Contribuições do estudo
Principais resultados
O cuidado adequado à hipertensão foi de 25,3% em 2013, e de 18,8% em 2019. Residentes no Centro-Oeste e Sudeste do país, com melhor nível socioeconômico e atendidos em serviços privados, apresentaram uma prevalência maior de adequação do cuidado.
Introdução
A hipertensão arterial (HA) é uma doença crônica não transmissível (DCNT) de importância para a saúde pública.1,2 Estima-se que, até 2025, a HA acometa cerca de um terço da população do planeta.3 As complicações de HA respondem por 9,4 milhões de mortes em todo o mundo, a cada ano,4 sendo que, em 2017, o Brasil registrou 141.878 mortes devidas a HA, ou a causas atribuíveis a ela, como complicações.5
No Brasil, dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD), realizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) em três edições, 1998, 2003 e 2008, registraram que a HA atingia 18,0%, 19,2% e 20,9% da população, respectivamente.6 Segundo a Pesquisa Nacional de Saúde (PNS) de 2013, conduzida em parceria entre o Ministério da Saúde e o IBGE, a prevalência de HA autorreferida no Brasil foi de 21,4%;7 mais recentemente, a PNS 2019 registrou essa proporção em 23,9%, evidenciando o constante crescimento da prevalência dessa doença crônica.7
A HA e suas consequências na saúde pública implicam custos expressivos para o sistema de saúde, além da redução da capacidade funcional e da expectativa de vida.8-11 Além do tratamento farmacológico, o cuidado dispensado pelo sistema de saúde às pessoas com HA deve contemplar o monitoramento e o apoio a mudanças no estilo de vida.1 O correto diagnóstico, a conscientização sobre a gravidade da doença e suas consequências, a oferta de orientações sobre hábitos saudáveis e o acompanhamento regular realizado por profissional de saúde, que solicite exames periódicos preconizados, podem contribuir para o adequado manejo e a consequente redução da morbimortalidade relacionada à HA.1
A literatura aponta que a qualidade do cuidado dispensado a essa população é baixa e depende de características individuais, a exemplo do nível socioeconômico.12 Um estudo realizado no Brasil em 2013, com idosos portadores de HA, encontrou que um quarto deles referiu ter recebido orientações e solicitação de exames, itens indicadores desse cuidado.12 Além disso, as desigualdades na atenção à saúde de afetados pela HA foram marcantes: os mais escolarizados receberam um cuidado de melhor qualidade.12
Faz-se necessária, portanto, a avaliação e monitoramento periódico dos indicadores de cuidado prestado às pessoas com HA, tendo em vista o aumento da prevalência da doença e o crescimento dessa demanda para os serviços de saúde.6,7
O objetivo deste artigo foi analisar a adequação do cuidado recebido por adultos e idosos com HA nos anos de 2013 e 2019, e sua associação com macrorregião do país, características demográficas, socioeconômicas e do sistema de saúde.
Métodos
Estudo transversal de base populacional, utilizando-se de dados das PNS de 2013 e 2019, realizadas pelo IBGE e o Ministério da Saúde.13
As amostras da PNS foram representativas de moradores de domicílios permanentes, localizados em área urbana ou rural de municípios das cinco grandes regiões geográficas nacionais, nos 26 estados da Federação e no Distrito Federal. Utilizou-se amostragem em múltiplos estágios, em ambos os estudos. Inicialmente, foram selecionados os setores censitários, seguidos dos domicílios e, por último, dos indivíduos na idade de 18 anos ou mais, totalizando 64.348 domicílios, em 2013 e 108.457 em 2019. Nesses domicílios, foram entrevistadas 60.202 pessoas sobre doenças crônicas em 2013 e 88.736 em 2019.
Para o presente estudo, foram consultados dados de pessoas com 18 anos ou mais, que referiram diagnóstico médico de hipertensão arterial e que haviam se consultado, em razão da doença, nos últimos três anos.
