os fatores associados à polifarmácia em adultos residentes em Manaus, Amazonas, no ano de 2019, e avaliar a frequência de potenciais interações medicamentosas entre pessoas em polifarmácia.
Métodos
Trata-se de um estudo transversal de base populacional, realizado com adultos (≥ 18 anos) residentes em Manaus, no período de abril a junho de 2019. Este estudo é parte de um inquérito maior, com objetivo de investigar o uso de serviços e insumos de saúde na região.9
Manaus, capital do estado do Amazonas, está localizada na região Norte do Brasil e tinha 2.106.322 habitantes em 2018, o que representava mais da metade da população do estado.10
Os participantes do estudo foram selecionados por amostragem probabilística, realizada em três estágios: censitário (aleatório), domiciliar (sistemático) e individual (aleatório), estratificados por sexo e idade.9 O tamanho da amostra foi calculado em 2.300 pessoas, com base na prevalência de procura por serviços de saúde na região (desfecho primário do inquérito principal) de 20%,11 nível de confiança de 95%, precisão absoluta de 2% e estimativa populacional de 2.106.322 habitantes.10
Entrevistadores foram treinados para coletar dados por meio de entrevistas presenciais, realizadas nas residências dos participantes. Questionários estruturados foram pré-configurados no software SurveyToGo (Dooblo Ltd, Israel) e registrados em dispositivos eletrônicos (Intel TabPhone 710 Pro). As respostas foram transferidas automaticamente, para o banco de dados do estudo, via internet, e armazenadas em nuvem.
O desfecho primário foi a prevalência de polifarmácia, definida como o uso concomitante de cinco ou mais medicamentos.
A informação sobre uso de medicamentos foi obtida com a proposição da seguinte pergunta: Nos últimos 15 dias (ou duas semanas), você tomou algum medicamento? Caso a resposta fosse ‘sim’, os nomes dos medicamentos eram registrados conforme informado pelo entrevistado. Após a coleta de dados, utilizou-se o sistema de classificação Anatomical Therapeutic Chemical (ATC), da Organização Mundial da Saúde (OMS),12 para classificar cada medicamento por seu código ATC completo (todos os níveis). Medicamentos cujos nomes não estivessem disponíveis ou estivessem indecifráveis foram categorizados como ‘não codificado’.
Os desfechos secundários incluíram a frequência de potenciais interações medicamentosas e interações medicamento-álcool e medicamento-tabaco, entre aqueles que relataram polifarmácia. A presença de potenciais interações medicamentosas foi investigada pela pesquisa na base de dados Micromedex, que apresenta informações sobre medicamentos, incluindo interações medicamentosas baseadas em evidências científicas.13 Os medicamentos relatados por cada participante foram inseridos nessa base e, se positivos para interações medicamentosas, estas foram compiladas de acordo com a classificação da base para o nível de gravidade: contraindicada (o uso concomitante dos medicamentos é contraindicado); gravidade alta (potencialmente fatal ou requer intervenção médica); gravidade moderada (pode resultar no agravamento do caso ou requer uma mudança na farmacoterapia); ou gravidade baixa (efeitos clínicos limitados). A qualidade da informação foi categorizada da seguinte forma: excelente (com base em estudos controlados); boa (há uma falta de estudos bem controlados); ou regular (considerações farmacológicas levam à suspeita de interação).13
Em caso de resposta positiva para dependência de álcool ou tabaco entre indivíduos em polifarmácia, potenciais interações entre medicamentos-álcool e medicamentos-tabaco foram pesquisadas na base de dados do Micromedex, sendo classificadas de acordo com seu nível de gravidade (contraindicada; alta; moderada; baixa) e qualidade da informação disponível (excelente; boa; regular).13
As variáveis independentes incluíram:
sexo (masculino; feminino);
faixa etária (em anos: 18 a 24; 25 a 34; 35 a 44; 45 a 59; ≥ 60);
classificação econômica, baseada na escolaridade do chefe da família, disponibilidade de itens de conforto e urbanização do entorno do domicílio14 (A/B, C ou D/E, em que A se refere aos mais ricos e E aos mais pobres);
escolaridade (ensino superior completo ou mais; ensino médio completo; ensino fundamental completo; menor que o ensino fundamental);
estado conjugal (sem companheiro; com companheiro);
plano de saúde (não; sim);
percepção do estado de saúde (boa; regular; ruim);
consulta médica nos últimos 12 meses (não; sim);
internação hospitalar nos últimos 12 meses (não; sim);
número de doenças crônicas (0; 1; ≥ 2);
dependência de tabaco, a partir da versão brasileira validada do Heaviness of Smoking Index, adotando-se o ponto de corte ≥ 215 (não; sim); e
consumo perigoso de álcool, medido pela versão brasileira validada do Fast Alcohol Screening Test, com ponto de corte ≥ 3 (não; sim).16
Opcionalmente, os medicamentos informados foram confirmados por meio do registro fotográfico da prescrição médica ou embalagem dos medicamentos, se disponíveis no domicílio. Um estudo piloto foi realizado com 150 participantes, para avaliar sua compreensão do questionário; eles foram incluídos na amostra do estudo final, não tendo sido detectadas necessidades de correção. Vinte por cento das entrevistas foram auditadas por telefone, para conformação da validade dos dados. As entrevistas foram gravadas em áudio e georreferenciadas pelo dispositivo eletrônico utilizado para a coleta de dados.
Estatística descritiva foi utilizada para calcular as frequências absolutas e relativas de polifarmácia na população adulta e idosa, com intervalos de confiança de 95% (IC95%), e caracterizar potenciais interações medicamentosas nos participantes em polifarmácia. As diferenças entre as categorias das variáveis foram analisadas pelo teste qui-quadrado de Pearson. Os medicamentos mais consumidos entre os participantes em polifarmácia foram descritos de acordo com sua classificação ATC.
As razões de prevalências (RP) e IC95% de polifarmácia pelas variáveis independentes foram estimadas por regressão de Poisson com variância robusta. Construiu-se um modelo hierárquico da polifarmácia, em que as variáveis independentes foram organizadas em níveis proximais e distais, para evitar a subestimação dos efeitos das variáveis distais.17 O primeiro nível (variáveis demográficas) incluiu as variáveis ‘sexo’ e ‘faixa etária’; o segundo (variáveis socioeconômicas) incluiu as variáveis ‘classificação econômica’, ‘escolaridade’, ‘estado civil’ e ‘plano de saúde’; e o terceiro nível (variáveis clínicas), ‘estado de saúde’, ‘consulta médica’, ‘internação hospitalar’, ‘número de doenças crônicas’, ‘dependência de tabaco’ e ‘consumo perigoso de álcool’.
As variáveis associadas à polifarmácia, com nível de significância de p-valor < 0,20 em seu nível hierárquico, foram incluídas nos níveis hierárquicos seguintes. Assim, as variáveis foram ajustadas pelas covariáveis pertencentes ao mesmo nível original e pelas variáveis significativas de níveis anteriores. Associações com p-valor < 0,05 na análise ajustada foram consideradas estatisticamente significativas. O teste de Wald foi utilizado para avaliar a significância de variáveis com múltiplas categorias. Para as análises, utilizou-se o software Stata 14.2, considerando-se o desenho amostral complexo (comando svy).
O projeto do estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade do Amazonas, mediante o Parecer nº 3.102.942, emitido em 28 de dezembro de 2018 (Certificado de Apreciação Ética nº 04728918.0.0000.5020). Todos os participantes assinaram um termo de consentimento livre e esclarecido antes da realização das entrevistas.
Resultados
Dos 3.246 domicílios com adultos selecionados e convidados a participar da pesquisa, 80 não possuíam indivíduos elegíveis e 845 recusaram participação. Ao todo, foram incluídos no estudo 2.321 indivíduos (Figura 1), dos quais 251 (6,7%) tinham idade ≥60 anos. A maioria dos participantes não tinha companheiro (62,9%), não possuía plano de saúde (85,5%), relatou bom estado de saúde (67,2%), consultou médico no último ano (73,9%), não havia sido hospitalizada nos últimos 12 meses (89,1%) e possuía doenças crônicas (57,1%) (Tabela 1).