As coletas de dados pela PNS foram feitas por entrevistadores treinados, munidos de computadores de mão para armazenamento dos dados. O questionário foi constituído de três partes. Inicialmente, foram coletadas variáveis do domicílio. À segunda parte do questionário cabiam as características gerais dos moradores do domicílio, incluindo escolaridade, trabalho e rendimento, entre outras informações. Na terceira parte do instrumento, constavam perguntas destinadas a um morador adulto (18 anos ou mais de idade), selecionado aleatoriamente, sobre autopercepção do estado de saúde, acidentes e violências, estilos de vida e doenças crônicas, entre outras. Mais detalhes sobre as PNS de 2013 e 2019 encontram-se nos artigos metodológicos dos estudos.13,14
O desfecho analisado foi a adequação do cuidado recebido dos serviços de saúde pelos entrevistados que referiram diagnóstico médico de HA e que já haviam se consultado por causa da HA. Os indicadores utilizados para a operacionalização do desfecho foram as recomendações para ter uma alimentação saudável, manter o peso adequado, ingerir menos sal, praticar atividade física, não fumar, não ingerir bebida alcoólica em excesso e fazer acompanhamento regular, operacionalizados pela proposição da seguinte pergunta: Em algum dos atendimentos para hipertensão, algum médico ou outro profissional de saúde lhe deu alguma dessas recomendações? Também foram utilizados, como indicadores de adequação do cuidado, a solicitação de exames de sangue e de urina, eletrocardiograma e teste de esforço, obtidos mediante a pergunta: Em algum dos atendimentos para hipertensão arterial foi pedido algum exame? O desfecho ‘adequação do cuidado recebido’ foi construído a partir da resposta afirmativa aos 11 indicadores mencionados, na condição de dicotomizados (sim; não), sendo considerado como positivo o relato do recebimento de todos os indicadores avaliados. Todas as perguntas foram apresentadas da mesma forma, nas duas pesquisas.
Como variáveis de exposição, foram investigadas:
região de residência (Norte; Nordeste; Centro-Oeste; Sudeste; Sul);
sexo (masculino; feminino);
faixa etária (em anos completos: 18 a 49; 50 a 64; 65 ou mais);
raça/cor da pele (autorreferida: branca; preta; parda/amarela/indígena);
classe econômica (em quintis, do 1° quintil, dos mais pobres, ao 5° quintil, dos mais ricos,15 construída a partir da soma das pontuações das seguintes variáveis: tipo de domicílio, número de dormitórios, banheiros, televisores, geladeira, vídeo/DVD, máquina de lavar, telefone fixo, telefone celular, micro-ondas, computador, motocicleta, carro, acesso à internet e presença de empregada doméstica);
local de atendimento, em três grupos: hospital público/unidade de pronto atendimento (UPA)/pronto atendimento (PA)/pronto-socorro (PS); unidade básica de saúde (UBS)/unidade de Saúde da Família (USF); e serviços privados; e
tipo de atendimento (Sistema Único de Saúde - SUS; não SUS).
As análises foram realizadas utilizando-se o pacote estatístico Stata/SE 15.1 (StataCorp LP, College Station, Estados Unidos), com o comando svy, para o desenho amostral por estágios múltiplos e diferentes níveis de agregação, em ambas as amostras. Inicialmente, foi realizada uma descrição da amostra em números absolutos (n) e relativos (%), segundo as variáveis de exposição e desfecho. Foram estimadas as razões de prevalências (RP) não ajustadas e ajustadas do recebimento dos 11 indicadores, mediante regressão de Poisson.16 A análise ajustada foi conduzida com base em modelo hierarquizado: no nível mais distal, a variável ‘região’; em seguida, entrou-se com ‘classificação econômica’, ‘sexo’, ‘idade’ e ‘raça/cor da pele’; por fim, em um nível mais proximal ao desfecho, entraram as variáveis ‘local de atendimento’ e ‘tipo de atendimento’. O ajuste foi feito para as variáveis do mesmo nível e acima dele, sendo mantidas no modelo todas as que apresentaram um nível de significância menor que 0,05.