A prevalência de polifarmácia na população estudada foi de 2,8% (IC95% 2,1;3,6), mais elevada no sexo feminino (3,6%) do que no masculino (2,1%; p-valor = 0,010), nos idosos (9,0%) em relação aos mais jovens (2,7%; p-valor < 0,001), e naqueles com menor escolaridade (4,6%) em comparação aos com ensino superior completo ou mais (3,5%; p-valor = 0,003). A prevalência de polifarmácia foi maior entre as pessoas que relataram estado de saúde ruim (8,7%) em relação àquelas com estado de saúde bom (1,5%; p-valor < 0,001), indivíduos que consultaram o médico nos últimos 12 meses (3,6%) comparados aos que não se consultaram (0,6%; p-valor < 0,001), que estiveram hospitalizados anteriormente (6,0%) em relação aos que não estiveram (2,5%; p-valor < 0,001), e pessoas com multimorbidade (7,3%) comparadas àquelas que reportaram não apresentar doenças crônicas (1,1%; p-valor < 0,001) (Tabela 1).
Variáveis | Adultos (n = 2.321) | Idosos (n = 251) | ||||||||
---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|
Total | Polifarmácia | p-valora | Total | Polifarmácia | p-valora | |||||
n | % | n | % | n | % | n | % | |||
Sexo | 0,010 | 0,110 | ||||||||
Masculino | 1.088 | 51,0 | 25 | 2,1 | 111 | 49,0 | 4 | 9,1 | ||
Feminino | 1.233 | 49,0 | 52 | 3,6 | 140 | 51,0 | 12 | 8,8 | ||
Faixa etária (em anos) | < 0,001 | - | ||||||||
18-24 | 405 | 20,3 | 12 | 2,7 | - | - | - | - | ||
25-34 | 586 | 31,9 | 10 | 1,4 | - | - | - | - | ||
35-44 | 553 | 22,2 | 11 | 1,6 | - | - | - | - | ||
45-59 | 526 | 18,9 | 28 | 4,8 | - | - | - | - | ||
≥ 60 | 251 | 6,7 | 16 | 9,0 | 251 | 100,0 | 16 | 8,9 | ||
Classificação econômica | 0,256 | 0,900 | ||||||||
A/B | 282 | 13,4 | 13 | 4,6 | 21 | 7,7 | 1 | 3,6 | ||
C | 1.244 | 53,7 | 35 | 2,5 | 132 | 54,2 | 8 | 11,6 | ||
D/E | 795 | 32,9 | 29 | 2,6 | 98 | 38,1 | 7 | 6,3 | ||
Escolaridade | 0,003 | 0,425 | ||||||||
Ensino superior completo ou mais | 153 | 6,9 | 6 | 3,5 | 11 | 4,3 | 2 | 25,9 | ||
Ensino médio completo | 1.171 | 52,5 | 28 | 2,2 | 61 | 27,3 | 4 | 12,9 | ||
Ensino fundamental completo | 432 | 20,4 | 11 | 2,6 | 32 | 12,0 | 2 | 5,3 | ||
Menor que o ensino fundamental | 565 | 20,2 | 32 | 4,6 | 147 | 56,4 | 8 | 6,3 | ||
Estado conjugal | 0,445 | 0,127 | ||||||||
Sem companheiro | 1.423 | 62,9 | 44 | 2,4 | 169 | 64,3 | 8 | 3,3 | ||
Com companheiro | 898 | 37,1 | 33 | 3,6 | 82 | 35,7 | 8 | 19,1 | ||
Plano de saúde | 0,597 | 0,899 | ||||||||
Não | 1.978 | 85,5 | 64 | 2,6 | 217 | 85,7 | 14 | 6,9 | ||
Sim | 343 | 14,5 | 13 | 4,1 | 34 | 14,3 | 2 | 21,2 | ||
Estado de saúde | < 0,001 | 0,012 | ||||||||
Bom | 1.498 | 67,2 | 22 | 1,5 | 112 | 47,4 | 3 | 6,9 | ||
Regular | 671 | 26,8 | 37 | 5,0 | 111 | 41,3 | 8 | 8,5 | ||
Ruim | 152 | 6,0 | 18 | 8,7 | 28 | 11,3 | 5 | 19,3 | ||
Consulta médicab | < 0,001 | 0,148 | ||||||||
Não | 587 | 26,1 | 3 | 0,6 | 51 | 18,7 | 1 | 1,4 | ||
Sim | 1.734 | 73,9 | 74 | 3,6 | 200 | 81,3 | 15 | 10,7 | ||
Internação hospitalarb | < 0,001 | 0,393 | ||||||||
Não | 2.071 | 89,1 | 58 | 2,5 | 233 | 92,2 | 14 | 8,3 | ||
Sim | 250 | 10,9 | 19 | 6,0 | 18 | 7,8 | 2 | 16,1 | ||
Número de doenças crônicas | < 0,001 | 0,004 | ||||||||
0 | 921 | 42,9 | 9 | 1,1 | 43 | 16,8 | - | 0,0 | ||
1 | 682 | 29,9 | 11 | 1,3 | 55 | 22,6 | - | 0,0 | ||
≥ 2 | 718 | 27,2 | 57 | 7,3 | 153 | 60,6 | 16 | 14,8 | ||
Dependência de tabaco | 0,828 | 0,842 | ||||||||
Não | 2.219 | 95,5 | 74 | 2,9 | 238 | 92,8 | 15 | 9,4 | ||
Sim | 102 | 4,5 | 3 | 2,6 | 13 | 7,2 | 1 | 3,8 | ||
Consumo perigoso de álcool | 0,082 | 0,265 | ||||||||
Não | 1.871 | 79,5 | 68 | 2,9 | 234 | 92,5 | 16 | 9,7 | ||
Sim | 450 | 20,5 | 9 | 2,5 | 17 | 7,5 | - | 0,0 | ||
Total | 2.321 | 100,0 | 77 | 2,8 | 251 | 100,0 | 16 | 8,9 |
a) Teste qui-quadrado de Pearson; b) Nos 12 meses anteriores.
A prevalência de polifarmácia na população de idosos foi de 8,9% (IC95% 2,8;15,1), mais frequente em pessoas com estado de saúde ruim (19,3%) em relação àquelas com estado de saúde bom (6,9%; p-valor = 0,012), e com ≥ 2 doenças crônicas (14,8%) comparadas às que não apresentavam doenças crônicas (p-valor = 0,004). Entre os participantes que usaram pelo menos um medicamento (n = 1.276), a prevalência de polifarmácia foi de 5,3% (IC95% 3,9;6,8) entre todos os participantes adultos e de 12,2% (IC95% 4,0;20,4) entre idosos (Tabela 1).
No total, foi reportado o uso de 442 medicamentos pela população de estudo que se encontrava em polifarmácia (Tabela 2). Losartana (27/442; 6,1%), dipirona (24/442; 5,4%), ácido acetilsalicílico (20/442; 4,5%), sinvastatina (18/442; 4,1%), ibuprofeno (15/442; 3,4%) e metformina (15/442; 3,4%) foram os medicamentos mais usados.