O projeto da PNS foi submetido à Comissão Nacional de Ética em Pesquisa, órgão vinculado ao Conselho Nacional de Saúde, e aprovado conforme Protocolos n° 10853812.7.0000.0008 (2013) e n° 3.529.376 (2019). Todos os participantes assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. Os dados da PNS são públicos, não sendo divulgadas informações pessoais dos participantes.
Resultados
Em 2013, entre 58.415 indivíduos incluídos na PNS, 12.500 referiram diagnóstico médico de HA (21,4%); destes, 11.129 haviam se consultado por causa da doença nos últimos três anos, tendo sido considerados na presente análise. Em 2019, entre 88.736 incluídos, 23.851 referiram diagnóstico médico de HA (26,9%), e destes, 19.107 haviam se consultado por esse motivo nos últimos três anos, sendo também incluídos na análise. As características da amostra mantiveram-se semelhantes nos períodos, com predomínio de residentes nas regiões Nordeste e Sudeste, mulheres, pessoas na idade de 50 anos ou mais e raça/cor da pele branca. Cerca de metade da amostra referiu, como local de atendimento médico para HA, a UBS ou a USF; pouco menos de um terço referiu os serviços privados. A maioria recebeu esse atendimento pelo SUS (Tabela 1).
Variável | 2013 (n = 11.129) | 2019 (n = 19.107) | ||
---|---|---|---|---|
n (%) | Cuidado adequado (%)a | n (%) | Cuidado adequado (%)a | |
Região | ||||
Nordeste | 3.242 (29,1) | 20,0 | 6.639 (34,8) | 13,7 |
Norte | 1.719 (15,5) | 22,5 | 2.983 (15,6) | 17,4 |
Sudeste | 3.111 (27,9) | 27,2 | 4.867 (25,4) | 20,5 |
Sul | 1.597 (14,4) | 22,5 | 2.545 (13,3) | 19,7 |
Centro-Oeste | 1.460 (13,1) | 27,4 | 2.073 (10,9) | 24,6 |
Sexo | ||||
Masculino | 3.898 (35,0) | 29,9 | 7.717 (40,4) | 20,7 |
Feminino | 7.231 (65,0) | 21,4 | 11.390 (59,6) | 17,4 |
Idade (em anos) | ||||
18-49 | 3.441 (30,9) | 21,3 | 4.249 (22,2) | 16,0 |
50-64 | 4.099 (36,8) | 27,7 | 7.160 (37,5) | 21,9 |
≥65 | 3.589 (32,3) | 23,8 | 7.698 (40,3) | 17,2 |
Raça/cor da pele | ||||
Branca | 4.724 (42,5) | 26,5 | 7.201 (37,7) | 21,8 |
Preta | 1.159 (10,4) | 24,0 | 2.472 (12,9) | 18,5 |
Parda/amarela/indígena | 5.246 (47,1) | 22,3 | 9.434 (49,4) | 15,7 |
Classe econômica (em quintis) | ||||
1º (mais pobres) | 2.394 (26,6) | 15,3 | 5.201 (27,2) | 9,1 |
2º | 2.106 (23,5) | 20,8 | 4.715 (24,7) | 15,2 |
3º | 1.423 (15,8) | 25,7 | 3.679 (19,3) | 18,1 |
4º | 1.705 (19,0) | 27,9 | 2.910 (15,2) | 24,1 |
5º (mais ricos) | 1.357 (15,1) | 39,9 | 2.602 (13,6) | 33,0 |
Local de atendimento | ||||
Hospital público/UPAb/PAc/PSd | 2.466 (22,1) | 18,7 | 3.825 (20,0) | 14,5 |
UBSe/USFf | 5.513 (49,6) | 19,2 | 9.526 (49,9) | 13,2 |
Serviços privados | 3.150 (28,3) | 41,1 | 5.756 (30,1) | 29,5 |
Tipo de atendimento | ||||
SUSg | 7.605 (68,3) | 18,8 | 12.909 (67,7%) | 13,4 |
Não SUSg | 3.524 (31,7) | 35,8 | 6.161 (32,3%) | 29,1 |
Total | 11.129 (100,0) | 25,3 | 19.128 (100,0) | 18,8 |
a) Proporção com ponderação; b) UPA: Unidade de Pronto Atendimento; c) PA: Pronto Atendimento; d) PS: Pronto-socorro; e) UBS: Unidade Básica de Saúde; f) USF: Unidade de Saúde da Família; g) SUS: Sistema Único de Saúde.
As orientações mais referidas foram ingerir menos sal (91,2% em 2013 e 87,8% em 2019), manter alimentação saudável (88,3% em 2013 e 87,2% em 2019), fazer acompanhamento regular (87,5% em 2013 e 85,3% em 2019) e manter o peso adequado (84,8% em 2013 e 84,3% em 2019); as menos referidas foram praticar atividade física regular (81,8% em 2013 e 81,7% em 2019), não fumar (76,1% em 2013 e 67,3% em 2019) e não beber em excesso (75,2% em 2013 e 66,6% em 2019) (Figura 1). No que toca à classificação econômica, em ambas as amostras, à exceção das orientações para ingerir menos sal nas refeições e não fumar, nas demais orientações, as pessoas mais ricas tiveram vantagem significativa e com tendência linear (Figura 2).
Os exames mais solicitados aos entrevistados com HA foram os de sangue (81,4% em 2013 e 80,2% em 2019) e de urina (70,9% em 2013 e 70,2% em 2019); o menos solicitado foi o eletrocardiograma (65,5% em 2013 e 64,8% em 2019) e o teste de esforço (36,5% em 2013 e 33,8% em 2019) (Figura 1). A estratificação revelou o mesmo perfil de desigualdade encontrado na análise das orientações, sendo os mais pobres os menos contemplados com a prescrição de exames, tanto em 2013 como em 2019 (Figura 3).
A prevalência de cuidado adequado recebido, considerando-se todas as sete orientações recebidas e os quatro exames solicitados, passou de 25,3% (IC95% 24,5;26,1) em 2013 para 18,8% (IC95% 18,2;19,3) em 2019. Residentes no Nordeste foram menos classificados como tendo recebido cuidado adequado nas duas pesquisas, ao lado dos residentes na região Norte, enquanto os do Centro-Oeste e os do Sudeste tiveram maior proporção de cuidado adequado (Tabelas 1 e 2).
Em 2013, as participantes do sexo feminino com HA apresentaram 24% menos cuidado adequado recebido (RP = 0,76; IC95% 0,68;0,86), comparadas aos do sexo masculino; em 2019, essa medida caiu para 12% (RP = 0,88; IC95% 0,79;0,97), após ajuste para posição econômica e região. Nas duas amostras, as pessoas na idade de 50 a 64 anos tiveram maior proporção de cuidado adequado, quando comparadas às mais jovens e às mais velhas. Em relação à análise não ajustada, pessoas com HA e na idade de 65 anos ou mais tiveram razões de prevalências mais altas em 2013 e 2019. Diferenças nas prevalências do desfecho relacionadas com a raça/cor da pele foram observadas apenas na análise não ajustada, tendo desaparecido na análise ajustada (Tabela 2).