Medicamento | Código ATCa | n | % |
---|---|---|---|
Losartana | C09CA01 | 27 | 6,1 |
Dipirona | N02BB02 | 24 | 5,4 |
Ácido acetilsalicílico | N02BA51 | 20 | 4,5 |
Sinvastatina | C10AA01 | 18 | 4,1 |
Ibuprofeno | M01AE01 | 15 | 3,4 |
Metformina | A10BA02 | 15 | 3,4 |
Hidroclorotiazida | C03AA03 | 11 | 2,5 |
Omeprazol | A02BC01 | 11 | 2,5 |
Enalapril | C09AA02 | 10 | 2,3 |
Atenolol | C07AB03 | 9 | 2,0 |
Grupo farmacológico | |||
Trato alimentar e metabolismo | A | 89 | 20,1 |
Sangue e órgãos formadores de sangue | B | 27 | 6,1 |
Sistema cardiovascular | C | 118 | 26,7 |
Sistema genitourinário e hormônios sexuais | G | 5 | 1,1 |
Preparações hormonais sistêmicas | H | 7 | 1,6 |
Anti-infecciosos para uso sistêmico | J | 17 | 3,8 |
Agentes antineoplásicos e imunomoduladores | L | 2 | 0,5 |
Sistema músculoesquelético | M | 44 | 10,0 |
Sistema nervoso | N | 67 | 15,2 |
Produtos antiparasitários, inseticidas e repelentes | P | 4 | 0,9 |
Sistema respiratório | R | 15 | 3,4 |
Órgãos sensoriais | S | 5 | 1,1 |
Fitoterápicos | - | 3 | 0,7 |
Não codificados | - | 39 | 8,8 |
a) ATC: Classificação Anatomical Therapeutic Chemical.
Potenciais interações medicamentosas foram observadas em 57 dos 77 participantes em polifarmácia (74,0%). Das 131 interações potenciais identificadas, a maioria representou quatro ou mais interações por pessoa (40,4%), de gravidade alta (59,5%) e qualidade da informação regular (51,9%). Sete potenciais interações medicamento-álcool e duas interações medicamento-tabaco foram identificadas entre os participantes em polifarmácia. Das interações medicamento-álcool, cinco foram de gravidade alta e com boa qualidade da informação, e duas de gravidade moderada e com qualidade da informação regular. As duas interações medicamento-tabaco identificadas foram de gravidade alta e qualidade da informação regular (Tabela 3).
Medicamento | n | % |
---|---|---|
Interações medicamento-medicamento | ||
Número de interações por pessoa | ||
1 | 25 | 19,1 |
2 | 20 | 15,3 |
3 | 33 | 25,2 |
≥ 4 | 53 | 40,4 |
Gravidade | ||
Alta | 78 | 59,5 |
Moderada | 50 | 38,2 |
Baixa | 1 | 0,8 |
Contraindicada | 2 | 1,5 |
Qualidade da informação | ||
Regular | 68 | 51,9 |
Boa | 38 | 29,0 |
Excelente | 25 | 19,1 |
Total | 131 | 100,0 |
Interações medicamento-álcool | ||
Número de interações por pessoa | ||
1 | 3 | - |
2 | 4 | - |
Gravidade | ||
Alta | 5 | - |
Moderada | 2 | - |
Qualidade da informação | ||
Regular | 2 | - |
Boa | 5 | - |
Total | 7 | - |
Interações medicamento-tabaco | ||
Número de interações por pessoa | ||
2 | 2 | - |
Gravidade | ||
Alta | 2 | - |
Qualidade da informação | ||
Regular | 2 | - |
Total | 2 | - |
As análises posthoc indicaram que o poder estatístico da amostra foi > 99%. Seguindo o modelo hierárquico, foram incluídas as seguintes variáveis para ajustes em seus níveis originais e nos posteriores: sexo e faixa etária (nível 1 - variáveis demográficas); classificação econômica e estado civil (nível 2 - variáveis socioeconômicas); estado de saúde, consulta médica e admissões hospitalares nos últimos 12 meses, e número de doenças crônicas (nível 3 - variáveis clínicas). A análise ajustada indicou que a polifarmácia foi maior entre idosos (RP = 3,24; IC95% 1,25;8,42), pessoas com estado de saúde ruim (RP = 2,54; IC95% 1,14;5,67), indivíduos que haviam sido hospitalizados anteriormente (RP = 1,90; IC95% 1,09;3,32) e naqueles com multimorbidade (RP = 3,20; IC95% 1,53;6,67) (Tabela 4).
Variáveis | Análise não ajustada | Análise ajustada | ||
---|---|---|---|---|
RP (IC95%) | p-valora | RP (IC95%) | p-valora | |
Nível 1 - Demográfico | ||||
Sexo | 0,070 | 0,066 | ||
Masculino | 1,00 | 1,00 | ||
Feminino | 1,74 (0,96;3,15) | 1,73 (0,96;3,10) | ||
Faixa etária (em anos) | < 0,001 | < 0,001 | ||
18-24 | 1,00 | 1,00 | ||
25-34 | 0,52 (0,21;1,32) | 0,51 (0,20;1,27) | ||
35-44 | 0,59 (0,24;1,46) | 0,58 (0,23;1,41) | ||
45-59 | 1,80 (0,84;3,86) | 1,75 (0,83;3,71) | ||
≥ 60 | 3,35 (1,31;8,59) | 3,24 (1,25;8,42) | ||
Nível 2 - Socioeconômico | ||||
Classificação econômica | 0,256 | 0,150 | ||
A/B | 1,00 | 1,00 | ||
C | 0,55 (0,26;1,16) | 0,49 (0,23;1,05) | ||
D/E | 0,57 (0,27;1,20) | 0,44 (0,18;1,07) | ||
Escolaridade | 0,091 | 0,546b | ||
Ensino superior completo ou mais | 1,00 | 1,00 | ||
Ensino médio completo | 0,62 (0,23;1,67) | 0,80 (0,30;2,13) | ||
Ensino fundamental completo | 0,72 (0,24;2,20) | 1,06 (0,33;3,40) | ||
Menor que o ensino fundamental | 1,31 (0,51;3,38) | 1,40 (0,49;3,96) | ||
Estado conjugal | 0,134 | 0,148 | ||
Sem companheiro | 1,00 | 1,00 | ||
Com companheiro | 1,51 (0,88;2,60) | 1,48 (0,87;2,51) | ||
Plano de saúde | 0,265 | 0,323b | ||
Não | 1,00 | 1,00 | ||
Sim | 1,56 (0,72;3,38) | 1,47 (0,68;3,19) | ||
Nível 3 - Saúde | ||||
Estado de saúde | < 0,001 | 0,076 | ||
Bom | 1,00 | 1,00 | ||
Regular | 3,47 (1,79;6,69) | 1,89 (0,91;3,91) | ||
Ruim | 6,02 (2,88;12,57) | 2,54 (1,14;5,67) | ||
Consulta médicac | 0,030 | 0,113 | ||
Não | 1,00 | 1,00 | ||
Sim | 5,86 (1,19;28,86) | 3,28 (0,76;14,20) | ||
Internação hospitalarc | 0,002 | 0,024 | ||
Não | 1,00 | 1,00 | ||
Sim | 2,45 (1,39;4,33) | 1,90 (1,09;3,32) | ||
Número de doenças crônicas | < 0,001 | < 0,001 | ||
0 | 1,00 | 1,00 | ||
1 | 1,14 (0,43;3,04) | 0,91 (0,33;2,47) | ||
≥2 | 6,50 (2,90;14,58) | 3,20 (1,53;6,67) | ||
Dependência de tabaco | 0,881 | 0,574 | ||
Não | 1,00 | 1,00 | ||
Sim | 0,91 (0,25;3,34) | 0,66 (0,16;2,79) | ||
Consumo perigoso de álcool | 0,721 | 0,214 | ||
Não | 1,00 | 1,00 | ||
Sim | 0,87 (0,40;1,89) | 1,60 (0,76;3,38) |
a) Teste de Wald; b) Variáveis removidas do modelo para ajuste das variáveis do nível 3 (p-valor > 0,20); c) Nos 12 meses anteriores.