Variável | 2013 | 2019 | ||
---|---|---|---|---|
RPa (IC95%)b | RPa (IC95%)b | RPa (IC95%)b | RPa (IC95%)b | |
Não ajustadas | Ajustadas | Não ajustadas | Ajustadas | |
Regiãoc | p-valor < 0,001l | p-valor < 0,001l | ||
Nordeste | 1,00 | 1,00 | ||
Norte | 1,12 (0,90;1,39) | 1,27 (1,08;1,50) | ||
Sudeste | 1,36 (1,14;1,62) | 1,49 (1,29;1,73) | ||
Sul | 1,12 (0,91;1,38) | 1,44 (1,24;1,67) | ||
Centro-Oeste | 1,37 (1,14;1,64) | 1,79 (1,53;2,10) | ||
Sexod | p-valor < 0,001l | p-valor < 0,001l | p-valor < 0,001l | p-valor = 0,014l |
Masculino | 1,00 | 1,00 | 1,00 | 1,00 |
Feminino | 0,72 (0,64;0,81) | 0,76 (0,68;0,86) | 0,84 (0,76;0,93) | 0,88 (0,79;0,97) |
Idade (em anos)d | p-valor < 0,001l | p-valor < 0,001l | p-valor < 0,001l | p-valor < 0,001l |
18-49 | 1,00 | 1,00 | 1,00 | 1,00 |
50-64 | 1,30 (1,13;1,50) | 1,32 (1,13;1,53) | 1,37 (1,17;1,61) | 1,38 (1,18;1,61) |
≥65 | 1,12 (0,96;1,31) | 1,28 (1,08;1,52) | 1,08 (0,92;1,27) | 1,16 (1,00;1,37) |
Raça/cor da peled | p-valor = 0,041l | p-valor = 0,890l | p-valor < 0,001l | p-valor = 0,090l |
Branca | 1,00 | 1,00 | 1,00 | 1,00 |
Preta | 0,91 (0,74;1,11) | 1,05 (0,84;1,33) | 0,85 (0,72;1,00) | 1,05 (0,89;1,23) |
Parda/amarela/indígena | 0,84 (0,74;0,96) | 0,99 (0,86;1,15) | 0,72 (0,64;0,81) | 0,90 (0,80;1,02) |
Classe econômica (em quintis)d | p-valor < 0,001l | p-valor < 0,001l | p-valor < 0,001l | p-valor < 0,001l |
1º (mais pobres) | 1,00 | 1,00 | 1,00 | 1,00 |
2º | 1,36 (1,08;1,71) | 1,35 (1,07;1,70) | 1,68 (1,40;2,01) | 1,63 (1,36;1,96) |
3º | 1,68 (1,35;2,09) | 1,65 (1,32;2,07) | 2,00 (1,68;2,38) | 1,93 (1,62;2,31) |
4º | 1,83 (1,48;2,25) | 1,80 (1,45;2,24) | 2,66 (2,20;3,23) | 2,58 (2,12;3,13) |
5º (mais ricos) | 2,60 (2,10;3,22) | 2,54 (2,03;3,17) | 3,64 (3,04;4,35) | 3,53 (2,94;4,23) |
Local de atendimentoe | p-valor < 0,001l | p-valor = 0,043l | p-valor < 0,001l | p-valor = 0,377l |
Hospital público/UPAf/PAg/PSh | 1,00 | 1,00 | 1,00 | 1,00 |
UBSi/USFj | 1,04 (0,85;1,26) | 1,03 (0,84;1,27) | 0,91 (0,77;1,09) | 0,96 (0,81;1,14) |
Serviços privados | 2,05 (1,71;2,45) | 1,48 (1,11;1,98) | 2,04 (1,74;2,38) | 1,22 (0,90;1,66) |
Tipo de atendimentoe | p-valor < 0,001l | p-valor = 0,117l | p-valor < 0,001l | p-valor<0,053l |
SUSk | 1,00 | 1,00 | 1,00 | 1,00 |
Não SUSk | 1,91 (1,68;2,16) | 1,14 (0,86;1,52) | 2,17 (1,94;2,42) | 1,35 (1,00;1,82) |
a) RP: Razão de Prevalências; b) IC95%: Intervalo de confiança de 95%; c) Primeiro nível hierárquico; d) Segundo nível hierárquico; e) Terceiro nível hierárquico; f) UPA: Unidade de Pronto Atendimento; g) PA: Pronto Atendimento; h) PS: Pronto-socorro; i) UBS: Unidade Básica de Saúde; j) USF: Unidade de Saúde da Família; k) SUS: Sistema Único de Saúde; l) P-valor do teste de Wald, obtido mediante regressão de Poisson.
Quanto melhor a posição econômica, maior a proporção de cuidado adequado, em ambas as amostras. Entretanto, os dados apontam para o recrudescimento da desigualdade em 2019: os mais ricos, em 2013, tiveram 2,5 vezes maior prevalência de cuidado adequado, e em 2019, 3,5 vezes mais, comparados com os mais pobres. A prevalência de cuidado adequado recebido, entre os mais pobres, foi de 15,3% em 2013 e de 9,1% em 2019 (Tabelas 1 e 2).
Aqueles atendidos em serviços privados tiveram 48% mais cuidado adequado do que os atendidos em serviços públicos, em 2013; em 2019, porém, essa associação não se manteve após ajustes. O atendimento pelo SUS implicou diferença significativa limítrofe (p-valor = 0,053) apenas em 2019, tendo sido a prevalência de cuidado adequado 35% maior entre os não usuários do SUS (Tabela 2).
DISCUSSÃO
Os achados do estudo apontaram que, em 2013, apenas um quarto dos adultos e idosos brasileiros com diagnóstico médico de HA receberam, da rede de saúde, um conjunto de orientações e prescrição de exames para o adequado manejo de sua condição de saúde, situação que piorou em 2019, com essa qualidade do atendimento ofertada para menos de um quinto da população pesquisada.
O processo de transição demográfica, aliado à transição epidemiológica que vem sendo experimentada no país,17 tem afetado a ocorrência das DCNTs,6,7 incluindo a HA. De acordo com os inquéritos da PNS, a prevalência de HA aumentou de 21,4% em 2013 para 26,9% em 2019. Este fato contribui para que também aumente a demanda por serviços de saúde, com a possibilidade de gerar uma assistência de baixa qualidade. Além do que, nos últimos anos, o Brasil tem enfrentado o recrudescimento do subfinanciamento do SUS, notadamente a partir da promulgação da Emenda Constitucional nº 95 pelo Congresso Nacional, em 15 de dezembro de 2016,18 inaugurando um período em que não houve investimento público no setor de saúde, fator determinante para uma previsível influência negativa na qualidade dos serviços prestados.
Em que pese o fato de, segundo ambas as pesquisas, a maioria dos entrevistados ter recebido alguma orientação, um achado chama a atenção: as recomendações referentes a comportamentos saudáveis - praticar atividade física, não fumar e não consumir bebidas alcoólicas em excesso - foram menos enfatizadas pelos profissionais de saúde, enquanto manter uma alimentação saudável e reduzir o consumo de sal foram as orientações mais relatadas. Sabe-se que a adoção de tais comportamentos tem efeito positivo sobre a saúde, notadamente para pessoas com HA.2
Da mesma forma, destacam-se as baixas prevalências de solicitação de eletrocardiograma e teste de esforço, exames que ajudam a monitorar eventuais danos da doença no sistema cardiocirculatório19 e que, por isso, deveriam ser solicitados periodicamente a todos os indivíduos com HA.1 Igualmente, o exame de urina, para análise de caracteres físicos, elementos e sedimentos, é essencial no controle da doença,1 dada sua importância, baixo custo e simplicidade, deveria ser mais requisitado, o que não ocorreu em aproximadamente um a cada quatro indivíduos com diagnóstico de hipertensão arterial.
As desigualdades regionais, bem documentadas pela literatura no Brasil,7,12,20,21 mais uma vez se manifestaram. O Norte e o Nordeste responderam pelas menores prevalências de cuidado adequado à pessoa com hipertensão, ao passo que as demais regiões do país mantiveram seus índices pouco acima da média nacional. O nível socioeconômico, além de afetar a saúde da população, vê-se refletido nos serviços de saúde, seja em suas estruturas constituídas, seja nos processos conformadores da oferta de ações.12,21 No caso do cuidado dispensado a pessoas com HA, essa desigualdade é ainda mais preocupante, uma vez que o fornecimento de orientações independe de recursos de qualquer monta. Já a solicitação de exames para o controle da doença pode ter sido afetada pela menor disponibilidade de estabelecimentos em muitos municípios de regiões mais pobres, alimentando um círculo perverso de pobreza e pior qualidade da atenção à saúde.