Discussão
A polifarmácia em Manaus atingiu 3% dos adultos e essa prevalência foi três vezes maior na população idosa. A maioria dos medicamentos utilizados por indivíduos em polifarmácia foram anti-hipertensivos, anti-inflamatórios não esteroidais e hipoglicemiantes. Quase três quartos das pessoas em polifarmácia apresentaram potenciais interações medicamentosas, em sua maioria de gravidade alta e com qualidade da informação regular. A análise do modelo hierárquico indicou que a polifarmácia foi maior entre idosos, pessoas com estado de saúde ruim, indivíduos que foram previamente hospitalizados e aqueles com multimorbidade.
Viés recordatório pode ter influenciado os resultados, uma vez que os participantes podem ter esquecido de relatar alguns dos medicamentos, potencialmente subestimando a prevalência de polifarmácia. Buscou-se minimizar esse efeito pela confirmação de prescrições médicas ou embalagens de medicamentos, quando disponíveis. As interações medicamentosas investigadas neste estudo foram teóricas e não foram confirmadas clinicamente; algumas dessas interações podem ter resultado em efeitos clínicos pouco relevantes para os participantes.18 O método de amostragem probabilística em três estágios, adotado neste estudo, aumentou a representatividade da amostra; porém, viés de seleção pode ter ocorrido, pois indivíduos em polifarmácia com condições de saúde graves poderiam não estar em seus domicílios devido a seus problemas de saúde.
A prevalência de polifarmácia em adultos relatada neste estudo foi inferior à encontrada no Estudo Longitudinal de Saúde do Adulto (12%), que incluiu 14.523 servidores públicos de instituições de ensino superior e/ou pesquisa localizadas nas regiões Nordeste, Sul e Sudeste do Brasil.19 A polifarmácia foi identificada em 9% dos usuários de medicamentos brasileiros, sendo que a menor prevalência correspondeu à região Norte, de acordo com a Pesquisa Nacional de Acesso, Uso e Promoção do Uso Racional de Medicamentos 2014-2015 (PNAUM), conduzida com uma subamostra de 8.803 adultos cadastrados na APS.20 Além das discrepâncias nas representatividades e entre os contextos dos estudos, dificuldades no uso e acesso a serviços de saúde e medicamentos na região Norte podem explicar essas diferenças, especialmente entre indivíduos socialmente desfavorecidos e vulneráveis.21,22 Regiões financeiramente mais privilegiadas tendem a oferecer maior acesso a serviços de saúde, incluindo medicamentos, o que resulta em um possível aumento no número de prescrições.19
A prevalência de polifarmácia foi três vezes maior entre os idosos do que nos adultos em geral (incluindo idosos). A polifarmácia é um desafio para o envelhecimento da população: sua prevalência pode chegar a 90%, a depender das definições de polifarmácia utilizadas e da variabilidade entre regiões geográficas.1 Profissionais da equipe multidisciplinar, como os farmacêuticos, têm papel importante no monitoramento e melhoria do uso e gerenciamento de medicamentos entre populações idosas, otimizando a farmacoterapia e reduzindo a polifarmácia desnecessária.23 A conciliação medicamentosa, processo de identificação precisa da lista de medicamentos usados pelo paciente e sua comparação com a admissão, transferência e alta, apresenta-se como estratégia efetiva para o gerenciamento da polifarmácia.3 A desprescrição é outra intervenção segura, viável e bem tolerada, muitas vezes conduzida por farmacêuticos, e pode resultar em benefícios clínicos importantes para indivíduos mais velhos em polifarmácia, incluindo redução no uso de medicamentos potencialmente inadequados e no número total de medicamentos utilizados por pessoa.24 Plataformas como o Deprescribing.org (https://deprescribing.org) podem servir como ferramenta de apoio à desprescrição, ao reunir publicações científicas, algoritmos baseados em evidências, reportes de casos, guias e panfletos relacionados ao tema.