As desigualdades socioeconômicas em nível individual também foram observadas em ambas as amostras, no que concerne à maioria dos exames e das orientações, tendo sido inclusive agravadas em alguns casos, com acirramento das iniquidades, a exemplo das orientações para manter o peso adequado, a prática de atividade física, não beber em excesso e fazer acompanhamento regular. O mesmo foi observado para os exames em geral - exceto o exame de urina -,ao se analisarem esses mesmos desfechos com base nos dados da PNS de 2013, apenas para idosos: encontrou-se o mesmo padrão de desigualdades,12 o que reforça os achados do presente estudo.
O comportamento do desfecho de acordo com a situação socioeconômica dos indivíduos, após ajuste por região, aponta uma associação direta: quanto melhor a classificação econômica, melhor cuidado foi dispensado. Além de esse efeito ter-se verificado nas duas pesquisas, particularmente em 2019, a desigualdade foi mais expressiva do que em 2013, possivelmente atribuída ao fato de, no período entre esses anos, a pobreza ter aumentado,22,23 levando à maior demanda por serviços de saúde, notadamente os de caráter público. Esta sobrecarga pode limitar o tempo dispensado às consultas, reduzindo a oportunidade de atendimentos com maior integralidade. Isto é ainda mais preocupante quando se observa o aumento da prevalência da doença, e, mesmo com a permanência da mesma capacidade dos serviços, a qualidade da atenção tende a cair, conforme sugerem os achados do presente estudo.
Mais orientações e solicitações de exames foram identificadas nas respostas de pessoas com mais idade, um fato indicativo de equidade na atenção à saúde. Os mais velhos necessitam de mais cuidado, comparados aos mais jovens, haja vista idades mais avançadas apresentarem mais carga de doença. Entretanto, idosos são os que mais se utilizam da saúde pública, com maior número de exposições a esses serviços e consequente aumento na probabilidade de receber um cuidado de maior qualidade.7,24,25 Após ajuste, não houve diferenças no atendimento a homens ou mulheres, o que seria esperado em razão da igualdade de necessidades entre ambos os sexos. Da mesma forma, na análise bruta, a raça/cor da pele havia revelado maior cuidado adequado para os brancos, efeito não verificado na análise ajustada. Este achado é importante, pois, a exemplo da idade, enfatiza a equidade no cuidado. Duro et al.,26 ao observarem amostra da população brasileira, registraram maior prevalência de orientação sobre atividade física regular em pessoas de raça/cor da pele branca. Pesquisa realizada em uma amostra de idosos de Pelotas, município do Sul do Brasil, registrou que a orientação para redução do consumo de sal apresentou diferença estatística, com maior prevalência entre os não brancos.27
Quanto ao local de atendimento, acredita-se que hospitais públicos e serviços de PA, identificados neste estudo com o pior desempenho, não tenham o perfil para o adequado acompanhamento de portadores de condições crônicas, sendo procurados, na maioria das vezes, em função de alguma intercorrência da HA ou de outra comorbidade. Em 2013, pessoas com HA atendidas em serviços privados apresentaram quase 48% mais cuidado adequado do que as atendidas em hospital público, UPA, PA ou PS; esta associação, entretanto, não permaneceu significativa em 2019. Uma possível explicação para esse resultado estaria relacionada à queda na qualidade do sistema de saúde como um todo, atingindo também os serviços privados.
A Atenção Primária à Saúde (APS) foi responsável por metade dos atendimentos à pessoa portadora de HA. Porta de entrada do SUS, a APS tem como modelo preferencial a Estratégia Saúde da Família. Suas bases e diretrizes incluem o vínculo longitudinal, fundamental para a prevenção e o correto manejo de condições que acompanharão o indivíduo ao longo de toda a vida, como é o caso da HA.1 Contudo, a última edição da Política Nacional de Atenção Básica (PNAB), publicada em 2017, trouxe novos arranjos para as equipes e permitiu a redução de profissionais e de carga horária nos serviços.28 Logo, com o aumento da demanda em virtude do empobrecimento populacional,22 a PNAB induziu maior sobrecarga de trabalho para os profissionais e, assim, pode ter feito com que a qualidade da Atenção Básica decrescesse.
A falta de associação com o tipo de atendimento - SUS ou outro - em 2013 e a associação limítrofe em 2019 podem ser explicadas pelo modelo de análise, com outras variáveis hierarquicamente mais determinantes do desfecho, especialmente o local de atendimento. Sabe-se que 20% a 30% da população não utilizam o SUS, pessoas que, de modo geral, têm melhor situação socioeconômica.29 Assim, níveis similares de prevalência do cuidado, de acordo com o tipo de atendimento, podem ter sido afetados pelo ajuste para variáveis hierarquicamente superiores.
Sobre as limitações deste trabalho, pode-se citar a disponibilidade restrita de perguntas nos questionários da PNS destinadas a inferir a qualidade do cuidado, não havendo, por exemplo, perguntas sobre solicitação de raio X para pessoas portadoras de HA com insuficiência cardíaca congestiva. Outro destaque entre as limitações do estudo, diz respeito à generalidade da pergunta sobre exame de sangue, sem distinguir os diferentes tipos de exame de sangue solicitados. Da mesma forma, a adequação do cuidado foi avaliada como um todo, sem serem consideradas as diferenças nos perfis das pessoas com HA em relação à severidade da doença e a comorbidades. É possível que algumas respostas tenham sido afetadas por viés de recordatório, pois o período dos atendimentos a que as perguntas se referiam era de até três anos pregressos.
Entre as fortalezas do trabalho, destaca-se a representatividade nacional das amostras e a oportunidade de comparar a evolução de indicadores em dois momentos-limite, permitindo a identificação de tendências e padrões na qualidade da atenção a pessoas com HA pelo sistema de saúde, e suas desigualdades.
É preocupante constatar que, passados seis anos, esses indicadores de atenção à saúde tenham se deteriorado com o acirramento das desigualdades. Dado o fato de a prevalência de HA vir aumentando no Brasil, acredita-se que, se a qualidade do cuidado também aumentar, será possível minimizar o impacto populacional da doença.
Esforços para nortear e qualificar a atenção à pessoa com HA vêm sendo feitos, a exemplo de recente publicação do Ministério da Saúde cujo tema é a linha de cuidado voltada a essa população.30 Porém, existem gargalos no âmbito do sistema de saúde. A oferta de orientações e a prescrição de exames de rotina são manifestações concretas deste cuidado a pessoas com HA, e devem ser mais frequentes. Em todos os seus contatos com os serviços de saúde, os usuários devem receber, de parte de seus profissionais, o reforço dessas condutas. Mais ações de educação permanente, voltadas não só à promoção da saúde de modo geral, mas também a cuidados específicos, no caso dos portadores de doenças crônicas, podem potencializar a melhoria da saúde em todas as idades.
Espera-se que as políticas em nível macro, a exemplo da ampliação do acesso à alimentação saudável e da manutenção da segurança para a prática de atividade física, sejam fortalecidas. Ademais, os serviços de saúde devem encorajar o autocuidado e o engajamento da família nas mudanças de estilo de vida, contribuindo para viabilizar a adesão da pessoa com HA ao tratamento não farmacológico. Este apoio pode atenuar as deficiências nas orientações sobre uso de bebida alcoólica e tabagismo. Tais orientações se mostraram menos prevalentes, embora sejam tão importantes para a saúde da população.