A maioria dos medicamentos consumidos por indivíduos em polifarmácia destinou-se ao tratamento de doenças crônicas, embora tenha-se revelado frequente uso de anti-inflamatórios não esteroidais. Estes achados são semelhantes aos relatados para a população brasileira em polifarmácia, em que medicamentos como sinvastatina, losartana, omeprazol, ácido acetilsalicílico e metformina estão entre os mais usados.20 Outro estudo, realizado com 10.528 adultos dos Estados Unidos que relataram ter condições crônicas em 2009, constatou que indivíduos com doenças cardiometabólicas (hipertensão, diabetes ou doenças cardíacas) se encontravam particularmente sob maior risco de polifarmácia, indicando a necessidade de monitoramento para potenciais interações medicamentosas nesse grupo.25
Quase três quartos dos participantes em polifarmácia apresentaram potenciais interações medicamentosas, sendo mais da metade delas de gravidade alta. Apesar de não confirmadas clinicamente, as potenciais interações medicamentosas graves podem requerer intervenção médica, ou ainda serem fatais.13 Um estudo de base populacional anterior, conduzido com 2.143 idosos residentes na Região Metropolitana de São Paulo, no ano 2000, constatou que 34% dos indivíduos em polifarmácia (definida como o uso de ≥ 6 medicamentos) apresentavam potenciais interações medicamentosas, a maioria delas de gravidade moderada (70%), apoiadas por evidências de boa qualidade (65%).26 O elevado número de interações medicamentosas de alta gravidade entre indivíduos em polifarmácia em Manaus indica a potencial necessidade de fortalecimento da assistência farmacêutica e da promoção do uso racional de medicamentos na região.
A polifarmácia foi maior entre os participantes com estado de saúde ruim, aqueles com internações hospitalares anteriores, e os que apresentaram condição de multimorbidade. Análise de 9.019 idosos da população geral participantes da PNAUM observou maior polifarmácia em pessoas com estado de saúde ruim, hospitalizações no ano anterior e presença de doenças crônicas (principalmente diabetes e doenças cardíacas).27 O Estudo Longitudinal da Saúde dos Idosos Brasileiros, realizado com 9.412 idosos do país, entre 2015 e 2016, indicou que a polifarmácia foi associada à multimorbidade e à autoavaliação da saúde ruim, bem como à maior utilização de serviços de saúde.28 Maior número de problemas de saúde e a necessidade de múltiplos tratamentos podem aumentar o risco de hospitalizações e reduzir a qualidade de vida relacionada à saúde.8 Com o aumento da expectativa de vida e multimorbidade associada, os riscos de danos decorrentes da polifarmácia aumentam.1
Não se observou associação entre polifarmácia e dependência de tabaco e álcool, e poucas interações medicamento-tabaco e medicamento-álcool foram observadas entre os indivíduos em polifarmácia. Similarmente, não houve associação entre tabagismo e polifarmácia em um estudo de base populacional na Inglaterra, com 7.730 participantes na idade de mais de 50 anos, entre 2012 e 2013, embora o mesmo estudo tenha apontado frequência menor de polifarmácia entre etilistas.29 O consumo excessivo de álcool não foi associado à polifarmácia, enquanto ex-fumantes foram mais propensos à politerapia, segundo um estudo transversal com 1.705 homens idosos residentes em Sydney, Austrália, no período de 2005 a 2007.30 Usuários de tabaco e álcool poderiam ter morrido ou estar ausentes, devido a doenças, no momento da entrevista, ocasionando viés de sobrevivência à amostra. Outra possível explicação seria a de que os participantes abandonaram a dependência por problemas de saúde, afetada por causalidade reversa.
Em conclusão, a polifarmácia ocorreu em aproximadamente 3 de cada 100 adultos residentes em Manaus, e foi maior entre idosos, pessoas com estado de saúde ruim, internações hospitalares anteriores e multimorbidade. Quase três quartos dos indivíduos em polifarmácia apresentaram potenciais interações medicamentosas, a maioria de gravidade alta e com qualidade da informação regular. Reduzir a polifarmácia por meio de estratégias que racionalizem o uso de medicamentos, como a conciliação medicamentosa e a desprescrição, potencialmente diminuirá interações medicamentosas e suas consequências, em especial nos grupos mais fragilizados.